OS DOIS SEGREDOS

Os Dois Segredos

Jorge 2022-1Dr. Jorge Pinheiro
E tendo nascido Jesus em Belém de Judeia, no tempo do rei Herodes, eis que uns magos vieram do oriente a Jerusalém, dizendo:

– Onde está aquele que é nascido rei dos Judeus? Porque vimos a sua estrela no oriente e viemos adorá-lo.

E o rei Herodes, ouvindo isto, perturbou-se e toda Jerusalém com ele. E congregados todos os príncipes do povo, perguntou-lhes onde havia de nascer o Cristo. E eles disseram:

– Em Belém da Judeia, porque assim está escrito pelo profeta: “E tu, Belém, terra de Judá, de modo nenhum és a menor entre as capitais de Judá, porque de ti sairá o Guia que há-de apascentar o meu povo de Israel.”

Então, Herodes, chamando secretamente os magos, inquiriu exactamente deles acerca do tempo em que a estrela lhes aparecera. E, enviando-os a Belém, disse:

– Ide e perguntai diligentemente pelo menino e, quando o achardes, participai-mo para que também eu vá e o adore.

E, tendo eles ouvido o rei, partiram. E eis que a estrela que tinham visto no oriente ia adiante deles, até que, chegando, se deteve sobre o lugar onde estava o menino. E vendo eles a estrela, alegraram-se muito com grande alegria. E, entrando na casa, acharam o menino com Maria sua mãe e, prostrando-se, o adoraram. E, abrindo os seus tesouros, lhe ofertaram dádivas: ouro, incenso e mirra.

E sendo por divina revelação avisados em sonhos para que não voltassem para junto de Herodes, partiram para a sua terra por outro caminho.
Mateus 2:1-12
Este texto refere dois dos grandes mistérios/segredos do Natal, os magos e a chamada estrela de Belém, ambos inter-relacionados. Não há magos sem estrela e não há estrela sem magos.

Deixando de lado a questão de saber se este relato da Natividade é histórico ou meramente literário-simbólico, centremos a nossa atenção primeiro na estrela e, depois, nos magos. Se considerarmos que é histórico, então teremos de concluir que houve de facto uns magos guiados por uma estrela que os guiou até à terra da Judeia. Se considerarmos que é literário-simbólico, o evangelho segundo Mateus não deixa de ser fiável no tocante à Natividade, uma vez que, tendo por base um facto histórico, interpreta-o à luz do seu simbolismo e descreve-o com um timbre literário. Na realidade, há uma como que preocupação de Mateus em interpretar a trajectória de Jesus desde o Seu nascimento, à luz da Revelação anterior transmitida pelos profetas. E a prova disso são as diversas citações que ele faz da Escritura, afirmando com isso que aquela personagem actua no cumprimento do que dela já estava profetizado. Naturalmente que nesta perspectiva toda a descrição virá recheada de simbolismos que a audiência a que este evangelho se destinava não teria dificuldade em identificar e interpretar. Pondo de lado os magos e a estrela, que podemos considerar uma unidade conceptual, tudo o resto tem base histórica, devidamente comprovada: as cidades (Belém e Jerusalém), a terra (Israel), o poder político-religioso (Herodes, sacerdotes e escribas), o rigor profético (Miqueias 5:2), os guardiões da Revelação (sacerdotes e escribas). Inclusive, até, a marca de oportunismo político de Herodes, o Grande, que a História bem atesta.

Comecemos pela estrela de Belém. Ainda hoje, o mistério permanece e não se pode afirmar com garantia e certeza do que se tratava. Por isso, temos de nos contentar com as diversas hipóteses, restando-nos a opção de escolher a que mais nos agrada ou vai de encontro às nossas convicções preconcebidas ou não. Sem nos preocuparmos em pormenorizar essas diversas opções, podemos reduzi-las a quatro: um fenómeno sobrenatural, um cometa, uma supernova ou uma conjunção de astros celestes. Cada uma delas tem os seus defensores desde a Antiguidade aos nossos dias. Se todas as explicações naturais falharem, há sempre o recurso a uma intervenção sobrenatural, uma vez que o sobrenatural tudo explica e, por vezes, nada explica, antes complica. Das outras três, descartemos o cometa, porque era considerado um sinal maléfico, o que não condiz com o carácter benfazejo do nascimento do menino. Das outras duas, a que acaba por ter mais peso e é a minha preferida, é a da conjunção de planetas, no caso vertente, a de Júpiter e Saturno na constelação de Peixes, que ocorrera antes da morte de Herodes, o Grande em 4 a.C. e que se repetiria por outras duas vezes, uma delas a que se terá juntado a estrela Régulo. A interpretação astrológica (os Magos, como veremos, eram astrólogos) está em consonância com a afirmação da certeza dos Sábios do Oriente: “Onde está o que é nascido rei dos Judeus, porque vimos a sua estrela?”

Passemos aos Magos. A tradição fê-los reis, deu-lhes nome e considera-os em número de três, muito provavelmente por causa dos presentes oferecidos ao Menino: ouro, incenso e mirra. Há até uma lenda piedosa que fala de um quarto mago que se terá perdido dos companheiros e, vagueando durante anos pelo Oriente, acaba por se encontrar com Cristo a caminho do Gólgota. Mas atendo-nos ao texto, verificamos que todas essas afirmações são fruto da Tradição ou da imaginação piedosa. Na verdade, o texto não nos diz que eram reis, nem três e é omisso quanto ao seu nome. Dele, inferimos que eram sábios astrólogos-astrónomos, que vieram do Oriente, que ofertaram os produtos atrás citados, que viram um fenómeno celeste no Oriente interpretado segundo os seus conhecimentos. Também ficamos a saber que, ao contrário das representações de alguns presépios, quando se encontraram com o Menino não foi na manjedoura, mas numa casa e provavelmente seria um bebé cuja idade não ultrapassaria os dois anos, uma vez que Herodes manda matar as crianças de dois anos para baixo. Ficamos também a saber que a “estrela” lhes aparece duas vezes: uma no Oriente e outra na região de Belém da Judeia, o que dá força à hipótese da conjunção de astros que, sendo a de Júpiter e Saturno, ocorreu pelo menos duas vezes. Sendo Júpiter indicador do deus supremo e Saturno considerado o imutável, reunidos na constelação de Peixes, considerada a constelação do deus da sabedoria e do povo judeu, seria fácil a um astrólogo chegar à mesma conclusão dos Magos: na terra dos Judeus nasceu um rei sábio e imutável. É verdade que eles apenas referem “ao que é nascido rei dos Judeus”, mas sendo à época normal considerar os reis como divinos e estando a sabedoria ligada a Deus ou aos deuses, o “sábio e imutável” torna-se implícito a este rei.

Os Magos provavelmente seriam naturais da Pérsia e sacerdotes da religião de Zoroastro, o que não deixa de ser especulação. O que não é especulação é o facto de eles serem astrólogos-astrónomos e de se terem servido dos seus conhecimentos para chegarem à conclusão de que nascera o rei dos Judeus. O facto de serem astrólogos-astrónomos não nos deve surpreender pois à época não se estabelecia diferença entre os dois conhecimentos. Apenas a partir da revolução científica na Europa, por volta do séc. XVIII, é que a astronomia se autonomizou em relação à astrologia. Basta pensar que Copérnico e Képler (sécs. XVI e XVII, respectivamente), considerados pais da astronomia científica moderna eram eles também astrólogos. À época dos magos, o estudo científico dos astros, dos seus movimentos e inter-relações (registo astronómico) andava de mãos dados com as superstições do destino de pessoas e coisas ditado pelas posições dos astros no horizonte celeste (registo astrológico).

Estas são as conclusões a que podemos chegar após uma breve leitura e análise do texto de Mateus. Estando estes dois elementos da Natividade envoltos em mistério, fácil é cairmos na tentação de nos preocuparmos com a sua resolução e de nos perdermos em especulações, esquecendo-nos daquilo que é muito mais importante que determinar a origem dos magos e a natureza da estrela. Na realidade, embora envoltos em mistério e com toda a probabilidade em simbolismo, este episódio encerra lições que essas, sim, nos devem interessar e às quais devemos prestar toda a atenção, fazendo bem em aplicá-las ao nosso viver.

A primeira lição a aprender é que, na busca da verdade, é essencial colocarmos o registo evangélico no centro da nossa busca e extrair dele aquilo que de facto é fundamental e não acessório, seguro e não especulativo, perene e não transitório. No tocante à descoberta da Verdade, o nosso espírito tem de se deixar mergulhar na Palavra da Revelação porque é ela que nos esquadrinha o mais íntimo do nosso ser e nos dirige nos caminhos da verdade. De resto vemos isso no percurso dos magos. O seu conhecimento levou-os ao destino final, mas desembocaram num beco sem saída porque embora no local certo, foram à procura da resposta final na pessoa errada. O que nos diz que Deus nos fala na linguagem que entendemos e que dominamos. A linguagem, dos magos era a astronomia e foi nessa linguagem que Deus lhes falou e os guiou ao destino certo. Mas o seu conhecimento humano precisou da revelação divina para chegar àquele que era o anseio do seu saber e o destino final da sua caminhada. De igual modo, em aplicação do que a epístola aos Hebreus declara de que Deus fala muitas vezes e de muitas maneiras, Deus fala connosco segundo a linguagem do nosso conhecimento individual, desde que o coloquemos ao serviço daquele que tem a palavra final. E quantas vezes Deus não nos tem falado na linguagem do nosso saber? Que à semelhança dos magos coloquemos o nosso saber e o nosso conhecimento nesta caminhada ao encontro do Senhor da vida, o Rei eterno e imutável. Mas seguros também de que onde o nosso conhecimento falha, aí começa a intervenção da revelação. O que nos indica que conhecimento e revelação não são incompatíveis, mas complementares e que aquele sem esta leva sempre a um beco sem saída.

À semelhança dos magos, por vezes o nosso conhecimento pode levar-nos ao lugar errado. No caso dos Magos, levou-os ao centro do que podemos considerar a sede das teorias da conspiração. Os Magos abeiraram-se de Herodes, o Grande que, manhosamente, os procurou enfeitiçar com palavras piedosas: “Procurai diligentemente o menino para que eu também vá e o adore”. Ou seja, os Magos pocuraram no poder político a resposta para as suas indagações. E mal vai o Cristianismo quando tem de depender do poder político, seja ele qual for, para que a sua mensagem seja validada e ratificada. O rei do Cristianismo não pode ser outro senão aquele que é o cumprimento das Escrituras, não pode ser outro senão aquele que tem o respaldo da Revelação, não pode ser outro senão aquele que detém as chaves da sabedoria divina perene e permanente. O seu nome é Jesus! E embora ouvindo uma mensagem herodiana adocicada e na aparência de uma piedade louvável, os magos não perceberam que era uma mensagem enganadora porque por trás dela residia uma conspiração para matar o recém-nascido rei que Herodes catalogou de seu rival. Por isso, podemos afirmar que os Magos estavam perante uma teoria da conspiração. Toda a teoria da conspiração é criminosa e assassina e mal vai o Cristianismo e mal vão os Cristãos quando se deixam embalar por teorias da conspiração por mais doces que sejam, por mais piedosas que na aparência possam ser. De novo, os Magos necessitaram de uma intervenção divina para lhes revelar as verdadeiras intenções de Herodes. Avisados por divina revelação foram para a sua terra por outro caminho. Que à semelhança dos Magos, os Cristãos do nosso tempo possam estar atentos à verdadeira revelação divina no desmascarar dos falsos Messias modernos que, com as suas palavras doces e pretensamente piedosas, querem levar os filhos de Deus ao engano. Tenhamos, pois, os nossos ouvidos atentos ao que Deus revela e leiamos a Sua Palavra não segundo os decretos do coração humano mas segundo o espírito meigo e salvador de quem deu a Sua vida por nós, nunca esquecendo o que Ele disse: “O meu reino não é deste mundo. Se fosse deste mundo, os meus fiéis guerreariam por ele.” O reino de Deus não se impõe pela força, mas pela convicção dos corações através da acção do Espírito Santo.

Uma outra lição que aprendemos com os magos é que eles não se limitaram a ir ao encontro do rei nascido de mãos vazias e estribados no seu conhecimento e saber. Chegando-se à casa onde se encontrava o rei menino, adoraram-no e ofertaram-lhe dádivas. Podemos ver um simbolismo nessas oferendas. Sem menosprezo por outras interpretações, podemos considerar o ouro como reconhecimento da Sua realeza, o incenso, como confirmação do Seu sacerdócio e a mirra como confissão da Sua posição de profeta e prenúncio da Sua morte vicária em favor de toda a humanidade. Cada uma dessas oferendas valiosas reconhecia um aspecto do carácter, da missão e do valor do rei-menino junto de quem colocavam não apenas o produto das suas cogitações, mas também toda a sua pessoa, numa atitude de serviço e reverência. Que nós também nos aproximemos daquele que é rei, sacerdote, profeta e Salvador não de mãos vazias mas com o tributo da nossa adoração e a rendição da nossa posição de seres humanos.

Curioso também é verificar que estes magos não sendo provavelmente judeus, seriam por isso gentios, gente de outra nação, de outra etnia. E neste facto, temos uma outra lição a aprender – aquele que consideramos nosso Rei é o soberano não de uma classe especial ou de uma etnia eleita, mas de toda a humanidade, pelo que, como cristãos, está-nos vedado enveredar pelos caminhos do racismo, da xenofobia ou da segregação com base em alguma diferença, seja ela de género ou de posição sócio-económica ou cultural. Por isso, Paulo podia clamar: “Nele não há judeu, não há gentio, não há masculino nem feminino, não há servo nem livre”. Todos têm entrada livre no Reino de Deus. Apenas temos de nos curvar perante aquele que é Rei deste Reino e ofertar-lhe em primeiro lugar a nossa vida e a nossa devoção.

Ligada aos magos está uma estrela. Muito provavelmente Mateus teria presente o texto de Números 24:17, também conhecido como a Profecia da Estrela: “Uma estrela procederá de Jacob e um ceptro subirá de Israel”. A ser assim, isso explicaria a inclusão da estrela no seu relato natalício. Seja como for, uma estrela guiou os magos e ela levou-os sem falhas ao destino que era o seu. Ela foi como que o seu farol a indicar-lhes o caminho. E ainda que por momentos oculta, no momento da decisão final voltou a aparecer-lhes, desta vez parando sobre o local da sua busca. Que à semelhança dos magos tenhamos os olhos fixos na estrela que guia os nossos passos, sabendo que mesmo quando não a vemos ou por impossibilidade pessoal ou porque por algum outro motivo ela mesma se ocultou, ela continua no céu da nossa vida a guiar-nos e irá aparecer de forma segura para nos mostrar já não o caminho, mas o lugar de repouso e de encontro. Dos vários títulos atribuídos a Jesus, um deles é o que encontramos no livro de consolação de João, o Apocalipse, a Estrela da manhã, conforme vemos em Apocalipse 22:16: “Eu sou a raiz e a geração de David, a resplandecente estrela da manhã.” Ele é a nossa estrela da manhã. Não uma estrela qualquer, mas, note-se, a resplandecente Estrela da Manhã. O seu brilho é o mais intenso que possamos imaginar e Ele guia os nossos passos, o nosso caminhar vacilante ou ousado, em tempos de fartura ou de penúria, em tempos de refrigério ou em tempos de angústia. E é curioso que é num livro de consolação, o Apocalipse, que os homens transformaram num livro de terror, que encontramos este título magnífico – o nosso rei é a nossa estrela da manhã. O seu brilho é próprio, não é reflectido, é intenso, brilhando na escuridão das nossas incertezas. Com Ele, nasceu um novo dia, que, como diz o hino, será um dia de justiça, um dia de verdade, um dia em que haverá na Terra a paz, em que será vencida a morte pela vida e a escravidão enfim acabará. Este é o nosso rei. A ele queremos servir.

Soli Deo gloria

SAC, 9.Dez.2020