As Três Histórias

As Três Histórias

Jorge Pinheiro 6Dr. Jorge Pinheiro

 

 
Porque Herodes tinha prendido João e tinha-o manietado e encerrado no cárcere por causa de Herodias, mulher de seu irmão Filipe. E mandou degolar João no cárcere. (Mateus 14:3,10).
E tendo mandado que a multidão se assentasse sobre a erva, tomou os cinco pães e os dois peixes e, erguendo os olhos ao céu, os abençoou e, partindo os pães, deu-os aos discípulos e os discípulos à multidão (Mateus 14:19).
E respondendo Pedro, disse-lhe: “Senhor, se és Tu, manda-me ir ter contigo por cima das águas.” E Ele disse: “Vem.” E Pedro, descendo do barco, andou sobre as águas para ir ter com Jesus (Mateus 14:28).
Introdução

Com este capítulo, chegamos a meio da narrativa do evangelho segundo Mateus. E chegamos a meio não apenas da narrativa em si mas de toda a trama histórica narrada. A partir daqui, a história encaminha-se para o seu fim num ritmo cada vez mais acelerado e intenso.

É verdade que nos capítulos da segunda metade ainda vamos encontrar parábolas, mas os milagres portentosos são em número reduzido e a narrativa culmina com o que podemos designar de milagre supremo – a ressurreição de Cristo, o triunfo da vida sobre a morte, a vitória do bem sobre o mal, a garantia de que o plano de Deus para a humanidade geral e o ser humano particular se cumprirá até ao último pormenor.

Este capítulo 14 como que encerra toda uma sequência de episódios que revelam um novo olhar sobre o desígnio de Deus para a humanidade, revelando o modo como Deus sempre quis que fosse encarado e vivido pela coroa da Sua criação. Na verdade, partindo da Lei escrita e revelada, Jesus conduz os Seus ouvintes na descoberta da substância e do espírito dessa mesma Lei como que a destapando e revelando o carácter de Quem concedeu essa lei aos homens.

Todo este percurso e discurso de Jesus suscita incompreensão, estupefacção e finalmente perseguição. A partir dele, o autor como que vai encerrando cada capítulo de ensino, de controvérsia, de milagres da primeira parte do seu evangelho e encerra todo o seu período de ensino, mostrando Jesus num recolhimento com os Seus discípulos, de que é prova o Sermão Profético (Mateus 24, 25), o último grande sermão de Jesus. Depois, encaminha-se no Seu jeito sereno para um momento de recolhimento pessoal junto do Pai, em preparação para o maior drama de toda a história humana – a Sua crucifixão e morte, que culminará na ressurreição.

Mas centremo-nos no capítulo 14 e nas lições que dele podemos extrair. Ele é composto por três episódios em que o carácter de narrativa histórica é dominante. Nele, acabamos por encontrar três estórias que não se limitam a uma mera narrativa de factos mas em que podemos descobrir ensinamento profundo. Esses episódios são:

1. A morte de João Baptista.
2. A primeira multiplicação de pães.
3. Jesus andando sobre as águas.

E há uma primeira lição a extrair do conjunto destas três histórias. À semelhança dos que nelas intervêm, cada um de nós tem também uma história individual, ou melhor, um conjunto de histórias parcelares que, no seu conjunto, formam um todo, a nossa história pessoal. E em cada uma dessas histórias parcelares da nossa história pessoal, há lições que podemos extrair que, de acordo com a nossa aprendizagem, podem influenciar toda a sequência futura. Ou, dizendo de outra forma, em cada episódio da nossa vida, Deus fala-nos e revela-nos as Suas intenções. Em momento nenhum se aplica com tanta justeza e pertinência o que Jesus dizia: “Quem tem ouvidos para ouvir ouça!”

Estejamos, então, atentos ao que Deus nos quer dizer em cada episódio vivido na e da nossa vida.
1. A Morte de João Baptista

Por vezes, numa história detemo-nos mais na caracterização de certos elementos da narrativa, que tanto podem ser personagens vivas, humanas ou não, como elementos decorativos e olvidamos o cerne da história, a sua verdade nuclear, aquela que no fundo mais interessa explorar, entender e reter.

No caso da morte de João Baptista, somos tentados a querer saber quem é este Herodes, como se chamava a dançarina e somos capazes de citar em sequência pormenorizada a execução do Baptista, porque é um elemento que nos horroriza. E por sabermos reproduzir a história, convencemo-nos de que nada mais há a acrescentar e de que a conhecemos ao ínfimo pormenor. Mas esse é um conhecimento epidérmico. Se queremos avançar, não podemos ficar apenas com as verdades superficiais. Não podemos contentar-nos com as verdades da superfície das coisas. É que essas verdades são apenas a pele de todo um corpo doutrinário e didáctico que lhe subjaz. E como é rico esse corpo! Nunca nos cansemos de meditar nas histórias da Escritura, sabendo que elas escondem tesouros inesgotáveis. Cabe a cada um deixar-se guiar pelo Espírito Santo que, segundo a garantia de Deus, nos guiará em toda a verdade.

Há algumas verdades que detectamos no episódio da morte de João Baptista, umas mais agradáveis que outras.

A primeira contradiz o falso evangelho que tem vindo a inquinar as igrejas. Esse falso evangelho vende um veneno com rótulo de medicamento. Esse veneno diz que se o crente sofre é porque não tem fé e que a sua vida tem de ser um rol de vitórias contínuas. É verdade que essas afirmações não são falsas em si, mas para serem entendidas têm de ser explicadas ou, se quisermos utilizar uma linguagem mais técnica, têm de estar sujeitas a uma hermenêutica correcta e exigente para que a exegese apresentada não induza ao erro, num despautério despudorado.

É que essas afirmações ditas como chavões de frases feitas assumem-se como mantras mágicos. Ora, as varinhas de condão só existem e funcionam nas histórias de encantar.

Perguntamos:

João Baptista não tinha fé?
Paulo não tinha fé?
Tiago não tinha fé?

E poderíamos continuar, culminando com Jesus que, apesar de tudo quanto disse e fez, sofreu uma morte e um sofrimento horríveis.

Foi por terem fé que todos esses gigantes souberam enfrentar a adversidade, fitando-a não com olhos de carneiro mal morto mas de águia penetrante e de leão possante, dizendo-lhe sem medo que maior é o que está em nós e que nada nos pode separar da convicção que conquistou o nosso ser.

Outra lição que este episódio nos ensina é que os poderosos não escapam ao escrutínio da justeza divina e que se não arrepiarem caminho do seu mau viver acabam transformados em assassinos. E esse é um dos alimentos que o falso evangelho nos quer obrigar a tragar – a sedução pelo poder. Como esse evangelho não tem lugar para o sofrimento, abraça despudoradamente o poder e, com isso, embriagado com as vantagens que o poder oferece, transforma-se em ditador e não hesita em mandar assassinar as vozes discordantes. Embora não literal, esse assassínio funciona como tal.

Em jeito de esclarecimento do pormenor, este Herodes chamava-se Herodes Antipas e era filho de Herodes, o Grande, morto há cerca de 30 anos. Quanto à dançarina, o seu nome era Salomé filha de Herodes Filipe.
2. A primeira multiplicação de pães

Neste episódio, com poucos pães Jesus alimenta uma multidão de, pelo menos, cinco mil pessoas.

Curiosamente, exceptuando o milagre da ressurreição de Cristo, este é o único milagre que nenhum dos quatro evangelhos omite. O outro episódio comum aos quatro é a unção dos pés de Jesus pela mulher pecadora. De acordo com o relato de João, foi na sequência deste milagre que Jesus pronunciou o Seu discurso famoso de ser o pão da vida (João 6:51).

Ninguém ignora o valor do pão e o papel que ele desempenha na dieta alimentar de cada povo. É talvez o alimento de que nunca nos enjoamos de ingerir. No registo popular, pão é sinónimo da própria vida. Quantas vezes um pedinte esmola não dinheiro mas um pão para sobreviver… Pão é também sinónimo dos nossos rendimentos que nos permitem fazer frente às despesas da vida corrente. Não é raro ouvir a expressão: “Esta actividade, este trabalho é o meu ganha-pão.” Neste episódio, podemos dizer, então, que uma das personagens centrais é precisamente o pão, com tudo aquilo que ele representa.

Deixemos de lado a interpretação simbólica que alguns fazem do número de pães e peixes e de pessoas e cestos tanto na primeira como na segunda multiplicação (numa, 5 pães, cinco mil homens e 12 alcofas; na outra, sete pães, quatro mil homens e sete cestos). É verdade que os números falam e muitas vezes têm um valor simbólico e talvez aqui possam ser relevantes, mas parece-me que qualquer extrapolação é pura especulação. Por isso, é preferível ficarmos com aquilo que, com segurança, podemos extrair do tesouro desta arca.

E de novo, em contraste com os bispos do falso evangelho que, arrimados na sua posição de poder, não têm qualquer rebuço em explorar os seus fiéis, sugando-os até ao tutano em nome de uma religiosidade hipócrita e distorcida, Jesus preocupa-se em satisfazer as necessidades dos que O seguem, condoendo-se com a sua condição. E pegando no pouco que Lhe apresentam, multiplica esse pouco quase até ao infinito, satisfazendo e mostrando que quando entregamos nas boas mãos do Mestre o que temos, Ele é capaz de, do pouco, fazer muito.

Ao mesmo tempo, este episódio revela-nos que, quantas vezes, temos nas nossas próprias mãos os recursos necessários para que a acção divina os transforme em bênção para os outros. Não rejeitemos nem menosprezemos aquilo que temos entre mãos como coisa pouca e sem valor, mas decidamo-nos a entregá-lo àquele que com a sua bênção pode fazer muito mais do que pensamos ou imaginamos.

Deus tem dado capacidades a cada um de nós, umas vezes na medida da nossa fé, outras em resultado do nosso engenho e labor. Mas seja qual for a origem da nossa capacidade, ela é o que temos e é com ela que temos de percorrer o caminho da vida.

Há outras lições que podemos extrair deste episódio e que mencionaremos sucintamente:

a. Nem sempre o ambiente do milagre é o mais “santo” (14:15 – ocorreu no deserto).
b. Muitas vezes o milagre acontece numa hora nada convidativa (14:15 – a noite aproximava-se).
c. Nem sempre as vozes de quem, pelo seu trajecto pessoal tem uma relação privilegiada com a revelação divina, é de estímulo (14:15 – o discípulos queriam ver-se livres da responsabilidade de resolver o problema).
d. Embora o milagre seja milagre, isso não significa que a ordem e o planeamento estejam ausentes (14:19 – Jesus ordenou que a multidão se sentasse na erva).
e. O milagre sacia em pleno a nossa necessidade e permite que através de nós outros também possam beneficiar dele (14:20 – o número de alcofas levantadas era superior ao número de pães apresentados).

Muitas mais lições poderíamos extrair mas estas são suficientes para nos aguçar o apetite e levar-nos a mergulhar num texto tão rico como este.

 

3. Jesus anda sobre o mar

Este é um episódio que relata uma impossibilidade física. A verdade é que consideramos impossibilidade física no estado presente do nosso conhecimento actual da natureza do mundo e das capacidades do corpo humano. Se, por hipótese, no futuro a ciência descobrir e provar que o corpo humano tem a capacidade de levitar desde que estejam reunidas as condições necessárias, andar sobre as águas deixará de ser uma incapacidade física. Mas mesmo que, por hipótese, isso se venha a provar possível, este episódio não deixa de ser considerado milagre.

Claro, tudo depende do que entendemos ser a definição de milagre e a sua natureza íntima. Salvo melhor opinião, parece-me que reduzir o milagre ao mero prodígio da realização de uma tarefa inexplicável à época em que ocorre, é uma definição muito pobre. E porquê? Porque uma vez explicado, o suposto milagre deixa de ser milagre. Parece-me que a visão de João é mais rica e mais segura – um milagre é um sinal da presença real de Deus, seja o episódio explicável ou não, replicável ou não. De resto, temos o caso de Moisés: as duas primeiras pragas foram replicadas (Êxodo 7:22; 8:7). Teremos de concluir que essas pragas não foram milagres por terem sido replicadas? Teremos de concluir que, por terem sido replicadas, elas são de qualidade inferior às restantes oito?

Então, isso significa que a nossa atenção não se deve deter o facto de Jesus ter andado sobre as águas, embora isso seja extremamente importante e crucial em todo o ensinamento que extraímos deste episódio.

Na verdade, podemos concluir que o andar sobre as águas foi um meio utilizado por Jesus para chegar a um fim maior.

E o facto de Pedro ter andado sobre as águas prova que o corpo humano tem a capacidade de ser o palco do milagre. Perante a dúvida e o pedido de Pedro, Jesus limita-se a dizer-lhe que ponha o pé a caminho.

A evidência e a certeza diziam a Pedro que caminhar sobre as águas era uma impossibilidade física, mas a sua confiança naquele que ele considerava capaz da realização de qualquer prodígio incitava-o a não olhar para a impossibilidade mas para a certeza da comunhão com aquele que tinha as palavras da vida eterna, como mais tarde irá confessar (Mateus 16:16; João 6:68). Curiosamente, em João esta confissão surge depois do episódio de Jesus a andar sobre as águas.

Apesar de testemunhas do muito que haviam visto Jesus realizar, apesar de terem recebido de Jesus a ordem expressa de atravessarem o mar e de O esperarem na outra margem, apesar da garantia de que o vulto que viam no crepúsculo ainda escuro era Ele, mesmo assim a dúvida e o medo apossaram-se dos discípulos. O que viam não era o Mestre amado mas um fantasma. Quando não encontramos explicação para o que vemos e não compreendemos, transformamo-lo em inexplicável e envolvemo-lo nas roupagens da nossa imaginação. Quão fácil é vermos um fantasma na acção miraculosa e inexplicável do evangelho e deixarmo-nos sucumbir nos braços da dúvida e do medo. Por vezes, nem mesmo a voz suave de quem nos salva nos sossega e exigimos uma prova palpável de quem surge como o impossível.

Convenhamos que Pedro não agiu mal ao pedir a Jesus que lhe desse prova de ser Ele mesmo e não o fruto da sua imaginação e do seu medo. Esse é um gesto a seguir e a imitar. Perante a dúvida, o medo, a angústia, a adversidade, o desconhecido, avançamos baseados numa palavra de autoridade.

E foi o que aconteceu com Pedro. Enquanto se manteve confiante na palavra recebida, avançou ignorando as circunstâncias, olhos fitos em quem era o seu destino. Enquanto se manteve seguro na palavra de ordem, manteve-se vitorioso sobre as águas. Quando deu ouvidos à voz da circunstância, geradora dos seus medos, a sua base de sustentação deixou de ser a palavra e o poder daquele a quem até o mar e o vento obedecem (Mateus 8:27). O resultado não podia ser outro senão ver o chão a fugir-lhe debaixo dos pés.

E a terminar, uma palavra sobre a finalidade do milagre, tanto mais que este episódio que narra um milagre termina com a realização de milagres de cura. Para que serve um milagre? Para que queremos um milagre? A ordem que Jesus deixou aos Seus discípulos não foi: “Eis que faço de vós fazedores de milagres”, mas foi antes: “Eis que faço de vós pescadores e ensinadores de homens. E é apenas quando ensinamos e pescamos que os milagres ocorrem. “Os sinais seguirão aos que crerem” (Marcos 16:17). O milagre é sempre um sinal de que a presença de Deus é real. Se o prodígio não redunda na manifestação da presença de Deus e na glorificação do Altíssimo, então estamos na presença de uma fantochada travestida de evangelho.

Que Deus nos guarde de não crermos que Ele seja capaz de ainda hoje realizar milagres e nos guarde também de Lhe roubarmos a glória e de transformar a proclamação do evangelho numa ópera bufa de mau gosto.