O Pedido de Tiago e João

O Pedido de Tiago e João

Mateus 20:17-28

Jorge PinheiroDr. Jorge Pinheiro
Para lá de Mateus, este episódio encontra-se também em Marcos 10:32-45 e Lucas 18:31-34. Em conjunto, apresentam aspectos e pormenores diferentes entre si e, por isso, são relatos que exigem uma harmonização. Como base, utilizaremos o registo de Mateus.

v. 17: E subindo Jesus a Jerusalém.

Jesus encontrava-se na Pereia (Mateus 19:12) e dirigia-se para Jerusalém via Jericó.

Se quisermos ver algum simbolismo neste trajecto, podemos dizer que Jesus seguia da cidade da guerra (Jericó) para a cidade da paz (Jerusalém). Basta recordar que Jericó está ligado a um episódio de guerra, conquista e destruição e que o termo Jerusalém pode ser traduzido como “cidade da paz”. Esse é o caminho que Ele nos convida a trilhar. A cidade da guerra foi conquistada pela força das armas mas a cidade da paz foi conquistada pelo sofrimento e pela entrega. Não há paz se não estivermos dispostos a experimentar o sofrimento e uma entrega pessoal.
v. 17: chamou de parte os discípulos e no caminho disse:

Jesus não se limitou a enviar os discípulos sozinhos: “Ele chamou-os a si.”
Jesus não guardou para si as suas intenções: “Disse.”
Jesus não ficou na retaguarda, resguardado “no caminho”. Ele não só acompanhou os discípulos, estando no meio deles, como toda a Sua acção não foi passiva mas activa. “No caminho” – ele caminhou.

E que lhes disse Ele?

v. 18: Eis que vamos para Jerusalém.

Note-se o para. Não iam a mas para. Não iam de passagem mas para ficar. Iam com um propósito. A nossa caminhada rumo à paz tem de ter um propósito e o propósito de lá ficar, dispostos a tudo de ordem pessoal para que a paz permaneça. Se queremos ser soldados, temos de ser soldados da paz, um pouco à semelhança dos actuais bombeiros que a si próprios se designam por “soldados da paz” e que apagam fogos, resgatam vidas, carregam os velhos, protegem os desprotegidos, recuperam bens perdidos, evitam ou minoram catástrofes, seguindo o seu lema “Vida por Vida”. Da minha parte, homenagem e louvor aos bombeiros.

E que iam fazer a Jerusalém?
vv. 18-19: O Filho do homem será entregue aos príncipes dos sacerdotes e aos escribas e condená-lo-ão à morte e o entregarão aos gentios para que dele escarneçam, o açoitem e crucifiquem e ao terceiro dia ressuscitará.

Jesus revela aos discípulos o que se vai passar. Torna-os participantes ou pelo menos conhecedores das Suas intenções. O clímax, o ponto máximo da vida de Jesus aproxima-se e Ele quer que os Seus não fiquem na ignorância.

Que exemplo para os líderes actuais. Quantos deles não agem em segredo, não envolvendo os liderados numa tarefa que se pretende comum e escondem a totalidade ou parte dos planos de acção? E quantos não apelam ao sacrifício, ao esforço e à entrega dos seus liderados e se excluem de toda essa entrega que se pretende e tem de ser comum?

Esta é a terceira vez em Mateus que Jesus revela que irá passar por aquilo que é conhecido como a Sua Paixão – a Sua condenação, morte e ressurreição:

• Mateus 16:21 – no seguimento da confissão de Pedro, reconhecendo a messianidade de Jesus;
• Mateus 17:22-23 – após a cura do epiléptico;
• Mateus 20:18-19 – antecedendo o pedido de Tiago e João.

Há uma quarta ocasião, em Marcos 9:31, que antecede a discussão de quem seria o maior no reino de Deus.

No versículo 18, vemos que Jesus declara sem rodeios que, uma vez entregue aos responsáveis religiosos, será por estes condenado à morte. Quando a religiosidade se sobrepõe à espiritualidade, a verdade torna-se incómoda e o caminho a seguir é eliminá-la sem hesitações. Este é um processo que se repete vez após vez em todos os quadrantes da vida em sociedade e que tragicamente não está ausente em muitas hostes ditas cristãs. Que o Senhor nos guarde e nos ajude para que a nossa teologia pessoal ou grupal não se sobreponha à limpidez cristalina da revelação do Evangelho.

É que, cuidando estarmos a ser guardiões da verdade, podemos acabar por ser um tropeço para todos os que, com um coração quebrantado e arrependido, conforme exige a Escritura, querem apresentar-se doentes como estão Àquele que os pode curar e restaurar. Em vez de os deixarmos entrar para serem tratados e curados, exigimos a apresentação de uma credencial assinada por uma qualquer entidade, por norma abstracta, controladora do acesso ao Evangelho.

O versículo 19 menciona os gentios. Aqui, referem-se à autoridade romana. Ao tempo, qualquer condenação à morte tinha de ser ratificada pelas instâncias judiciais romanas. Ao longo da História, este é um debate que continua em aberto: quem matou Cristo? Judeus ou Romanos? Há quem queira encontrar um terceiro executor: Deus. E enchem páginas de teologia, demonstrando que foi Deus quem matou Jesus, abandonando-O à Sua sorte porque, encarnando o pecado, Jesus levou Deus a não ter outro remédio senão afastar d’Ele a Sua presença. Que evangelho macabro, sinistro e malvado esse.

Se dizemos que Jesus morreu por nós, então só nos resta concluir que foi o nosso pecado que O matou. E se foi o nosso pecado que O matou, não podemos deixar de O amar e de nos esforçar, até mais não podermos, por não pecar, procurando a cada momento identificar a nossa vida com o modelo de ser humano perfeito que Ele preparou para nós.

O anúncio de Jesus está sem dúvida carregado de drama, de tragédia, de tristeza, de desespero e de impotência. Se isso vai acontecer, nada há que possamos fazer para o impedir e a única saída viável e natural parece ser o desespero.

Mas – e a grande notícia e consolo que o Cristianismo oferece – o processo não acaba ali – Ele ressuscitará. E se é verdade que, conforme predisse, foi entregue aos religiosos, foi condenado por estes à morte e foi escarnecido, açoitado e crucificado pelos gentios e morreu segundo as leis da Natureza, se tudo isso, repitamo-lo, é verdade porque aconteceu, também não é menos verdadeira a Sua ressurreição. Jesus ressurgiu, está vivo, intercede por nós e voltará segunda vez, não como um D. Sebastião mítico, mas como Rei dos reis e Senhor dos senhores.

Após esta declaração, Lucas (Lucas 18:34) afirma que os discípulos não captaram o seu significado e alcance. Realmente, é estranho porque, conforme já vimos, esta não era a primeira vez que Jesus anunciava os Seus sofrimentos. Talvez porque essa afirmação contradissesse a ideia que eles tinham da majestade do Messias. Ou talvez porque lhes parecesse impossível ou improvável que a rejeição de Jesus por parte do sistema chegasse a esse ponto, apesar de serem testemunhas de que a mensagem de Jesus incomodava muita gente e ia ao arrepio do que os outros mestres ensinavam e praticavam.

Desconhecemos a razão dessa incompreensão dos discípulos. Mas ela acaba por nos ser familiar e contemporânea. Quantos de nós, embalados por uma interpretação tradicional das Escrituras, tornada quase um dogma, temos dificuldade em conciliar determinadas passagens da Revelação com aquilo que tomamos como adquirido, com aquilo que consideramos a única interpretação possível?

O versículo 20 introduz uma divergência com o relato de Marcos (Marcos 10:35). Mateus diz que o pedido é feito pela mãe de Tiago e João, enquanto Marcos afirma que o pedido foi feito pelos dois irmãos.

São possíveis duas respostas:

• A mãe dos irmãos encontrava-se no grupo (versão de Mateus).
• Os dois irmãos verbalizaram um pedido ou desejo expresso da mãe (versão de Marcos).

No entanto, apesar desta discrepância, ambos os relatos são concordes quanto ao conteúdo e matéria do pedido. E o pedido consiste em que Jesus concedesse aos dois a possibilidade de um se sentar à direita e o outro à esquerda de Jesus quando este ocupasse o trono do Seu reino (v. 21).

Muito provavelmente, ainda lhes ecoava a garantia dada por Jesus de que os discípulos se assentariam sobre doze tronos para julgarem as doze tribos de Israel (Mateus 19:28).

Pelo pedido, e ainda mais pela resposta de Jesus, não é descabido concluir que os discípulos, ou pelo menos estes dois, ainda não tinham percebido as características especiais do Reino de Cristo, que não se regia segundo as normas de um qualquer reino humano.

Esta conclusão detecta-se no início da resposta de Jesus: Não sabeis o que pedis (v. 22). No resto da resposta, Jesus sonda os pensamentos dos dois irmãos, forçando-os a declarar em que moldes viam o Reino de Cristo, uma vez que Jesus prossegue: Podeis beber o cálice que eu hei-de beber e ser baptizados com o baptismo com que sou baptizado?

Na aparência, a resposta dos dois leva a supor que eles teriam entendido a essência do Reino. Quanto a mim a resposta não é mais do que um adiamento, de um compasso de espera.

O cálice aponta para o que nos pode acontecer nesta vida, no nosso encontro com as circunstâncias. Pode representar tanto o que de bom nos acontece (Salmo 16:5 – O Senhor é a porção da minha herança e do meu cálice; Salmo 23:5 – …unges a minha cabeça com óleo, o meu cálice transborda; Salmo 116:13 – Tomarei o cálice da salvação; Jeremias 16:7 – …nem lhes darão a beber do copo de consolação) como o que de mau nos atinge (Salmo 75:8 – Na mão do Senhor há um cálice, cujo vinho ferve, cheio de mistura e dá a beber dele; Apocalipse 14:10 – Também o tal beberá do vinho da ira de Deus que se deitou, não misturado, no cálice da Sua ira.)

Como Cristãos, quando se fala em cálice, recordamos de imediato a oração no Getsémani: Passe de mim este cálice. (Mateus 26:39), em que o cálice está associado ao sofrimento experimentado por Cristo.

Na segunda metade da resposta, Jesus refere o baptismo: Podeis ser baptizados com o baptismo com que sou baptizado? O baptismo aponta para uma dissolução pessoal e voluntária num meio que nos é hostil e até fatal. Etimologicamente, significa “mergulhar” e mergulhar bem fundo. Nesta resposta de dupla interrogação, estão implícitos o sofrimento (o cálice) e a morte (o baptismo).

A resposta dos dois não se fez esperar: Disseran-Lhe eles: Podemos. (v. 22). A história futura confirma que, conscientes ou não das implicações da resposta, estavam a ser sinceros. Tiago foi o primeiro apóstolo a conhecer o martírio – foi morto à espada por Herodes Agripa (Actos 12:1), enquanto João viveu o exílio na inóspita ilha de Patmos, onde teve a visão do Apocalipse.

Podemos dizer, como Robert Little, que “Tiago morreu como mártir e que João viveu como um mártir”. Recordemos que mártir significa testemunha.

Relembremos que Tiago e João pertenciam a um grupo mais estrito dos Doze em que se incluía Pedro, testemunha do momento alto da vida de Jesus – a Sua transfiguração; recordemos também que no jardim do Getsémani Jesus os tomou à parte, tendo eles testemunhado a tristeza e a angústia do Mestre e que João era chamado “O discípulo amado”, muito próximo de Jesus, em cujo peito se reclinava.

Talvez por todos estes episódios os dois irmãos se julgassem credores ou merecedores de uma benesse especial de Cristo e, por isso, se tenham atrevido a formular tal pedido.

Sentar-se à direita e à esquerda da majestade implica o reconhecimento de segunda autoridade do reino. O que os dois irmãos estavam a pedir era nem mais nem menos que uma posição de autoridade sobre todos os outros agentes de autoridade, apenas inferior à autoridade suprema. Recorde-se que Jesus está sentado à mão direita do poder de Deus (Lucas 22:69).

Jesus confirma (v. 23) que os dois beberiam o cálice e seriam baptizados com o Seu mesmo baptismo (Marcos 10:39). Isso de facto cumpriu-se como já vimos. No entanto, sentar-se à direita e à esquerda, isso estava fora de questão (Mateus 20:23). É assim que este texto deve ser entendido e não como se a Jesus faltasse o poder para o conceder. Foi como se Jesus dissesse: “Essa atribuição não depende dos vossos esforços nem é uma recompensa pela vossa dedicação.”

De facto, no reino de Deus há dois agentes intervenientes: Deus e o Homem. É o que vemos em João 3:16 que também nos diz que o que Deus tinha a fazer já fez (os verbos de que Deus é sujeito estão todos no passado) e que naquilo que é da competência de Deus o Homem não pode intervir. Em sequência, o Homem tem o seu papel a desempenhar no avanço do Reino, que é a sua entrega e dedicação. A atribuição do galardão é da competência exclusiva de Deus.

E esta resposta de Jesus fala à nossa condição e deixa pistas preciosas. Por O seguirmos voluntária e comprometidamente aceitamos ter de passar pela dor, pelo sofrimento, pela angústia, se essa for a porção que Ele nos tem destinada, sabendo que Deus, como justo juiz, nos dará o galardão que nos tem reservado. Caso contrário, se tivermos olhos para o galardão que nós próprios nos atribuímos, estaremos a agir como mercenários, cujo interesse é egoísta e não a busca da maior glória de Deus, conforme Jesus já ensinou: Buscai primeiro o reino de Deus e a sua justiça e todas estas coisas vos serão acrescentadas. (Mateus 6:33).

A reacção dos outros discípulos (v. 24) não podia ser senão de indignação. De indignação não porque considerassem errada a motivação dos dois irmãos mas porque eles se lhes anteciparam no pedido que eles próprios não recusariam solicitar.

Como é tão contemporânea essa atitude. A tentação e a atracção pelo poder são um mal a que poucos conseguem resistir. A História está cheia de exemplos de homens que transformaram a acção do Reino de Deus num mero jogo de interesses, em que o oportunismo campeia e em que a subjugação do outro, recorrendo ao medo e às maldições, é moeda corrente que ganha mais validade com a pompa de títulos e a elocução de pretensas profecias justificativas.

Nos versículos 25-28, Jesus deixa bem clara a natureza do Reino de Deus na sua relação com o poder.

Entre os reinos deste mundo, a ambição maior é o exercício do poder baseado na subjugação dos súbditos. Todos os meios e armas são lícitos para se alcançar essa subjugação que é a deterioração de uma submissão genuína e voluntária. Duas dessas armas são o medo e o servilismo. Em conjunto, transformam os súbditos numa massa alienada, acrítica e supersticiosa.

No Reino de Deus, as coisas não funcionam assim. Tal o líder, assim os liderados. O nosso Rei assumiu a nossa natureza, identificou-se com as nossas fraquezas, sentiu as nossas insuficiências, experimentou as nossas angústias. Riu-se connosco. Chorou connosco. Despiu-se de qualquer título, não impôs a Sua realeza, mas caminhou pelas mesmas pedras que os nossos pés calcorrearam.

Quem entre vós quiser fazer-se grande seja vosso serviçal. (v. 26)

Só pode ser grande aquele que não dispensa quem está no mais fundo do vale mais escuro e o traz para a luz, mostrando-lhe que há um que vê em cada um o potencial para que a glória de Deus encha a terra como as águas cobrem o mar.

A Deus toda a glória.