A ÁGUA DA VIDA

A Água da Vida

João 7:30-53

 2021dez20 Jorge Pinheiro _ peq

“Vós me buscareis e não me achareis e onde eu estou, vós não podeis vir.” E no último dia, o grande dia da festa, Jesus pôs-se em pé e clamou, dizendo: ”Se alguém tem sede venha a mim e beba. Quem crê em mim, como diz a Escritura, rios de água viva correrão do seu ventre.” (João 7:34, 37-38)

 

Esta secção caracteriza-se pela indecisão da multidão em categorizar e definir Jesus, pelo extraordinário desafio de Jesus, que é o convite de irem até Ele todos os que têm sede espiritual e pela persistente decisão das autoridades religiosas de quererem prender e julgar Jesus.

As afirmações de Jesus causam não apenas perplexidade mas também animosidade entre os que O ouvem na multidão: uns crêem (v. 31), outros (v. 40) hesitam em reconhecê-Lo como Messias, preferindo identificá-Lo com o profeta que Moisés anunciara que surgiria (Deuteronómio 18:15), enquanto um terceiro grupo recusa-se a vê-Lo como o Messias por causa das Suas supostas origens duvidosas (vv. 41-42).

Por outro lado, nem tudo quanto Jesus proclamava era perfeita e imediatamente entendido. Ao afirmar (v. 34) que “O buscariam e não O achariam e que onde Ele estivesse não poderiam ir,” esta declaração não foi devidamente entendida e interrogavam-se sobre o seu verdadeiro significado. No versículo 35, lemos que alguns levantaram a hipótese de Ele se ausentar de Israel, deslocando-se a outros Judeus que viviam espalhados pelo mundo grego.

Conhecendo nós o percurso de Jesus, sabemos que esta é uma alusão à Sua partida não para os Judeus da Diáspora, mas ao Seu regresso ao Pai, após a Sua morte. Mas há também uma perplexidade nesta afirmação: ela surge em contraponto e em oposição à promessa de Deus em Jeremias 29:13: “E buscar-me-eis e me achareis quando me buscardes de todo o vosso coração.” O que não deixa de ser estranho porque até então todo aquele que tivesse procurado Jesus tinha encontrado n’Ele receptividade e uma resposta para o seu problema. De resto, ainda hoje essa é a experiência de todo o crente que, tendo-O buscado, O tem encontrado. Se elaborarmos um pouco mais a comparação entre as duas afirmações, a de Jeová em Jeremias e a de Jesus em João, verificamos que a diferença está na condição: “Se me buscardes de todo o vosso coração.” Ou seja, tal como encontramos Jeová se O buscarmos de todo o nosso coração, também precisamos de buscar Jesus de todo o coração se de facto O queremos encontrar.

Mas nesta declaração de Jesus, podemos detectar de novo um paralelismo com a Sabedoria de que Provérbios fala. A propósito do versículo 28, em que estabelecemos um paralelo com a Sabedoria que clamara pelas ruas, verificamos que em Provérbios 1:28, a Sabedoria diz: ”A mim clamarão mas eu não responderei; de madrugada me buscarão, mas não me acharão.”

Há, então, uma aproximação e identificação entre estas três personagens; Jeová, a Sabedoria e Jesus. Em Cristo, está a sabedoria de Deus e a Ele podemos encontrar se O buscarmos de todo o coração. Mas a Palavra alerta-nos que podemos não encontrá-Lo se o nosso coração estiver ausente dessa procura. Essa de resto é a recomendação da Escritura em Isaías 55:56: Buscai o Senhor enquanto está perto!” Como é refrescante e consolador verificar que uma declaração de aviso “Vós me buscareis e não me achareis” é também uma declaração da natureza divina e sapiencial de Jesus!

Já vimos que toda esta secção situa Jesus na Festa dos Tabernáculos. Vimos a origem e o significado da Festa. É durante todo este tempo que ocorrem as diversas declarações de Jesus. E de novo, numa outra identificação com a Sabedoria, lemos no versículo 37 que, no último dia da Festa, Jesus clamou. Repare-se que o evangelista não se limita a informar que foi no último dia da festa, mas que o classifica como “o grande dia da Festa.”

Recordemos que esta Festa, que durava sete dias e vem registada em Levítico 23:34-43, comemorava o tempo de peregrinação no deserto e a beneficência de Deus no tempo das colheitas. Era uma festa com um profundo significado espiritual e profético, comemorada com muito entusiasmo pelo povo. Nela, todos os dias os sacerdotes enchiam no tanque de Siloé uma vasilha de prata para ser derramada no altar. No cortejo entre o tanque e o altar, entoavam os Salmos 113 a 118, em especial o Salmo 118:25,26: “Salva, Senhor, nós Te pedimos; ó Senhor, nós Te pedimos, prospera. Bendito aquele que vem em nome do Senhor: nós vos bendizemos desde a casa do Senhor.” Em cada dia, os sacerdotes rodeavam o altar agitando ramos de palmeiras. O grande dia era o sétimo em que, a par do ritual executado em cada um dos dias anteriores, os sacerdotes rodeavam o altar por sete vezes. Esse era o momento alto e foi nesse dia que Jesus levantou a voz, apresentando um convite que ainda hoje ecoa: “Se alguém tem sede venha a mim e beba.” Por outras palavras, Jesus afirma-se como sendo a fonte da água espiritual, indispensável à frutificação do crente que espera em Deus. Jesus mantém-se igual a si mesmo, uma vez que repete o que já dissera à samaritana e identifica-se como a provisão prometida por Deus em Isaías 44:3: “Porque derramarei água sobre o sedento e rios sobre a terra seca.” Ele é a água que sacia não apenas o homem individual mas o homem colectivo e todo o meio ambiente em que os seres humanos habitam. Poderíamos também citar Ezequiel 47:8, na sua referência ao poder sarador desta água que sacia: “Estas águas, sendo levadas ao mar, sararão as águas.” As muitas águas do mar simbolizam na Bíblia as nações. Ora, as águas saídas do altar são aquelas que, entrando no mar, que entrando nas nações, as podem sarar. Essa água é a pessoa de Cristo.

Nessa declaração de Jesus, João esclarece que a expressão “rios de água viva que correrão do interior das pessoas” se referia à recepção e manifestação do Espírito que, como sabemos, foi derramado sobre os discípulos no dia de Pentecostes, outra das grandes festas bíblicas.

Assim, podemos entender que a expressão “no último dia, o grande dia da festa” tem uma profunda conotação teológica e não se limita a ser uma referência cronológica. Isso leva-nos a afirmar sem receio que podemos esperar ver em cada acção e em cada pronunciamento de Jesus um profundo sentido teológico, estabelecendo uma ponte entre os preceitos de Deus e a obediência do homem. É por isso que sempre que entramos em contacto com algum episódio que envolva a pessoa de Jesus Cristo, temos sempre de perguntar: “O que está o Senhor Deus a comunicar-me? Onde posso ver aqui uma mensagem que Deus está a entregar-me?”

Foi esta faceta do ministério de Jesus que os responsáveis bíblicos do Seu tempo não conseguiram detectar nem tampouco perceber. Assim, não admira que procurassem prendê-Lo e silenciá-Lo. Quais vigilantes de uma ordem que eles próprios impunham derivada da sua interpretação das recomendações de Moisés, esses responsáveis não podiam tolerar qualquer desvio à ortodoxia instituída. Um dos seus problemas é que subordinavam essa ortodoxia a uma tradição resultante de uma prática religiosa nem sempre alicerçada numa correcta interpretação da Revelação.

Repare-se que se consideravam os únicos conhecedores e intérpretes da Lei de Deus. Por isso, podiam acusar os restantes de entre o povo: “Esta multidão que não sabe a Lei é maldita.” (v. 49) Desse modo, constituíam-se e assumiam-se como uma elite especial e favorecida. Mas pergunta-se: “Como elite, não seria sua responsabilidade e obrigação instruir a multidão?” Esse é o grande pecado e tentação das elites: demitir-se da sua função não de mestres mas de ensinadores. E ensinar, como sabemos, é um acto de amor, incompatível com o orgulho e a arrogância de guardar o conhecimento só para si.

Devido a essa arrogância, os responsáveis religiosos eram lestos a condenar quem não se encaixasse nos modelos que eles próprios haviam criado. Disso é testemunha a objecção levantada por Nicodemos que alertou para um princípio inviolável da Lei e que estava a ser espezinhado pela arrogância dessa elite auto-satisfeita: “Porventura a nossa lei condena um homem sem primeiro o ouvir e ter conhecimento do que faz?” (v. 21). Note-se que Nicodemos também fazia parte do Sinédrio mas, talvez sensível à mensagem de Jesus em resultado da conversa que ambos travaram tempos antes, não se esquecera das bases fundamentais da Lei, não se esquecera de que toda a nossa interpretação da Escritura não pode ir contra a mesma.

A resposta dos seus pares não deixa de ser surpreendente: em vez de contra-argumentarem com a própria Lei que Nicodemos invocava, contrapuseram com a Tradição que condicionava todas as suas interpretações: “Também é da Galileia? Examina e verás que da Galileia nenhum profeta surgiu” (v. 52).

Nesta resposta, podemos ver não apenas uma acusação contra Nicodemos, taxando-o de judeu impuro (os Galileus eram considerados como tal) e de ter uma visão enviesada, mas também a confissão da sua total cegueira. De facto, fazem sobrepor a Tradição à Lei, que lhe deveria servir de base. Mas Nicodemos não invocara a Tradição nem se escondera atrás dela – invocara o princípio que deve comandar toda a nossa acção, mesmo que esteja em oposição à Tradição. No fundo, quem tinha uma visão enviesada da realidade não era Nicodemos mas o restante Sinédrio.

De Jesus, ou melhor, da aplicação da Sua acção, devemos esperar não propriamente uma voz crítica contra a Tradição, mas um apelo a nunca comprometermos a realidade à sombra, o essencial ao acessório, o eterno ao passageiro, mas um apelo a nunca nos esquecermos de onde viemos e da base sobre a qual a nossa vida se deve erguer – é que essa base tem de ser a água que nos purifica e nos faz crescer!

 

C. Ourique, 26.Julho.2022