ESTRANHOS AO SEU DISPÔR…

Ricardo Jorge Mendes Rosa

RicardoRosa_6Quem cresce no seio do Cristianismo, pode por vezes crescer com uma visão toldada da realidade que o rodeia. Ao lermos os versos magnos do terceiro capítulo do Evangelho segundo S. João, percebemos que o amor de Deus pela Sua criação principal (o Homem) é profundamente intenso e inatingível. A graça divina é dispersa pela Humanidade como a chuva pelos vales, montes e cidades; o amor de Deus é extensível a cada ser humano em particular e de modo pessoal.

Esquecemos por vezes aqueles que não O conhecem. Ou lembramo-nos deles do modo cuja nossa educação cristã nos ajuda a lembrar: como almas perdidas e que precisam de ser alcançadas. Não é de todo errado abordar uma pessoa que não crê em Jesus deste modo, mas muitas vezes tendemos a minimizar Deus a um quadrado missional e esquecer que quem criou todas as coisas, é também capaz de Se auto-revelar a quem não O conheça de modo natural ou sobrenatural. Mas mais ainda, é perito em recorrer a essas pessoas como recursos para majorar a nossa perceção da Sua glória, graça e poder.
YHWH, ADONAI DOS GENTIOS

O recurso a essas pessoas pode ser visto ao longo de toda a Escritura, que se fazem acompanhar da revelação e soberania de Deus. É na descendência de Seth que se começa “a invocar o nome do Senhor” (Génesis 4:26), existindo já uma panóplia de gentes e povos distantes em ideologia e culto. Da linhagem de Seth somos agraciados com o exemplo de vida piedosa e ligada a Deus de Enoch (Génesis 5:22-24), Matusalém e Noé. Este último, rodeado de povos cujas divindades eram os astros e imagens fabricadas, foi salvo com a sua família por ter achado graça aos olhos de Deus. E aqui começa a nossa viagem…

Da descendência de Noé, somos confrontados com os povos que invariavelmente se viriam a cruzar com Israel, tanto para o bem, como para o mal. E o modo como Deus se assenhoreia deles também é uma constatação do Seu poder inesgotável. E do Seu amor incompreensível…

É com um pagão de nome Abrão que Ele estabelece um pacto que requer obediência, em prol de ver a sua descendência ser incontável. Não deixa de ser caricato, que no meio de tanta gente Deus se tenha valido de um homem nascido no seio de uma família pagã (Josué 24:2) e se tenha revelado diretamente a ele (Actos 7:2). Se atentarmos à obra apócrifa do Livro dos Jubileus, percebemos que Abrão desde tenra idade que foi confrontado com a corrupção do Homem, que se prostrava perante imagens mudas, imóveis, vazias. Os confrontos com o seu pai Terá (num dos quais resultou de uma destruição total dos ídolos que o pai comercializava, tendo Abrão dito jocosamente que o ídolo maior se tinha tornado invejoso dos restantes e por isso destruído os mesmos), são elucidativos do incómodo de Abrão… Para ele, um deus que é vivo, que merece culto, oferendas e reverência, teria forçosamente que se manifestar. É (possivelmente) nesta pré-revelação que Deus, conhecedor de todos os corações começa a trabalhar no íntimo de Abrão.

DA ESCURIDÃO PARA A LUZ

Se Deus usou um homem simples, vindo de uma terra em que a idolatria reinava, podemos também encontrar o exemplo de um membro da corte do Faraó e de um rei. Apesar de ser hebreu de sangue, Moisés foi criado pela sua mãe até uma dada idade, após a qual foi entregue à filha do Faraó, que o tinha achado no meio dos juncos do rio. Segundo Artapanus de Alexandria, Moisés terá tido um percurso tanto militar, como cultural acima de qualquer expectativa. O Moisés que veio a liderar o êxodo hebreu em direção a Canaã, foi um Moisés que entre uma infância hebraica, uma juventude egípcia e uma idade adulta vivida na aridez do deserto, sob a proteção de Jetro (sacerdote de Midiã, que mais tarde veio a prestar louvor e sacrifícios a Deus), foi trabalhado por YHWH.

Com Moisés, assistimos mais uma vez a um confronto entre o politeísmo e o monoteísmo, no qual as consequências físicas foram além de estátuas partidas. As pragas sofridas pelo Faraó e pelo seu povo, foram uma ação apologética de Deus. Não só com o motivo de libertar o Seu povo, mas também como meio de se mostrar como a única referência a quem o culto deve ser dirigido.
REI DE REIS

A figura de um rei pagão nem sempre está bem conotada nas Sagradas Escrituras. Mas o caso do persa Ciro, torna-se digno de ser reconhecido. Ciro foi chamado por Deus de modo directo (2 Crónicas 36:22-23) e com uma missão específica: construir um templo em Jerusalém, para que todo o povo de Deus pudesse retornar e participar na construção. Aqueles que optassem por não regressar, deveriam (por édito real) contribuir financeira e logisticamente, tanto para suportar quem viajasse, como com uma oferta voluntária para o templo (Esdras 1:2-4). Podemos acrescentar ainda o nome de Assuero, que tendo sido preservado por Deus com recurso a Mardoqueu e Ester, preservou o povo de ser destruído por Hamã (Ester 8:9-14) e fez com Mardoqueu o que o Faraó havia feito com José (Ester 10).

No entanto, nem sempre Deus usou figuras poder de modo aparentemente benéfico para com o Seu povo. Nabucodonosor atacou Jerusalém e levou consigo vários jovens hebreus para educar na Babilónia (Daniel 1:1-7). O que foi um modo de Deus julgar o Seu povo, foi também uma maneira de continuar a Sua revelação progressiva, com as visões escatológicas de Daniel.

No período histórico entre Moisés e Ciro, somos ainda confrontados com os actos de Raabe e de Ruth. Ambas nascidas fora do aglomerado do povo hebreu, decidiram seguir Deus após serem redimidas por Ele (Josué 6:25, Rute 4:11).

Como é que podemos relacionar tudo isto com a atualidade em que vivemos? Em primeiro lugar, devemos relembrar-nos constantemente da soberania de Deus, que pode usar quem quer, como quer, onde quer e para o que quiser. A ação de Deus não fica restrita à execução por parte da Igreja ( tal como não ficou sempre restrita ao povo hebreu) muito embora deva ser ela a materializar a vontade de Deus no dia a dia.

Em segundo lugar, projetos inacabados de Deus não são projetos falidos de homens ou mulheres. São pessoas em transformação, como foram Abraão, Moisés, Raabe ou Ester. Não importa o passado da pessoa, importa sim a sua disponibilidade para ser transformada e usada por Deus.

E em terceiro lugar, relembra-nos de que aqueles que não partilham da mesma fé que nós, precisam de conhecer Deus através da nossa vida prática e não apenas da nossa Teologia. Foi assim com Nabucodonosor (ao lidar com Daniel), foi assim com o Faraó que foi auxiliado por José ou Assuero.

Os portões da graça divina não se fecham, porque Deus amou e ama tanto cada um de nós, que ainda hoje o sacrifício de Jesus é válido para nos exonerar das consequências do pecado e trazer uma renovação à nossa vida.