A Herança de Abraão

A Herança de Abraão
Dr. Jorge Pinheiro
Jorge Pinheiro - 17 - peq
Ao longo da história, vários foram os homens e mulheres que, em diversas épocas, influenciaram negativa ou positivamente as sociedades em particular e a humanidade em geral. Enumerá-los tornar-se-ia fastidioso porque a lista seria extensa. Emparceirando-os, verificaríamos, contudo, que deles apenas meia dúzia se sobressairia de quem se pudesse dizer que a sua influência se tornou extensiva a todo o mundo, deixando uma marca que atravessou séculos e continentes e que perdura ainda hoje. Se pedíssemos a alguém que enumerasse o nome de cinco personalidades que em seu entender mais influenciaram o curso da humanidade não deixaria de indicar o dos fundadores das principais religiões (Sidarta Gautama, Moisés, Zoroastro, Jesus Cristo, Lao Tzé, Muhamad), o de grandes guerreiros ou descobridores (Gengis Cão, Alexandre Magno, Júlio César, Marco Pólo, Vasco da Gama, Cristóvão Colombo), o de grandes pensadores, cientistas ou artistas (Sócrates, Platão, Einstein, Karl Marx, Mahatma Gandhi, Leonardo da Vinci, Beethoven) ou qualquer um dos muitos políticos que deixaram a sua marca indelével na história da humanidade. Não estaremos, contudo, talvez longe da verdade se arriscarmos afirmar que poucos citariam o nome de Abraão entre esses cinco.
E, no entanto, passados quase cerca de 40 séculos desde que ele empreendeu a sua caminhada histórica, saindo de Ur da Caldeia rumo a um destino que apenas pela fé conseguia vislumbrar e, talvez, deficientemente compreender, ainda hoje continuamos a ser influenciados de forma perene e constante por essa sua decisão, a ponto de podermos afirmar, sem forçar a realidade, que ele condicionou o devir de toda a humanidade. A sua decisão de obedecer à voz divina alterou para sempre o curso da humanidade e ainda hoje continuamos a sentir a sua influência. É verdade que genericamente Abraão é encarado apenas no quadro do universo religioso para isso contribuindo o facto de os seguidores dos três grande monoteísmos actuais o considerarem como pai fundador e alicerce das respectivas fés. É verdade que Abraão, considerado patriarca por todos quantos se lhe sentem devedores, foi movido por uma fé que podemos considerar de base e consistência religiosa. Mas não menos verdade será afirmar que, afinal, todos neste mundo, crentes e não crentes, são de uma forma ou outra seus filhos ou descendentes.
A história de Abraão vamos encontrá-la, com riqueza de pormenor no maior best-seller de toda a humanidade e jóia preciosa do universo sapiencial – a Bíblia Sagrada, mais concretamente no Génesis, entre os capítulos 12 e 25. Esses 14 capítulos retratam quadros de magnífica beleza e profundos ensinamentos cuja densidade está longe de esgotada.
Sabemos que Abraão vivia na opulenta cidade de Ur da Caldeia, cidade que rivalizava em grandeza e importância com a grande Babilónia, sendo considerada na altura (1940 a.C.) a mais importante urbe da região. Aos 75 anos, passa por uma experiência que irá modificar para sempre a sua vida e o curso da humanidade. Pouco sabemos de Abraão até então. Mas sabemos que vivia numa cidade opulenta, numa sociedade politeísta, num mundo em que, para apaziguar os caprichos das divindades, muitas vezes era necessário sacrificar a vida humana. Muito provavelmente viveria sem problemas de subsistência. Talvez uma das poucas tristezas que o afligisse fosse o facto de sua mulher Sarai ser estéril e, por essa razão, o seu nome não seria propagado após a sua morte entrando por isso no oblívio da memória colectiva.
E é nesse ambiente que Deus o chama e lhe faz uma promessa que a partir de então será a sua razão de existir: “Sai-te da tua terra e da tua parentela e da casa de teu pai, para a terra que eu te mostrarei. E far-te-ei uma grande nação e abençoar-te-ei e engrandecerei o teu nome e tu serás uma bênção. E abençoarei os que te abençoarem e amaldiçoarei os que te amaldiçoarem; e em ti serão benditas todas as famílias da terra”. Obediente, Abraão deixa o conforto, o sossego e a reputação e parte. Deixa a segurança do adquirido e parte rumo ao desconhecido, fundamentado apenas numa promessa cujo único garante é o Deus eterno a quem fica ligado pelos laços da fé que vai crescendo e fortalecendo-se à medida que se entrega à obediência de quem o chamou. Conhecemos o resto da sua autêntica odisseia que resumimos de seguida: após renovar-lhe a chamada e a promessa de um filho, apesar da esterilidade de Sarai e da idade avançada de Abrão, Deus concede-lhe um filho, Isaque, depois de mudar o nome ao casal e de instituir a circuncisão e não sem que antes Abraão tivesse gerado Ismael da sua escrava Agar. Após a morte de Sara, Abraão volta a conceber seis outros filhos da concubina Quetura. Pelo meio, a destruição de Sodoma e Gomorra, o sacrifício não consumado do filho Isaque e o episódio em que, perante Abimeleque, Abraão nega que Sara fosse sua esposa.
Centremo-nos no conteúdo da promessa feita por Deus a Abraão e que ele transmite como herança a todos os seus descendentes. Nela há 3 elementos centrais: terra (Sai-te da tua terra e da tua parentela e da casa de teu pai, para a terra que eu te mostrarei), semente (E far-te-ei uma grande nação e abençoar-te-ei e engrandecerei o teu nome e tu serás uma bênção) e bênção (E abençoarei os que te abençoarem e amaldiçoarei os que te amaldiçoarem; e em ti serão benditas todas as famílias da terra). Esta promessa, que se cumprirá na descendência de Abraão, dá origem a uma nova relação com a divindade, ou com a transcendência, se assim o quisermos, desconhecida da sociedade de então. Para além de ser um Deus único, transcendente e pessoal, o Deus de Abraão é um Deus que se relaciona com a sua criação através de pactos, que Ele honra e aprofunda, na medida da obediência do homem.
A Abraão, por seu lado, é exigido que se entregue à revelação de um Deus que se auto-revela e siga, passo a passo, em obediência comprometida, o caminho que se lhe vai abrindo no cumprimento do respeito mútuo pelo pacto estabelecido entre Deus e o Homem e que influenciará não só o momento presente, mas todas as gerações posteriores que receberem como sua herança a promessa abraâmica.
A terra passa a estar indissoluvelmente ligada à descendência de Abraão. Compulsando os pactos subsequentes que Deus vai estabelecendo com o Seu povo, verificamos que a relação do homem com a terra é a de um mordomo que, em nome do seu senhor, a torna produtiva, zelando e velando por ela, respeitando a sua integridade. A terra continua a ser de Deus, mas o Eterno coloca-a à disposição do Homem para nela este se frutificar e frutificá-la. E de facto, nos pactos posteriores, encontramos toda uma série de disposições que realçam esta tripla inter-relação – terra produtiva e respeitada, mansão do homem e reflexo e reflector da glória de Deus.
A semente ou descendência conhecerá a grandeza e erguer-se-á não como pedinte ou uma massa amorfa sem rumo, mas como sociedade organizada, disciplinada, com um programa bem definido de acção, em que a dignidade humana conhece um novo paradigma e em que a relação com o transcendente faz parte integrante do viver humano. Disso é reflexo o episódio do sacrifício não consumado de Isaque no monte Moriá. Filho prometido, filho da impossibilidade, a vida de Isaque é requerida pelo próprio Deus que permitiu a sua existência. Para além das várias lições que o episódio nos ensina, podemos destacar duas: Deus não se compraz com sacrifícios humanos e Deus exige confiança e obediência sem restrições a quem O aceita como presente na sua vida. Numa sociedade que utilizava o sacrifício humano para satisfazer a divindade, este episódio constitui uma ruptura definitiva do paradigma que encara o homem como descartável em nome do ter em preferência sobre o ser, em nome até de uma divindade supostamente clemente e misericordiosa. Nessa semente (ou descendência) contemplada na promessa abraâmica, o transcendente está também presente de forma visível e palpável e disso são reflexo dois episódios da vida de Abraão – a instituição da circuncisão e a mudança de nome do patriarca e sua esposa. A circuncisão, acto realizado no próprio corpo do crente no ponto fulcral da procriação masculina realça o facto não só de que o nosso corpo deve reflectir ele também a relação com a divindade, como ele próprio Lhe pertence. A mudança do nome é também significativa. Numa cultura em que o nome reflecte a própria pessoa e em que, em última instância, acaba por ser a própria pessoa, este episódio indica que a relação com Deus exige um abandono das nossas referências exclusivamente imanentes, exige uma renovação, uma transformação apenas possível pela acção divina interveniente no nosso viver. Abraão deixa de ser Abrão (pai da altura) para ser Abraão (pai de uma multidão, sendo sintomática esta intercalação de um som aspirado indiciador do sopro do espírito divino na natureza humana) e Sara deixa de ser Sarai e passa a ser Sara (princesa). E de novo, numa sociedade em que a mulher era considerada propriedade do homem e como ser sem alma, esta elevação da sua dignidade é sintomática.
No terceiro elemento da promessa/herança abraâmica, a bênção, temos toda uma teologia e programa de acção. A lei da causa e do efeito presente em todas as relações do homem que se movimenta numa tripla dimensão – consigo próprio, com o seu semelhante e com a divindade. Um apelo não apenas à obediência, mas à responsabilidade individual e colectiva, com uma origem inequívoca e insubstituível. Nos pactos subsequentes que complementam esta promessa divina, sem negar a ligação íntima e intrínseca entre causa e consequência, entre obediência e transgressão, a tónica é colocada indiscutivelmente na bênção resultante da actuação em obediência alicerçada e avalizada pela fidelidade divina. A bênção, o favor, a graça, a misericórdia de Deus tornam-se extensíveis a todos quantos entrarem em contacto com o recipiente da promessa divina. A tónica é colocada na bênção e não na maldição, porque Deus não tem prazer na destruição da sua criação, conforme ecoa o profeta Ezequiel (33:11, “A Bíblia para Todos”) – “Diz-lhes que, tão certo como eu ser o Deus da vida, lhes garanto que não tenho prazer em ver um transgressor morrer. O que eu gostaria era de o ver deixar de pecar e viver.”
Este, num registo extremamente sucinto, o conteúdo da promessa de Deus a Abraão a qual, a partir do momento da sua recepção e aceitação se transforma na herança que o patriarca lega a todos os seus descendentes.
Abraão teve vários filhos de diversas mulheres. Podemos classificá-los em quatro categorias, indicado pela ordem do seu aparecimento:
Os filhos da servidão, representados por Ismael, filho da escrava Agar;
Os filhos da promissão, simbolizados em Isaque, filho da amada esposa de Abraão, Sara;
Os filhos da solidão, consubstanciados nos filhos da concubina Quetura, após a morte de Sara que, sem dúvida, deixou no coração de Abraão um vazio difícil de preencher;
Os filhos da adopção, reflectidos em todos quantos, em todo o lugar, aceitam colocar-se em obediência ao Deus de Abraão, mesmo sabendo não terem qualquer direito de primogenitura, adopção essa que se obtém, segundo as Escrituras, apenas e só através do acto de amor de Cristo Jesus por todos nós quando se entregou no altar do Calvário a uma morte vicária, pela qual, pela pena do apóstolo Paulo, podemos agora aproximar-nos de Deus e chamar-Lhe Pai.
Cada um destes tipos de filhos representa um sector da humanidade com características próprias e todos em conjunto constituem a humanidade na sua totalidade. Todos eles são herdeiros da herança deixada por Abraão à sua posteridade. A herança é a mesma, mas a forma como ela é vivida, transmitida e em alguns casos imposta, depende da condição em que cada filho se insere, condicionando toda a sua cosmovisão, o seu estar-no-mundo, o seu estar-com-o-outro.
Os filhos da promissão assumem o seu estatuto de filhos legítimos e é-lhes tentador considerarem-se os únicos com direitos absolutos à herança, numa atitude e visão legalista da sua condição que os faz considerarem-se os eleitos entre os eleitos, a nata da nata da sapiência e da resistência. Um filho da promessa sabe que é filho e comporta-se como filho com uma atitude de temor reverencial para com o pai.
Os filhos da escravidão não conseguem eximir-se a uma mentalidade de fatalismo que a curto ou longo prazo os reduz a uma posição de subserviência, de inferioridade, de perseguidos pelos que se consideram senhores. Um filho de escrava nunca pode encarar o senhor como pai, mas sempre como senhor, como dominador, cuja vontade final é desconhecida do filho.
Os filhos da solidão não conseguem escapar à angústia do niilismo, ao desespero de quem encara e considera a vida sem sentido. Um filho da solidão considera-se sempre resultado de uma segunda opção em que a razão de viver não é o amor mas a necessidade. Um filho da solidão encara o pai como ausente ou não existente.
Os filhos da adopção sabem que são filhos não por direito de primogenitura, mas em resultado de um acto de amor, de entrega e de dedicação. O filho da adopção sabe que não merece o estatuto de que goza e que lhe foi outorgado por um acto voluntário de entrega a ele estranho. O filho da adopção conhece o sabor da gratidão e encara o pai como aquele que tudo fará para o salvaguardar.
Para além da herança comum, cada um destes grupos de filhos depende da palavra, reduzida a livro, que se torna repositório de toda a sua práxis e ethos. E essa palavra, que reflecte a condição do filho, perpetua não apenas a herança, mas a forma como cada um a encara, a vive e a transmite.
A herança, repetimos, é a mesma, mas a forma como a vivemos, a transmitimos e por ela nos inter-relacionamos depende da interiorização da nossa condição face ao pai de quem somos herdeiros. Essa condição condiciona a nossa cosmovisão, condiciona a forma como vemos o outro, condiciona o nosso modelo de sociedade, condiciona a nossa relação com o transcendente. Cabe a cada um de nós decidir qual o nosso estatuto de filho.