“Tempos Difíceis”: Um Libelo Contra o Materialismo

“TEMPOS DIFÍCEIS”: UM LIBELO CONTRA O MATERIALISMO

Agora, o que eu quero é, Factosolidariedades. Não ensinar a estes meninos e meninas outra coisa senão Factos.”1 Thomas Gradgrind, a personagem central do romance Hard Times de Charles Dickens definia assim, desde o princípio, o tipo de educação materialista que as crianças iriam ter na Inglaterra do século XIX.

Thomas Gradgrind é um educador que crê somente nos factos que podem ser demonstrados. Leva os seus dois filhos, Thomas e Louisa por uma atmosfera sombria materialista que vai afectar para sempre as suas vidas. Faz mesmo casar a filha com um homem muito mais velho, mas rico.

O romance clássico de Dickens, Tempos Difíceis, é uma acusação contra a falta valores éticos, sociais, que estruturaram também, negativamente, a Revolução Industrial no século XIX. Dickens procurou defender valores cristãos com este romance profundamente preocupado com a infância e a vida familiar, a exploração do trabalho infantil e os baixos salários e a miséria.

No pano de fundo da Inglaterra de então, na era da industrialização, passou também a subversão da religião cristã, limitando-a a uma estrutura dirigida para os ganhos materialistas, como hoje. É o retrato do homem sem escrúpulos que faz do lucro um instrumento cego para destruir o próximo e sobre as ruínas deste erguer impérios financeiros.

O autor inglês fala também de Economia sob o ponto de vista do lucro e da injustiça, do enriquecimento de uns poucos contra a pobreza de milhares.

Embora seja um romance que, segundo a crítica literária, esteja acima de rótulos, escolas e catalogações, diria que é um libelo cristão, com o melhor do cristianismo na área social: o “amai-vos uns aos outros”.

Para fazer prevalecer este dogma necessário, apresenta-nos e enfatiza os efeitos da sociedade dominada pelos deuses da produtividade e dos lucros.

Uma das personagens pergunta, dramaticamente a outra: “Have you a heart?” (Tu tens coração?)

Alguém escreveu, como sinopse deste romance libelo, o seguinte: “Hard Times retrata Coketown, um vermelho-tijolo da cidade industrial típica do norte. Nas suas escolas e fábricas, crianças e adultos estão enjaulados e escravizados, sem liberdade pessoal, até seu espírito está quebrado.”

O empobrecimento colectivo para fazer crescer a economia de poucos, é um dos factos com que construiu (destruiu, afinal) a vida, a família, o personagem- chave do romance, Thomas Gradgrind.

No dia em que está sentado no seu escritório, e o barulho da chuva a bater nos vidros lá fora não conseguia abstraí-lo, Louisa entra e interrompe o fio dos seus pensamentos para o questionar com o que ele lhe fez: “Onde estão os sentimentos do meu coração? O que o senhor me fez, ó pai, o que o senhor me fez, com o jardim que deveria ter florescido no meu coração onde há agora um grande deserto!” 2

O pai estava a escrever sobre o Bom Samaritano que foi um Mau Economista. E esta ideia errada da personagem sobre a parábola bíblica é a justificação para defender que a caridade e o amor ao próximo não conferem lucros nem são boa política económica. A caridade não faz crescer a economia.

A história dos textos económicos enfatiza sempre que todas as facetas da sociedade humana se regem pelo interesse individual, o individualismo do homem e a maximização dos lucros continuam a prevalecer. E os investimentos no que é pertença do interesse próprio de cada um.

Quando Gradgrind está a escrever sobre o bom samaritano ter sido um mau economista, está a propor que, de acordo com as teorias económicas e a sua, sobretudo, o altruísmo é uma anomalia.

É a subversão da Bíblia do senhor Gradgrind com uma leitura enviesada e que faz parte de um fenómeno cultural – como lhe chamaram – do pensamento utilitarista. E a resposta de Charles Dickens é o romance Hard Times referindo a parábola do Bom Samaritano como programa necessário para repôr a fraternidade, o auxílio aos pobres, para a sua época, contra o interesse utilitário e os mercados que já estavam a impor as suas regras. Por exemplo, manter em baixa os preços dos cereais para não se aumentar o salário aos trabalhadores.

“GOOD SAMARITAN WAS A BAD ECONOMIST”3

É um princípio apenas proclamatório, mas gera uma crítica à atitude do bom samaritano e coloca em causa a fraternidade cristã.

O bom samaritano fez um investimento que, segundo o conceito individualista do lucro, não lhe renderia quaisquer dividendos. Pior, era um “desinvestimento” a longo prazo. Era uma perda.

O denário (danarius), moeda romana, pagava um dia de salário. Dois denarii (no texto grego de Lucas: denária) era uma quantia considerável. Há uma referência bíblica para os tempos da fome no livro de Apocalipse (6:6) que lhe marca a importância como um preço exorbitante: “Uma medida de trigo por um denário; três medidas de cevada por um denário”

Os argumentos arrolados pelos críticos da ação do Bom Samaritano da parábola ética de Jesus, não seriam produto de nenhuma lógica mas do individualismo e falta de caridade. O Bom Samaritano, que ia de viagem, usou primeiro da sua caridade e do seu despojamento pessoal ao não recear tocar com suas mãos no homem moribundo, depois usou dos meios que possuía presentemente – o animal que transportou o ferido, só depois usou bens financeiros: o dinheiro que entregou ao hospedeiro para, nos dias futuros, o homem que salvou da morte certa poder ser bem tratado e recuperar para a vida. E deixou lavrado o que terá feito dele “mau economista”: o que for gasto, “eu pagarei quando voltar”.

Não pensou em custos, não pensou em rendimentos, não impôs juros ao pobre homem encontrado, à beira da morte, no caminho.

As leis do Bom Samaritano4

Tal atitude fez história, não apenas no Evangelho de Lucas, mas universalmente nas legislações em benefício do próximo e no âmbito das organizações não governamentais.

Com efeito, as chamadas leis do Bom Samaritano oferecem não apenas proteção legal aqueles que dão assistência a feridos, doentes, incapacitados, como encorajam as pessoas a oferecer a sua assistência. Enquadrando-se nas leis civis de qualquer Estado de Direito, têm também o efeito legal de exigir o dever do socorro ao próximo.

 

João Tomaz Parreira

Colaborador

Aveiro

 

Publicado na revista “Novas de Alegria”, setembro 2013

 

1 Hard Times, Charles Dickens, Penguin Classics, pág.9; 2 Op.cit, pág. 215; 3 Bom Samaritano que um Mau Economista (tradução livre); 4 Good Samaritan Laws

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