Precisamos ou não de salvação?

PRECISAMOS OU NÃO DE SALVAÇÃO?

Texto publicado originalmente no “Jornal da Amadora” em 1998, num debate público sobre a fé cristã com o Dr. Lopes Vieira, um dos colaboradores regulares do referido periódico e que colocara ao autor a questão da salvação, de quê, porquê e como.

            Escrevo este texto por dever de consciência. Não sei se será publicado ou não. O esforço despendido na sua redação valerá sempre a pena no propósito de apresentar ao Dr. Lopes Vieira em primeiro lugar, à redação do Jornal da Amadora em segundo lugar e, porventura, a todos os leitores do mesmo, alguns apontamentos sobre a Bíblia e sobre o seu conteúdo que de uma forma tão acérrima tem sido posta em causa.

Conheço a Bíblia desde pequeno e considero ser ela um livro excepcional de sabedoria, um património da cultura universal e muito mais do que isso – a revelação escrita de Deus a partir da qual podemos conhecer e compreender o seu propósito em relação à raça humana. Não sou um personalidade de prestígio no domínio da cultura ou da política, para referir a esse estatuto a minha opinião, no entanto é certo sabido que muitos dos expoentes máximos da cultura mundial e portuguesa fizeram afirmações claras sobre o seu valor inexcedível. Todas essas referências merecem a nossa atenção e a nossa reflexão pelo que significam sobre o conteúdo da Bíblia, levando-nos a abordá-la com total respeito e muita humildade.

Mas a opinião que mais me impressiona sobre a Bíblia é aquela que saíu dos lábios de Jesus Cristo – personalidade extraordinária sobre a qual muitos outros têm investido o seu verbo. Nele sim e em virtude da forma como viveu e do impacto produzido universalmente e que ainda hoje está presente e muito vivo nos quatro cantos do mundo, acredito, sem sombra de dúvida, que ela é a única Palavra de Deus. Conheço outros livros considerados sagrados em outras religiões, mas nenhum deles pode apresentar as credenciais que a Bíblia apresenta e nenhum deles é sancionado por uma personalidade ímpar como é a de Jesus Cristo.

Acredito, mesmo assim, que qualquer que seja a opinião que sobre ela se tenha, o conteúdo de uma obra literária tem que ser abordada tendo todo o respeito pelo seu contexto cultural, procurando a intenção dos que a escreveram e fazendo todo o esforço possível para compreender o seu pensamento. Uma crítica que descure estes pressupostos será tudo menos um estudo imparcial e independente. Será muito mais um fruto do preconceito, do que uma denúncia de contradições inerentes ao texto e ao pensamento em análise.

Tratando-se ainda por cima de um assunto que se prende com a vida do homem e a expectativa de um futuro eterno, todos os cuidados são poucos, quando nos debruçamos no que estamos a analisar. Parafraseando o apóstolo Paulo reconheço que “nada se pode contra a verdade senão a favor da verdade”, e em última análise só se deixará confundir nas suas convicções e na sua fé quem está nisso interessado. O problema, como disse um conhecido apologeta evangélico contemporâneo, raramente está na mente mas, isso sim, na vontade. E, quando a vontade não quer, não há argumentos que convençam a cabeça. Jesus Cristo já dizia há dois mil anos aos seus detratores religiosos: “Qual a razão porque não compreendeis a minha linguagem? É porque sois incapazes de ouvir a minha palavra.” (João 8:43)

Felizmente existem hoje em dia em português vários estudos que mostram claramente a estrutura lógica da Bíblia sem escamotear os pontos difíceis de entender, mas que não obscurecem a globalidade do seu pensamento. O não racional não tem que ser obrigatoriamente irracional e o mistério é parte imprescindível da vida e do pensamento do homem. Ai de nós quando queremos à viva força anular e erradicar o mistério da nossa vida e do nosso pensamento.

Convém ainda dizer que gosto particularmente de ler alguns dos pensadores que se posicionam como críticos da Bíblia. O interessante é que mesmo as profecias mais radicais de expulsá-la da cultura e da espiritualidade goraram-se de forma rotunda, mesmo quando foram suportados por regimes que não olharam a meios para tentar extinguir do coração do homem a sua fome por Deus, fome esta que como disse Jesus Cristo só a Palavra de Deus pode verdadeiramente saciar.

Este meu texto surge fundamentalmente a partir da leitura do texto que o Dr. Lopes Vieira escreveu sobre “O Mistério da  Salvação. A este propósito gostaria de adiantar o seguinte:

  • O pecado adâmico, apresentado na forma de comer da árvore da ciência do bem e do mal, é muito mais do que aquilo que podemos captar e não traduz certamente o provar “gastronómico” nem as “relações amorosas”. A ideia de que na criação do homem a decisão acerca do que é certo ou errado não está dentro das suas atribuições, mas pertence ao foro divino, parece-nos muito mais adequado. Esta decisão e simultaneamente as várias consequências que decorrem dela, estão aí bem patentes com todo o seu cortejo de injustiças. A história humana, revela bem como aí reside o dilema do ser humano, tanto individualmente como socialmente. Mesmo não querendo aceitar o relato bíblico e a forma literária como ele é apresentado, o facto é que os homens ainda não se entenderam a este propósito e mantém-se em aberto a necessidade de uma decisão que seja superior aos limites humanos tão eivados do egoísmo. A história humana também está recheada de pseudo divindades que, totalitariamente, têm tentado impor as suas definições de certo ou errado. Desde a extrema esquerda à extrema direita, temos exemplos de sobra. Todos estes esforços se têm gorado.
  • A maior de todas as consequências do homem se ter apropriado do que deveria ser pelouro da exclusividade de Deus e prova absoluta da solidariedade entre a criatura e o Criador, o reconhecimento e a aceitação de Deus, foi o rompimento do relacionamento e de, a partir desse momento, o homem ter ficado separado de Deus. É aqui que reside a verdadeira essência do pecado. Existem outras consequências que se manifestam aqui e acolá, durante períodos mais ou menos extensos e com maior ou menor gravidade, mas a separação do homem de Deus tem, ou pode ter, uma consequência eterna. O inferno nada mais é do que isso – separação eterna de Deus com tudo o que acarreta essa separação.
  • Já no que é considerado o proto evangelho no livro de Génesis encontramos Deus matando animais para cobrir a nudez do homem (despido que ficara da glória divina) e Deus aceitando o sacrifício de Abel e rejeitando o de Caim, porque este pretendia com os frutos do seu campo impor o seu próprio modelo de salvação. A salvação na Bíblia é obra divina e não humana. Só Deus nos pode salvar. Tudo isto aponta para Jesus Cristo.
  • Moisés não é o primeiro na explicitação da existência de um só Deus. Logo após o registo a que fizemos referência no ponto anterior, passando pelos patriarcas – Abraão, Isaque, Jacó, esta afirmação é feita sem rodeios. Muitos deuses são apenas a confirmação do dilema anterior. Não existe uma única definição do que é certo ou errado. Estas definições andam ao sabor dos tempos e das vontades, das marés dos interesses e dos oportunismos individuais e de classe. Os deuses são a projeção do seus criadores com todos os laivos dos seus egoísmos e perversidades.
  •  O facto de Moisés ter apresentado uma consequência para o primeiro mandamento e de Jesus Cristo ter nascido algumas centenas de anos após, não afeta a necessidade de salvação. Para que o homem seja reconciliado com Deus, é necessário que a exigência da justiça divina fosse realizada.
  • Isaías não sai fora do modo como Deus mostra a necessidade da morte de alguém como substituto para quem falha diante da lei divina. O que Isaías regista e denuncia é a hipocrisia de quem perdeu o temor que a própria recomendação divina abrigava. É bom ler o restante do texto para perceber precisamente isso. “(…) não posso suportar iniquidade associada ao ajuntamento solene.” (Isaías 1:13b) Leia-se em Isaías precisamente todo o capítulo 53 que mais não é do que uma profecia que aponta para Jesus Cristo, como o sacrifício para o qual apontam como símbolos todos os sacrifícios de animais anteriores. Eles apenas anunciavam o sacrifício perfeito de “O Justo”.
  • Encontrar em Jesus Cristo base para considerar que a salvação não fazia parte do seu propósito também não tem respaldo no relato completo dos evangelhos. O evangelista João tem cuidado em responder a esta interpelação quando regista as palavras de Jesus enunciando o facto de que o que o moveu foi o negócio que se estava a desenrolar na casa do seu Pai. “Tirai daqui estas cousas; não façais da casa de meu Pai casa de negócio.” (João 2:16)
  • Existem muitas outras declarações nos evangelhos que não nos permitem tirar a conclusão de que Jesus não considerava a sua vida fora do que era o contexto judaico da revelação bíblica. Existe uma sequência lógica e continuidade sem fratura entre os profetas e Jesus Cristo. Senão vejamos: “Então Jesus, chamando-os, disse: Sabeis que os governadores dos povos os dominam e que os maiorais exercem autoridade sobre eles. Não é assim entre vós; pelo contrário, quem quiser tornar-se grande entre vós, será esse o que vos sirva; e quem quiser ser o primeiro entre vós, será vosso servo; tal como o Filho do homem, que não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos.” (Mateus 20:25-28)
  • É interessante também aqui fazer uma citação de João Baptista quando este refere acerca de Jesus Cristo: “Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo!” (João 1:29)
  • Para lá das palavras de Jesus Cristo ao longo de todo o restante Novo Testamento a verdade apresentada é sempre a mesma. E não se pode invocar que isto decorre da influência do pensamento judaico deturpando as motivações de Cristo. Paulo que é o apóstolo que se volta para os gentios bate precisamente, em todas as suas cartas, nesta mesma tecla. Paulo não precisava de manter essa postura, porque os gentios não sabiam nada acerca do Velho Testamento e dos profetas judaicos. No entanto ele não alterou em nada o que era comunicado aos judeus. Poder-se-ia dizer que isto também era decorrente da instrução judaica de Paulo. Este argumento não se mantém de pé quando se verifica o que o próprio Jesus falou acerca de si mesmo e da sua morte. “Graça a vós outros e paz da parte de Deus nosso Pai, e do nosso Senhor Jesus Cristo, o qual se entregou a si mesmo pelos pecados, para nos desarraigar deste mundo perverso, segundo a vontade de nosso Deus e Pai, a quem seja a glória pelos séculos dos séculos. Amém. Admira-me que estejais passando tão depressa daquele que vos chamou na graça de Cristo, para outro evangelho; o qual não é outro, senão que há alguns que vos perturbam e querem perverter o evangelho de Cristo.” (Gálatas 1:3-6)
  • Ao longo da história do cristianismo o que se verificou foi precisamente uma fuga à salvação através da morte de Jesus Cristo. Foi a Reforma protestante do século XVI que reabilitou esta vertente essencial da teologia cristã bíblica. Ainda hoje, à rebelia do texto bíblico, muitos são os que querem empurrar o homem para uma salvação conseguida à custa de boas obras, da sua própria caridade, das suas virtudes, da ação social e política. A Bíblia, tanto no Velho quanto no Novo Testamento não nos permite tirar essa conclusão e apoiar esse ponto de vista. Claramente a Bíblia fala, tanto num como no outro testamento, da necessidade de que alguém morresse no lugar do homem. “Ora, se invocais como Pai aquele que, sem aceção de pessoas, julga segundo as obras de cada um, portai-vos com temor durante o tempo da vossa peregrinação, sabendo que não foi mediante cousas corruptíveis, como prata ou ouro, que fostes resgatados do vosso fútil procedimento que vossos pais vos legaram, mas pelo precioso sangue, como de cordeiro sem defeito e sem mácula, o sangue de Cristo, conhecido, com efeito, antes da fundação do mundo, porém manifestado no fim dos tempos, por amor de vós, que, por meio dele, tendes fé em Deus, o qual o ressuscitou dentre os mortos e lhe deu glória, de sorte que a vossa fé e esperança estejam em Deus.” (I Pedro 1:17-21)
  • É interessante verificar esta verdade à luz do que aconteceu com Abraão quando Deus lhe pediu o seu filho. É mais interessante ainda se tivermos em consideração o que significava uma aliança naqueles tempos. Deus estava entrando em aliança com um homem pedindo-lhe o seu filho para que ele mesmo viesse a dar o seu próprio filho. Para o filho de Abraão houve um substituto para o Filho de Deus – Jesus Cristo, não houve qualquer substituto.
  • Pode ser que para o homem contemporâneo a mensagem da salvação encerre algo de estranho e de “intragável” culturalmente. Poderá ser que para o homem moderno seja muito mais bonito construir a história de Jesus com base na inveja e na injustiça de judeus e romanos por causa das Suas palavras e atitudes. Mas este não é apenas o problema do homem contemporâneo este foi sempre o problema do homem através de toda a história. A Bíblia é também um testemunho a este respeito. Veja-se o que Paulo escreve a este propósito: “Porque tanto os judeus pedem sinais, como os gregos buscam sabedoria; mas nós pregamos a Cristo crucificado, escândalo para os judeus, loucura para os gentios; mas para os que foram chamados, tanto judeus como gregos, pregamos a Cristo, poder de Deus e sabedoria de Deus. Porque a loucura de Deus é mais sábia do que os homens; e a fraqueza de Deus é mais forte do que os homens” (I Coríntios 1:22-25) Não admira que ainda hoje o homem tenha dificuldade em aceitar e relutância em aceder. O orgulho do homem demanda uma salvação realizada por ele mesmo. O Evangelho aponta para uma salvação que é obra divina e que só ele exclusivamente podia realizar.
  • Permita-me acrescentar que é aqui que reside precisamente a grandiosidade do cristianismo e a sua singularidade. Em todas as restantes religiões não encontramos nada de semelhante. É só na Bíblia que nós temos a revelação de Deus  que se dispõe Ele mesmo a  salvar o homem. Por isso encarna – não se mantém distante. Vem ao encontro do homem não apenas numa visita de cortesia, não apenas para diagnosticar o problema do homem e da sociedade, não apenas para denunciar a hipocrisia da religião, não apenas para reafirmar a lei, mas para viver essa lei e morrer por aqueles que não a conseguem realizar. Isto é muito mais bonito. “Ela dará à luz um filho e lhe porás o nome de Jesus, porque ele salvará o seu povo dos pecados deles.” (Mateus 1:21)
  • O evangelho não descura a importância das obras, mas elas são apenas o resultado da salvação e não a condição para essa salvação. Se assim fosse ninguém se salvaria. A salvação não é apenas a resolução das consequências imediatas dos atos humanos, mas principalmente a reconciliação do homem com Deus. “Porque pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós, é dom de Deus; não de obras, para que ninguém se glorie. Pois somos feitura dele, criados em Cristo Jesus para boas obras, as quais Deus de antemão preparou para que andássemos nelas.” (Efésios 2:8-10)
  • Diante da Bíblia, de Adão e Eva aos patriarcas, de Moisés aos profetas, de João Baptista a Jesus Cristo, dos apóstolos e de Paulo, em todos eles encontramos um fio condutor da salvação que é recebida das mãos de Deus pela morte e ressurreição de Jesus Cristo.

A terminar apenas desejo manifestar o meu sincero desejo de que todos pudessem entender e aceitar o Evangelho – estas boas novas de que o homem necessita desta salvação que só Deus nos pode outorgar na sua misericórdia. O problema é mais grave do que o que podemos ver por nós próprios apesar de todos os sintomas que nos perseguem à milénios. Precisamos ser salvos de facto!

Samuel R. Pinheiro

Março 98

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