UMA VIAGEM PARA RECORDAR

Amilcar Ribeiro

Dr. Amílcar D. Ribeiro

O comboio Alfa Pendular apareceu vindo do norte parecendo que não iria parar, mas o ruído da travagem foi sinal de que cumpria o horário para receber mais passageiros. A paragem era breve, pelo que apressadamente procuravam identificar e subir para a carruagem que lhes estava assinalada. Entrei também e acomodei-me no lugar que correspondia ao meu título de transporte. Reiniciou a sua marcha. Olhei em volta e observei os meus companheiros de viagem, entre eles jovens, aparentemente estudantes de regresso a casa nas férias da Páscoa, num ruido de conversação que se misturava com o deslizar compassado do comboio pelos carris.

Reparei que, num lugar à minha frente na fila oposta, estava uma figura feminina junto à janela, recostada de tal forma que não lhe via o rosto. Na mesa articulada pousava um caderno em que escrevia a breves espaços e na mão esquerda segurava um livro aberto que lia e que lhe suscitava a escrita. A cena prendeu-me a atenção. Apenas via duas mãos, a esquerda segurando o livro, que folheava por vezes, e a direita que escrevia. Entre a leitura e a escrita estava uma mente invisível que processava o que lia  e que dava ordens à mão que escrevia, com uma fluidez suave, elegante e decidida, o que durou todo o tempo da minha viagem. Estaria a realizar algum trabalho? Apenas a ler e a tomar notas sobre a leitura? Nunca o saberei, mas também não era o que me interessava.

Contemplando aquele cenário, dei comigo a pensar como é possível alguém acreditar que o universo e todos os astros e seres que nele existem, tenham aparecido de forma espontânea, resultando de biliões de acasos até chegarem à perfeição que eu observava.   Pessoas que assim pensam argumentam com o tempo do universo. Mais milhão menos milhão de anos, sempre será possível admitir teoricamente as tais combinações ideais de que resultaria a diversidade, a sobrevivência e o aperfeiçoamento das espécies. O que eu observava não era fruto do acaso, mas um projecto coerente, num modelo idealizado por uma mente perfeita, de infinita sapiência, arte e meios para o concretizar. Ali estava o produto acabado e harmónico de um ser espiritual, moral e físico dotado de inteligência e de autonomia para se afirmar como único, diferenciável, insubstituível na comunidade dos seus iguais, de algum modo espelhando a semelhança do seu Criador. Deus declara por intermédio do profeta Isaías: “Eu é que fiz a terra e nela criei o homem; as minhas mãos estenderam os céus e a todo o seu exército dei as minhas ordens.” (Is. 45:12 ) e o apóstolo Paulo faz eco desta declaração: ” E de um só fez toda a geração dos homens, para habitar sobre toda a face da terra.” ( Ac. 17:26 ). Por que razão terá Deus criado o ser humano, de alguma forma sendo um reflexo da Sua própria natureza? Ele mesmo o diz, também pelo profeta Isaías: ” a todos os que são chamados pelo meu nome e os que criei para minha glória, eu os formei, sim, eu os fiz.” (Is. 43:7 ). Identifica-se aqui um propósito, um fim: os que criou para Sua glória.

O ser humano não é insignificante, descartável, indiferente, mas foi criado para um fim nobre e elevado. Cada um é único na sua identidade e no seu valor. Pode ser débil, carecer de protecção, de valorização, de promoção dentro da comunidade, mas para o  Criador tem sempre a singularidade do seu imenso valor individual : “para minha glória o criei”. Se desvalorizarmos o nosso semelhante, estamos a  faltar ao reconhecimento da glória de quem o criou. Concretizando, o apóstolo Paulo escreve aos cristãos em Roma dizendo: ” amai-vos cordialmente uns aos outros com amor fraternal, preferindo-vos em honra uns aos outros.”, ideia que só no âmbito do evangelho é possível afirmar, por que socialmente impraticável.

Desde o alvor da civilização se mostrou necessário que a sociedade se estruturasse no sentido do reconhecimento comunitário de um mínimo ético de protecção da pessoa humana nas suas dimensões moral e física, o que levou muitos séculos de apuramento.

Entre nós, essa protecção está inscrita na lei das leis, a constituição da república portuguesa, no capítulo dos direitos, liberdades e garantias pessoais, designadamente quando estatui que a vida humana é inviolável e que em caso algum haverá pena de morte (art.º 24.º ) e que a integridade moral e física das pessoas é, também, inviolável (art.º 25.º, n.º 1). Estes são valores ou bens jurídicos com tal importância, que é a própria constituição a dar-lhes protecção, e que as leis comuns especificam no que respeita ao direito à vida, à integridade física, ao bom nome e reputação, à reserva da intimidade da vida privada, à protecção da vida intra-uterina, entre outros, utilizando a tutela máxima do direito penal. A ofensa daqueles valores pode resultar numa censura penal que afecte o património ou a própria liberdade do autor da ofensa e lhe impõe um sofrimento ou pena, pelo que toda a dimensão moral e física do ser humano nos deve merecer, pelo padrão mínimo, o respeito que a lei nos impõe, e pelo máximo, a que o Evangelho nos ensina.