DUAS LINGUAGENS EM RISCO DE VIDA

Duas Linguagens em Risco de Vida

João Tomaz Parreira

Cruz_ LuisPaçoA linguagem do insulto perante a crucificação de Jesus Cristo, antes de mais revelou a inconsistência, a visão errática e o desespero de grupos definidos da multidão.

Sim, desespero, porque os homens e as mulheres de Jerusalém estavam diante da falta de respostas quer da sua religião, quer da política vigentes. Estavam sob um protectorado, que não alimentava o orgulho exclusivista da Judeia. O seu último morto histórico por causa do judaísmo, dos costumes e da moral, havia sido João o Baptista.

Diria que a linguagem foi a do insulto dos impotentes, que não obstante se assumiram como psêudo “heróis” em matilha – como quase sempre sucede-, em conflito consigo mesmos. O poeta argentino Jorge Luís Borges escreveu, num excelente poema (”Cristo na Cruz”): “Não o alcança a mofa da plebe / que viu a sua agonia tantas vezes”.

 Os Evangelhos narram esses insultos, que no fundo ultrapassaram a própria cordialidade e humanidade com que a ancestral lei mosaica tratava os condenados até pela justiça divina. Perante momento tão solene e profético, as atitudes deveriam conter o espírito de tolerância que presidiu no passado longínquo à edificação das “cidades de refúgio”, deveriam manter-se no registo do “bater com a mão no peito” ou no menear a cabeça. Nunca no verbo injurioso.

Mateus e Marcos têm uma diegese pormenorizada com as falas que não deixam de exibir o histerismo da multidão diante do sangue que iluminava a cruz central. Dialogias de blasfémia e de ironia religiosas, a roçarem o ódio, a ignorância e o absurdo:

“Ó tu que destróis o santuário e em três dias o reedificas!”

“Salvou os outros, a si mesmo não pode salvar-se”,

“Desça da cruz, e creremos nele”,

“Confiou em Deus; pois que venha livrá-lo agora”. (Dos Evangelhos)

Os próprios malfeitores que foram crucificados com Jesus, não resistiram ao impropério generalizado da multidão, não obstante a tragicidade do seu estado, e juntaram as suas vozes para blasfemar também. Os dois primeiros evangelhos sinópticos não branqueiam o facto, referem mesmo que o alegado “ladrão arrependido” também blasfemou.

Os discursos dos malfeitores

Desconhecemos quais foram as palavras pronunciadas pelo chamado “ladrão arrependido” – sintagma usado como título dos versículos de Lucas  -, as mesmas teriam o idêntico registo injurioso dos demais?  Impropérios, segundo Mateus (Bíblia Anotada de Scofield), insultos, diz-nos Marcos. Afinal também era – como o referido poeta argentino lhe chama – “un bandolero que Judea / clava a una cruz”, mas que pôde saber da clemência divina apesar da sua condição (1). Porque soube fazer uma escolha, deixar de lado o “politicamente correcto”, isto é, o facilitismo de seguir a multidão dominante; quis antes fazer uma escolha, voluntariamente.

Uma escolha contextualizada na Fé e no Arrependimento. O seu anti-discurso prova-o: “Nem ao menos temes a Deus, estando sob igual sentença? Nós na verdade com justiça, porque recebemos o que os nossos actos merecem; mas este nenhum mal fez.” (Lc 23, 40-41)

Mas aquele que a tradição apócrifa e a literatura costumam classificar como o “ladrão impenitente” (2) ou  mau ladrão vociferava palavras não tanto de ódio, mas de egoísmo e de comiseração por si próprio e por Cristo: “Não és tu o Cristo? Salva-te a ti mesmo e a nós também.” (Lc 23,39)

Nestas brevíssimas frases, a dúvida  anulava o que poderia ser entendido como uma pequena fé, e quereriam dizer : “Afinal se fosses o Cristo, como dizem, salvavas-te a ti e a nós”. Gritava o ladrão impenitente, no seu desespero, era o grito da incapacidade humana de se salvar.

 As suas palavras se não fossem trágicas, poderiam pretender uma ironia.

Outro escritor, o francês Henri Michaux ao chamar-lhe num texto poético “o ladrão não arrependido”, traçou-lhe o destino no século XX, o destino da Tragédia a um passo da Salvação, que poderia ter acontecido de uma cruz a outra cruz.

 

                                                                                         © João Tomaz Parreira

  1. Poema “Lucas, XXIII”, Antologia Poética, J.L.Borges, Alianza, Madrid, 1983
  2. Longfellow, Henry Wadsworth; The Golden Legend, que refere ambos

    os ladrões Penitente e o Impenitente. E sugere-lhes nomes.