Um relato literário no sacrifício de Isaque

UM RELATO LITERÁRIO NO SACRIFÍCIO DE ISAQUE

Nos modernos estudos sobre estilística não se rejeitam os contributos da narrativa bíblica, não obstante ser conhecida de todos a frase secular «o estilo é o homem». O estilo dos evangelistas Lucas ou João, ou dos apóstolos Paulo e Pedro, ou do lider do povo hebreu e escritor do Génesis, é dos respectivos autores e tal circunstância de género humano não invalidou o uso das suas mãos e mentes para a escrita sob a direcção do Espírito Santo, a fim de escreverem as Sagradas Escrituras, a Palavra de Deus, sendo esta, como alguém disse, «o conhecimento acerca de Deus que procede de Deus». (1)
Opiniões sobre a história da literatura dizem que esta «consiste em diferenciar, valorizar, concatenar e seriar os estilos particulares». O estilo é também arte. E a narrativa do Génesis sobre o sacrifício de Isaque, requerido por Jeová a Abraão, é particular e paradigmática. A autoria do Pentateuco é pacífica em todos os meios do Cristianismo, católicos, ortodoxos, evangélicos, e do judaísmo, estando apenas por razões óbvias em debate a passagem sobre a morte e o sepultamento do autor, Moisés.
Um dos teóricos de referência do pensamento literário do século XX, um crítico exigente e controverso, como Harold Bloom, autor do conhecido O Cânone Ocidental, diz que o maior representante da evidência da marca canónica é o primeiro autor da Bíblia hebraica, a figura chamada Javeísta ou J. pelos estudiosos bíblicos do séc. XIX, digamos como uma espécie de pseudónimo. (2) Quando nesse século, em que se moldaram ideologias e materialismos vários, despontou a crítica mais agressiva e científica da Bíblia, no entanto esses estudiosos não desdisseram o que é tido como verdade imortal acerca da autoria individual dos autores sagrados, isto é, que também o Pentateuco foi escrito por Moisés, sendo assim este o autor Javeísta ou J. dos relatos primeiros e cardiais do Velho Testamento.

O ESTILO DA NARRATIVA DO DRAMA
O capítulo 22 do Génesis deixa evidente, quer ao leitor apenas cultural, aquele que lê apenas por intelectualismo religioso, quer ao leitor crente, o que lê a Bíblia como a Palavra de Deus para obter conhecimento de Deus, que está perante um drama de profunda decisão.
Não trata de uma crise de Fé, porém de uma total entrega à vontade divina que vai sublimar essa mesma Fé.
Expõe mais a profundidade da alma de Abraão do que as circunstâncias exteriores. Um pedido de Deus é sempre à medida de Deus, é sobrenatural, e só começa a ser entendido pela mente humana quando o próprio Deus resolve o dilema do incompreensível.
No lançamento recente de um livro cristão O Duplo Chamamento, o autor escreve em resumo sobre o que foram na realidade todos os chamamentos divinos de homens ou grupos específicos no Velho Testamento: «Atrás de todo o chamamento de Deus registrado na Bíblia há sempre uma vontade de Deus específica. Deus chama para que as pessoas participem de Sua obra. Toda e qualquer vontade de Deus específica é apenas uma fase do plano eterno de Deus para uma pessoa específica [ou um grupo específico] num tempo e espaço específicos».
Abraão, com certeza, só estava a entender o profundo pedido de Deus nas áreas da obediência e do agradar à Sua vontade.
A visão do velho patriarca não ia mais longe do que os montes da terra de Moriá, sendo porém certo que num desses montes se encontraria com a expectativa ansiosa, com a angústia de ceder uma parte da sua alma e do seu sangue – o filho único, a quem amava. Embora estivesse ciente de que a vontade divina ia ao ponto de alegrar o seu coração de pai, fazendo tornar à vida o sacrificado.
O estilo da narrativa mosaica ou javéista, ao contrário de obras comparativas como a Odisseia, de Homero, exterioriza quase nada o meio ambiente, o espaço e tempo embora dê ao leitor uma ideia de ambos, os lugares, o trajecto da viagem, etc. Contém antes na revelação do pensamento divino, um estilo interiorista, um estilo que sugere nas entrelinhas, escondendo algo que mais tarde é revelado em apoteose.
No que diz respeito aos elementos que compõem uma narrativa, o sujeito ou a personagem, a nosso ver existe uma ausência, justamente a do principal protagonista, que está escondido: o cordeiro, que é formalmente a intriga do texto.
Nesta passagem bíblica, o grande ausente é também a grande personagem, o cordeiro que falta ou o cordeiro que Deus proverá para si.
Isaque, profeticamente, salienta esse pormenor que faz parte do diálogo entre si e seu pai: Temos o fogo, temos a lenha, mas onde está o cordeiro para o holocausto?
O cenário apresenta-se-nos sem nenhuma descrição a não ser a da sua acidentalidade, o autor sagrado transcreve o discurso do próprio Jeová que refere «terra de Moriá» e «montes». Todos sabemos que as montanhas no Velho Testamento foram sempre o lugar intermediário para o encontro de Deus com o homem, desde Moriá ao Sinai.
A forma verbal usada pelo autor sagrado na narrativa traduz a intemporalidade do texto, ainda que esteja no presente do indicativo. É a progressão do argumento que transcorre, pelo menos, durante três dias, e da tensão do próprio último dia, o do holocausto, que lhe dá a dimensão de perpetuidade porque está sempre no domínio do simbólico, protagonizado no entanto por pessoas de carne e osso, historica e biblicamente reais, não apenas personagens.
O desenvolvimento estrutural da narrativa, que se inicia com uma proposição de Fé, e um clima de suspense em que imaginamos a luta interior, a comoção incalculável de um pai a quem se pede o filho, tudo concorre no sentido literário de um drama psicológico, por assim dizer, de tragédia intimista, do idealismo dos protagonistas, especialmente o da vítima Isaque, usando aqui os marcadores triviais da ciência literária.
A forma interior da narrativa, é literária porquanto conduz o leitor num crescendo de ansiedade, de expectativa.
Na totalidade do enredo, descobre-se uma situação epopeica, na qual vamos percebendo o nascimento de uma epopeia histórico-teológica. Não existe contudo pluralidade na acção. Esta é restritiva e confinada a uma mensagem de teor eterno, por isso absoluta.
Contrariamente à teoria do romance que identifica e exprime um mundo fechado, a narrativa do sacríficio de Isaque parte do que parece ser um mundo interdito, de uma acção da comunidade patriarcal na sua relação com o Deus pessoal de Abraão, para a universalidade da mensagem bíblica da necessidade de um substituto para a remissão dos pecados da humanidade.
A temática central da narrativa, sendo a requisição do holocausto anterior à Lei de Moisés e ao povo hebreu, só por si já possui uma força épica e fortemente literária, estando já no domínio do «surrealismo», isto é, da simbologia, e num outro patamar mais elevado, o da Transcendência, porquanto é o próprio Deus, que proíbe sacrifícios humanos, quem pede a Abraão que lhe ofereça o seu filho único Isaque. Porque, como se sabe, está aqui a prefiguração de Deus Pai ofertando o Seu Filho Unigénito, Jesus Cristo, para Salvação dos homens.
Por esta superior razão, não existe pois na epopeia deste episódio de Abraão e Isaque, nenhum sinal característico das formas romanceadas épicas da Literatura Universal, realizadas entre o sublime e a loucura, repletas de maravilhoso idealizado e de obscuridade irracional. E, no entanto, é uma história magistral, com um enredo poderoso, ideal e belamente dramático.

A ARTE PICTÓRICA DA NARRATIVA
A própria arte pictórica não se alheou da narrativa e confere a este tema do Génesis 22 uma forte dramaticidade quase onírica, designadamente na pintura do holandês Rembrandt.
Outros pintores do período renascentista estudaram o tema e reflectiram sobre ele através de uma estética de contextualização com o seu tempo, Andrea del Sarto, Alessandro Alori, Lucas van Leyden, e o mais conhecido, Caravaggio. Rembrandt, ao contrário de todos, pegou na experiência da Bíblia e contextualizou-se com a sua própria Fé. Chamaram-lhe, por isso, «o bíblico Rembrandt».
Os dois «Sacrifícios de Abraão», de 1635 e 1636, e os vários desenhos sobre o mesmo tema, são obras-primas desse relato bíblico, e Rembrandt soube dar-lhes a cor sombria do dramatismo. Mas a densidade literária, por assim dizer, está no facto do grande pintor holandês ter pintado o momento da transformação da tragédia em acto de glorificação da Fé do Patriarca. Pressente-se a Voz divina a mandar suspender o gesto de Abraão – momento este personificado com um anjo que segura a mão do velho pai. Pressente-se a tensão dos quadros, como a da idealização da narrativa, no momento em que o cutelo ou faca cai das mãos de Abraão.
Fundamentalmente por esta e outras visualizações do Velho Testamento, alguém escreveu que Rembrandt foi «um humano que pintou a Paisagem da Fé.»
Por fim, a leitura do texto de Génesis 22 partilhada com a visualizada contextual dos quadros atrás referidos, introduz o leitor no universo maravilhoso, transcendente da Bíblia Sagrada e numa das mais belas e comoventes narrações do Velho Testamento.

1) Bernard Ramm, in La Revelacion Especial
2) Harold Bloom, in O Cânone Ocidental, págs. 16, 17

© João Tomaz Parreira

 

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