COERÊNCIA E CONSEQUÊNCIA

Coerência e Consequência

2023jan01 ADodivelas - JorgePinheiroDr. Jorge Pinheiro

E eu, quando for levantado da terra, todos atrairei a mim. (João 12:32)

(João 12:27-36)

Esta secção vem no seguimento do diálogo travado entre Jesus e os Gregos que O procuraram, os quais, como mencionámos, deixam de ser referidos nos versículos seguintes.

Agora, Jesus dirige-se aos Seus e à multidão, embora esta interacção comece com o que podemos considerar uma confissão pessoal do estado de alma de Jesus: “Agora, a minha alma está perturbada. E que direi eu: Pai, salva-me desta hora? Mas para isso vim a esta hora!” (v. 27). Sem forçar o texto, podemos detectar uma ligação entre esta declaração e a que Jesus apresentara momentos antes: “Se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer, fica ele só, mas se morrer dá muito fruto” (v. 24). Uma é consequência da outra. Na verdade, Jesus está a comparar a Sua vida com a vida do grão de trigo. Este, para frutificar, necessita de ir pelo caminho da auto-renúncia, o que lhe provocará a morte. De igual modo, para que da vida de Jesus saia muito fruto, é necessário que Ele aplique a si a mesma receita – que se auto-renuncie e enfrente a morte. Tendo presente esta realidade e mantendo a coerência do que ensinava e do que momentos antes dissera, não admira que Jesus confesse a perturbação que O invade.

Como homem íntegro que era, no pleno uso da Sua vitalidade, há sem dúvida uma luta com a aceitação dessa consequência. Mas Jesus sabe que tem de ser coerente até ao fim. Mas também sabe qual a razão da Sua vinda a este mundo. Todo esse drama e confronto estão manifestos no que diz. Parafraseando-O, podemos reformular toda a sua expressão: “Como um grão de trigo que para dar fruto tem de passar pela morte, assim também eu, para que o meu ensino dê fruto e eu próprio sirva de alimento espiritual às gerações futuras, tenho de passar pelo mesmo processo. O meu desejo de viver grita contra essa perspectiva e a minha coerência leva-me a ficar perturbado. Que fazer? Ceder a essa minha vontade e desejo e pedir ao Pai um outro caminho? Mas como pode Deus aceder a um tal pedido? Como posso eu não me sujeitar aos desígnios de Deus? Aceitei o plano que o Pai tinha para mim e isso implicava ser como o grão de trigo.”

Repare-se que esta angústia se vai manifestar de novo no Getsémani, de modo muito patente na Sua oração: “Pai, se é possível, passa de mim este cálice!”

Em suma, Jesus tem plena consciência da Sua missão e das suas consequências, mas também sabe que tem de manter até ao fim a Sua coerência porque só assim se manterá em sintonia com a vontade de Deus.

A missão de cada um de nós não apaga a nossa humanidade de perturbação, de revolta ou de angústia. Tudo isso são emoções que nos assaltam em resultado da nossa condição humana. Deus sabe a massa de que somos feitos mas também sabe que permanecerá sempre connosco, sejam quais forem as circunstâncias. Por vezes, nós é que nos esquecemos dessa realidade.

No seguimento desta confissão que surge como um pensamento íntimo dito em voz audível e perante a perturbação e o dilema que enfrenta, Jesus não toma outra decisão senão a de entregar a resolução do caso nas mãos de quem tem todas as respostas. Assim, dirigindo-se ao Pai, exclama: “Pai, glorifica o Teu nome” (v. 28). Uma outra versão diz: “Pai, manifesta a glória da Tua pessoa!”, enquanto uma outra declara: “Pai, manifesta o Teu poder!” Estas três versões complementam-se.

Há sem dúvida a tentação de Jesus pedir a Deus que O retire da situação em que a Sua missão O envolveu. Mas Ele prefere invocar Deus como Pai, o que é deveras significativo porque traduz a ideia de proximidade e de comunhão íntima. E ao invocar Deus como Pai, Jesus preocupa-se não consigo mesmo ou com o Seu dilema e angústia pessoais, mas com a glória e o poder da pessoa de Deus. Estaremos nós, nas nossas angústias e dilemas, na hora da nossa maior perturbação, dispostos a colocar em primeiro lugar não a nossa pessoa e os nossos problemas, mas a manifestação da glória e do poder de Deus enquanto Pai?

Não sabemos quanto tempo tardou a resposta a esta oração, mas o texto diz que ela veio de um modo sensível, audível: “Então, veio uma voz do céu que dizia: Já o tenho glorificado e outra vez o glorificarei” (v. 28).

Repare-se que a voz “veio do céu”, ou seja, do domínio do divino, do transcendente. Não veio do conselho humano, da cogitação pessoal, mas “do céu”. Há momentos na nossa vida em que a resposta tem de vir do céu e isso sem qualquer menosprezo pelos conselhos humanos ou pela reflexão pessoal. Há momentos em que nada mais substitui uma voz vinda do céu… Em hebraico, voz também significa trovão, ou seja, a mesma realidade pode ser interpretada de formas diferentes.

E foi o que aconteceu: “Ora, a multidão que ali estava e que a tinha ouvido, dizia que havia sido um trovão. Outros diziam: Um anjo lhe falou” (v. 29). Face aos acontecimentos que envolvem o sobrenatural, há os que reduzem essas manifestações a meros fenómenos físicos e procuram explicá-las recorrendo apenas ao domínio do mundo natural, para além do qual nada mais conta. Já outros recorrem ao misticismo, a uma natureza esotérica do mundo maravilhoso, em que por norma Deus também não está presente, porque o que conta é o mundo das visões, das aparições que a breve trecho descambam em superstições. Para Jesus, essa voz trazia uma mensagem muito clara, passível de interpretação e de compreensão. E em resposta à multidão, a partir do versículo 30 Jesus faz afirmações de extrema importância.

Começa por declarar e esclarecer que “não veio esta voz por amor ou por causa de mim, mas de vós” (v. 30). Jesus reafirma a natureza desse fenómeno, desse som – não foi um trovão, não foi um anjo, mas foi uma voz vinda de Deus. Ora, quem tem uma relação com Deus, como era o caso do povo judeu, associa de imediato a voz com a expressão da vontade de Deus. Foi assim no Éden, quando Adão ouvia a voz de Deus, foi assim com Moisés quando ouviu a voz de Deus no episódio da sarça ardente e também no monte Sinai, foi assim com Samuel quando ouviu a voz de Deus, embora a princípio a tivesse tomado como vinda de Eli, foi assim com muitos outros, incluindo profetas, sacerdotes e reis. E o autor da epístola aos Hebreus recorda-o: “Havendo Deus antigamente falado… de muitas maneiras” (Hebreus 1:1).

Toda a voz se dirige a alguém por alguma causa e transmite uma mensagem. Esta não foi excepção. Ela veio por causa da multidão! E há aqui um paralelo com Moisés. Na outorga da Lei no Sinai, Deus falou directamente a Moisés, mas o povo estava distante. No Antigo Testamento, Deus falava apenas ao mediador que por sua vez transmitia a mensagem recebida ao povo distante, sujeito a castigo caso transgredisse a ordem de se manter afastado (Êxodo 19:10-25).

Mas agora, Deus falava directamente a todos, mesmo que nem todos entendessem com clareza o que ouviam. Agora com Cristo, podia haver uma ligação directa com Deus, cuja glória poderiam contemplar não apenas no julgamento e expulsão do mal deste mundo, mas também no próprio Jesus cuja morte atrairia todos a uma comunhão plena e directa com Deus.

Embora para os Cristãos, que já são beneficiários da obra de Cristo, estas palavras façam sentido, para a multidão que as ouvia pela primeira vez provocavam dúvida e estupefacção. À multidão não custou aceitar que “agora é o juízo deste mundo, agora será expulso o príncipe deste mundo” (v. 30). Isso fazia parte da sua crença e das suas expectativas escatológicas. Afinal, havia uma luta entre o bem e o mal e o destino deste era ser derrotado de vez. De resto também, naquele tempo não faltavam vozes apocalípticas anunciando precisamente isso. O que a multidão achou estranho foi o meio pelo qual esse julgamento e expulsão viriam. Jesus dissera-o com todas as letras: “Quando eu for levantado da terra, todos atrairei a mim” (v. 32). Para que ao leitor não restassem dúvidas quanto ao significado dessa declaração, o versículo 33 explica-a de forma muito clara. Era uma referência não só à Sua morte mas também ao tipo de morte.

Ora, essa declaração ia ao arrepio da convicção generalizada em relação ao Messias e isso é afirmado pela população: “Nós temos ouvido da Lei que o Cristo, ou seja, o Messias prometido, permanece para sempre” (v. 34). Repare-se que eles dizem “temos ouvido da Lei” e não “temos lido na Lei”. Se “tinham ouvido”, isso significa o resultado do que aprenderam ou do que alguém lhes ensinara. O seu conhecimento dependia não de um esforço pessoal de descobrirem por si mesmos a verdade, mas das conclusões a que outros haviam chegado. Claro que nem sempre o que aprendemos por essa via está errado. Afinal, o ensino é fruto de uma pesquisa e do estudo das fontes. Mas também é verdade que a mesma realidade pode ser interpretada de diversas formas, muitas delas contraditórias entre si e não poucas vezes sucede que o que aprendemos resulta da aceitação por vezes cega do ensino do mais forte ou do mais influente. É por isso que mesmo sem a intenção de negar ou de pôr em causa o que nos é ensinado, é sempre conveniente e útil ir comprovar por nós mesmos o que nos é ensinado ou aquilo que entendemos do que nos é comunicado. Afinal, foi o que fizeram os crentes de Bereia que confrontaram o ensino de Paulo com o que as Escrituras afirmavam. Sigamos esse exemplo e recorramos sempre à Escritura para com ela confrontar o que nos é ensinado em relação à vontade e plano de Deus.

Ora, à multidão fora ensinado que o Cristo permanece para sempre, o que não deixava de estar correcto. De facto, a profecia relativa ao Messias indicava que ele surgiria para ficar para sempre. Mas essa afirmação não revela todo o quadro. Faltava-lhe indicar o caminho, o percurso que o Messias trilharia. Mas o que lhes fora ensinado, que o Messias permaneceria para sempre, era entendido como significando que ele nunca provaria a morte nem passaria por qualquer tipo de suplício. Assim, não admira considerarem que Jesus, em quem tinham até então depositado tanta confiança e esperança e a quem haviam momentos antes aclamado como o enviado de Deus, não podia ser o Messias. Havia uma clara contradição entre o que fora ensinado/compreendido e a declaração de Jesus de que iria ser supliciado. Se Ele ia passar pela morte, não poderia ser o Messias! E a pergunta surge com toda a lógica: “Como dizes que convém que o Filho do Homem seja levantado? Quem é esse Filho do Homem?”

E esta é a pergunta que ainda hoje ecoa, a pergunta mais importante ou, pelo menos, a pergunta cuja resposta é a mais importante para o nosso viver: “Quem é este Jesus?” As respostas podem variar, podendo todas elas paradoxalmente não estar erradas, mas estarão incompletas porque se concentram apenas numa característica daquilo que Jesus é. É um reformador? É! É um religioso? É! É um revolucionário? É! E poderíamos continuar. E a resposta a muitas perguntas, talvez não todas, seria positiva, mas essas perguntas estariam focadas apenas num aspecto, talvez não o mais importante, talvez o que mais nos interessasse e o resultado seria viver e entender Jesus não de um modo totalmente errado, mas incompleto e, portanto, imperfeito.

A resposta dada por Jesus a esta observação pertinente é interessante e instrutiva. Poderia ter-se envolvido numa discussão com a multidão, criticando a sua incompreensão e distorção da realidade ou ter enveredado por uma explicitação de quem é o Filho do Homem, mas Jesus procede de outro modo e vai ao fundo da questão, à razão de ser daquela incompreensão, à realidade última. E se os Gregos que O procuraram ainda estivessem presentes e fossem de facto estóicos, mais admirariam Jesus por esta Sua resposta, pela profundidade de pensamento que ela apresentava.

Disse Ele: “A luz ainda está convosco por um pouco de tempo; andai enquanto tendes luz, para que as trevas vos não apanhem, pois quem anda nas trevas não sabe para onde vai. Enquanto tendes luz, crede na luz para que sejais filhos da luz” (vv. 35,36).

Toda esta resposta merece um longo tratamento e uma extensa reflexão e a sua exploração abrir-nos-ia caminho para uma sala repleta de tesouros de sabedoria. Não temos tempo nem engenho para tanto e temos de nos limitar e contentar com uma análise muito superficial.

Jesus deixa implícito que se identifica com a luz: “A luz ainda está convosco por um pouco de tempo.” De resto, noutra ocasião (João 8:12), essa foi a Sua declaração. A luz opõe-se às trevas que são a ausência de luz, mesmo que nelas possa haver um pequeno vestígio de luz. A luz permite-nos enxergar a realidade das coisas com mais nitidez, evitando confundir o real com uma ilusão ou miragem, o que nos levaria ao erro. Quanto mais luz, mais próximos estamos da verdade e da realidade.

Se temos luz, então o caminho lógico é acreditar, é confiar nela, é saber que ela não nos engana. Ao viver nela, tornamo-nos luz também, conforme diz uma outra versão: “Enquanto tiverem luz, acreditem nela, para serem luz também” (BPT).

Esta declaração estabelece também a existência de dois tipos de pessoas ou mentalidades: os filhos da luz e os filhos das trevas. E é interessante notar que embora não esteja incorrecto falar em “treva”, o usual é dizermos “as trevas”, no plural, o que implica que há diferentes tipos de trevas e não apenas de uma só qualidade, enquanto a luz é por norma designada como “a luz”, no singular, embora por vezes se diga “as luzes”, o que nos aponta para a unidade da luz. De facto, fomos chamados à unidade, à unidade com Deus e com o Seu propósito. E isso é possível se formos verdadeiramente filhos da luz. E só o seremos se andarmos na luz, que é Cristo. É o que declara João: “Se andarmos na luz, como Ele na luz está, temos comunhão uns com os outros” (1 João 1:7).

Então, diz Jesus à multidão, para sermos filhos da luz e não nos deixarmos enganar por ensinos errados ou distorcidos, como era o ensino de então sobre o Messias, temos de crer na luz do Seu ensino. O que nos afirma que acima da tradição e do ensino tradicional mantém-se inalterável e disponível a todos a luz da verdade de Deus. E essa luz é a pessoa de Jesus Cristo.

A Deus toda a glória!

SAC, 3 de Janeiro de 2023

OS GREGOS

Os Gregos

(João 12:20-26)

Ora, entre os que tinham subido a adorar no dia da festa, havia alguns Gregos que se dirigiram a Filipe, de Betsaida da Galileia, a quem rogaram: “Queríamos ver Jesus.” (12:20-21)

 2022dez03 Jorge Pinheiro

Neste texto, lemos que, por ocasião da Páscoa, que seria aquela em que ocorreria a morte de Jesus, se encontravam entre os peregrinos que acorreram à festa em Jerusalém alguns Gregos que manifestaram a Filipe o seu desejo de verem Jesus.

Não sabemos quem eram estes Gregos, qual a sua origem e qual a razão de quererem ver Jesus. Para responder as estas questões só podemos especular ou ficarmos com as conclusões e as referências textuais mais óbvias. Sabemos apenas que eram Gregos, que se dirigiram a Filipe e que queriam ver e presumivelmente ouvir de viva voz o que Jesus ensinava. Muito provavelmente teriam a intenção de Lhe fazer alguma pergunta ou de apresentar algum pedido.

Poderiam ser Judeus que, por viverem em terras gregas, teriam sido alcunhados de Gregos. Não nos parece ser esse o caso, porque nos evangelhos e em João em especial, os Judeus são sempre referenciados pelo nome de Judeus ou do grupo sócio-religioso a que pertenciam. Mas poderiam ser Gregos convertidos ao Judaísmo, os chamados prosélitos ou simplesmente “homens piedosos e tementes a Deus,” à semelhança de Cornélio (Actos 10:2).

Esta segunda hipótese é mais provável, uma vez que se encontravam entre os peregrinos judeus que tinham ido adorar em Jerusalém (v. 20). Sendo então Gregos, ter-se-ão encontrado com Jesus na secção do Templo conhecida como átrio ou pátio dos gentios para além do qual não podiam avançar mais.

É curioso notar que se dirigiram primeiro a Filipe, um dos discípulos de Jesus. Filipe é um nome grego e muito provavelmente seria um judeu marcado perla cultura grega e saberia expressar-se com facilidade nesse idioma.

Há neste encontro alguns aspectos importantes que não devemos ignorar.

O conjunto dos discípulos era de mentalidade e religião judaicas. O ensino de Jesus, embora provocasse controvérsia, estava todo ele alinhado com a mentalidade judaica. Exceptuando uma breve passagem de Jesus por Sídon, na Fenícia, toda a Sua acção e ensino desenrolaram-se em terras judaicas. É assim natural que os discípulos assumissem a convicção de que a mensagem e a acção de Jesus se circunscreveriam apenas à nação judaica, excluindo por consequência os gentios. Acresce que quando os mandou em missão, Jesus ordenara-lhes que fossem apenas às ovelhas perdidas da casa de Israel (Mateus 10:6).

E, no entanto, há agora da parte de gentios o pedido expresso de quererem falar com Jesus. É muito provável que Filipe tenha ficado hesitante. Repare-se que foi aconselhar-se com André (João 12:21), tendo ambos decidido ir informar Jesus.

E há aqui uma lição para nós: corremos o risco de, enquanto grupo, nos fecharmos entre nós a ponto de, quando surge alguém diferente de nós, com um discurso, uma linguagem e um comportamento diferentes daqueles que são os nossos e a que estamos habituados, hesitarmos sem saber o que fazer ou dizer. Isso terá sucedido com Filipe, mas ele buscou ajuda. Sigamos-lhe o exemplo: não decidamos sozinhos, não nos fechemos aos outros, mas busquemos conselho junto de outro irmão e unânimes conduzamos o forasteiro ao Senhor, que tem para ele uma palavra consoladora e edificante.

O aparecimento de Gregos, de gentios, que não partilhavam da mentalidade judaica é um sinal que João nos dá de que o Evangelho não se limita nem se destina apenas a um grupo mas tem um alcance universal. Esta dificuldade de perceber a universalidade do Evangelho está bem patente no livro de Actos (cap. 10), com a conversão de Cornélio e com as viagens missionárias de Paulo em território gentio, de que resultou a conversão de numerosos outros gentios. A aceitação de gentios na comunidade cristã e o reconhecimento da universalidade do Evangelho ficaram comprovadas nas decisões do Concílio de Jerusalém (Actos 15), daí resultando a manutenção da unidade da Igreja com respeito pela diversidade dos seus membros.

Mas o aparecimento, o pedido e o interesse destes Gregos revelam uma outra marca de universalidade do Evangelho. Mateus diz-nos (2:1) que no início da vida humana de Jesus vieram do Oriente uns sábios para O adorarem. Agora, perto do final da vida de Jesus, do Ocidente chega um grupo de gentios que expressam o desejo de O ver e de eventualmente O adorar. Em Jesus, juntam-se o Oriente o Ocidente, numa soberba marca de universalidade. E se considerarmos os sábios como representantes de um conhecimento místico e os Gregos como representantes do pensamento lógico, pelo seu apego à filosofia, podemos afirmar que em Jesus se encontram o misticismo e a lógica. Jesus consegue estabelecer a união entre os dois saberes e experiências que não estão assim em conflito.

Glorioso é este Senhor que é em si mesmo o ponto de encontro de toda a Humanidade com a sua diversidade! N’Ele há unidade e não unicidade! N’Ele há harmonia na diversidade e não a imposição ditatorial e arbitrária da exclusão do Outro diferente! N’Ele há uma estrada construída com as pedras da nossa diversidade e não o levantamento com essas mesmas pedras de um muro de separação! N’Ele, a espada transforma-se em cruz que abraça os que estão em lados opostos e une o terreno com o divino! Esse é o Jesus da Igreja!

Filipe e André levam assim os Gregos a Jesus. O versículo 23 dá-nos conta de que Jesus lhes dirige a palavra, em declarações que não só revelam o Seu pensamento, mas também o que o futuro próximo Lhe reservaria. O restante capítulo não volta a mencionar os Gregos, o que parece indicar a sua integração no grupo dos discípulos. Não seria de estranhar que eles integrassem o futuro corpo de diáconos que o crescimento da Igreja obrigou a criar. É que se lermos com atenção o nome dos sete diáconos (Actos 6:5), verificamos que todos eles são de origem grega, com a curiosidade de um deles, Nicolau, ser chamado “prosélito de Antioquia”, uma cidade grega.

O que sabemos é que mesmo vindo de outro ambiente, mesmo que o nosso nome seja omitido, ouviremos as palavras de Jesus sempre que manifestamos o desejo de O querermos ver para d’Ele aprender.

O discurso de Jesus estende-se do versículo 23 até ao final do capítulo, no versículo 50 e podemos dividi-lo em duas partes: do versículo 23 ao 26, dirigido aos discípulos e aos gregos e do versículo 27 até ao final numa interacção com a multidão presente.

Vejamos rapidamente o que Jesus comunica aos discípulos:

No versículo 23, pela primeira vez neste evangelho Jesus assume ser chegada a Sua hora. Até então, há pelo menos duas ocasiões em que é declarado explicitamente que ainda não era chegada a Sua hora: uma, por Ele mesmo, no episódio das bodas de Caná (João 2:4) e outra pelo evangelista João, quando na zona do Templo O quiseram prender na sequência da Sua afirmação de ter uma relação especial com Deus (João 7:30). Ou seja, Jesus deixa claro que a Sua missão se aproxima do fim, o que acaba por provocar admiração pela contradição entre essa declaração e a aclamação de que fora alvo momentos antes pela população: “Hosana: bendito o Rei de Israel que vem em nome do Senhor” (v. 13). Como pode o aclamado “rei de Israel” estar perto do fim? Talvez num primeiro tempo essa “chegada da minha hora” pudesse ter sido interpretada como significando que Jesus ia assumir o trono de Israel e reinar. No entanto, logo a seguir, Jesus desvanece essas esperanças ao deixar implícito que se referia à Sua morte, numa identificação com o grão de trigo que, para frutificar, precisa de se entregar à morte (v. 24).

Convenhamos que para quem esperava d’Ele a assunção de ser um líder político que levaria a nação à sua glória perdida, estas palavras são um autêntico balde de água gelada. Um rei procura a glória pessoal e colectiva, muitas vezes por esta ordem, mas a verdade é que Jesus não nega que o Seu caminho desemboca em glória. Repare-se que Ele diz que o grão de trigo dará muito fruto – essa é a sua glória. Só que a forma como essa glória virá não será pela opressão do outro, não será pela violência, não será pela imposição forçada mas pela auto-renúncia, pela aceitação da realidade mesmo adversa e do direccionamento das suas circunstâncias para um bem maior que se destina não em exclusivo ao próprio, mas em crescimento e alimento do Outro seu semelhante.

Jesus prossegue nesta mesma tónica (v. 25), salientando a necessidade imperiosa da auto-renúncia, ao ponto extremo de não considerar a própria vida como apenas sua mas como um bem reprodutivo e perene para todos.

Para muitos, este discurso é incompreensível e não faz sentido porque vai contra toda a lógica do interesse humano e, no entanto, ela baseia-se num facto comprovado e conhecido da Natureza: o grão de trigo, qualquer grão, tendo em si o potencial de reprodução, precisa de se auto-renunciar para que essa reprodução ocorra. Como sociedade agrícola que era, a nação judaica não desconhecia esse facto.

Voltemos aos Gregos para tentarmos perceber que impacte estas palavras lhes terão produzido. Sendo Gregos prosélitos ou Judeus alcunhados de Gregos, uma coisa era certa: estavam influenciados pela cultura grega e não desconheciam as características da mentalidade grega. Ao tempo de Jesus, havia várias escolas ou correntes filosóficas entre os Gregos, de entre as quais se destacavam duas: o Estoicismo e o Epicurismo. Basta consultar Actos 17:18 para comprovar esse facto.

Embora tendo aparecido dois a três séculos antes, estas duas escolas exerceram uma forte influência no pensamento e comportamento de toda a bacia mediterrânica e havia uma certa rivalidade entre ambas.

Caracterizando-as muito resumidamente, podemos dizer o seguinte:

O Epicurismo assumia um carácter materialista, naturalista e não determinista, ignorando os deuses que não estavam interessados na pessoa humana porque, sendo perfeitos, nada podiam aprender ou aproveitar da imperfeição humana. Logo, o Homem está entregue a si mesmo e deve esforçar-se por eliminar a dor e o sofrimento, buscando a felicidade que encontra nos prazeres que lhe tragam essa felicidade.

Quanto ao Estoicismo, embora visando a felicidade e o bem-estar, defende que isso se consegue pela prática das virtudes, levando uma vida ética que se traduz pelo autocontrolo e pela rejeição de todo o prazer que prejudique esse autocontrolo e vá contra a obtenção e concretização de uma vida ética. Um estóico procura compreender a razão universal, o Logos, que está acima daquilo que é aparente. Igualmente, o estóico aceita o escravo como seu igual porque a escravidão não lhe retira a sua condição humana, embora a circunstância vá em sentido contrário.

Tendo em atenção a sua condição de Gregos, estes homens não desconheciam a importância e influência destas duas escolas e muito provavelmente seriam estóicos porque há alguma coincidência entre a doutrina básica do Estoicismo e a resposta de Jesus nos versículos 23 a 26.

Se repararmos nas interacções de Jesus com quem Ele entrou em contacto, verificamos que Jesus falou sempre recorrendo ao tipo de linguagem e de pensamento do Seu interlocutor. Basta comparar dois exemplos: as conversas com Nicodemos (João 3) e com a Samaritana (João 4) para perceber que Jesus não falou com ambos da mesma maneira. Não haveria razão para, neste caso, Jesus proceder de forma diferente e, portanto, falou aos Gregos usando uma linguagem que eles entendiam.

Sendo provavelmente estóicos, estes Gregos terão sido atraídos tanto por aspectos formais como de conteúdo do discurso de Jesus. Estoicismo deriva da palavra grega stoa que significa pórtico ou alpendre, que era o local onde Zenão de Cítio, o seu fundador, costumava ensinar. Ora, Jesus também ensinava debaixo de um alpendre, o pórtico de Salomão (João 10:23). Quanto ao conteúdo, o apelo à auto-renúncia é idêntico ao apelo ao autocontrolo porque só quem pratica o autocontrolo está disposto e é capaz de seguir o caminho da auto-renúncia. O reconhecimento de que a nossa vida é uma semente e que o nosso olhar deve estar na realidade do nosso potencial e não no circunstancialismo da nossa pequenez recorda ao estóico a procura da razão universal e não a prática ou a aceitação do que é aparente e transitório.

E quando Jesus afirma que onde Ele estiver aí estará também o Seu servo, o estóico recorda certamente a igualdade entre o servo e o livre quanto à sua condição humana.

Mas Jesus vai mais longe e afirma que quem O serve, que quem O segue será honrado pelo Pai, o que significa que para lá de tudo quanto é aparente não se encontra uma força impessoal, cega e insensível, mas o Criador pessoal que pode ser encontrado quando O buscarmos de todo o coração e com quem podemos estabelecer uma relação de filho para pai, baseada na obediência e no amor.

SAC, 29 de Novembro de 2022

A ÁGUA DA VIDA

A Água da Vida

João 7:30-53

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“Vós me buscareis e não me achareis e onde eu estou, vós não podeis vir.” E no último dia, o grande dia da festa, Jesus pôs-se em pé e clamou, dizendo: ”Se alguém tem sede venha a mim e beba. Quem crê em mim, como diz a Escritura, rios de água viva correrão do seu ventre.” (João 7:34, 37-38)

 

Esta secção caracteriza-se pela indecisão da multidão em categorizar e definir Jesus, pelo extraordinário desafio de Jesus, que é o convite de irem até Ele todos os que têm sede espiritual e pela persistente decisão das autoridades religiosas de quererem prender e julgar Jesus.

As afirmações de Jesus causam não apenas perplexidade mas também animosidade entre os que O ouvem na multidão: uns crêem (v. 31), outros (v. 40) hesitam em reconhecê-Lo como Messias, preferindo identificá-Lo com o profeta que Moisés anunciara que surgiria (Deuteronómio 18:15), enquanto um terceiro grupo recusa-se a vê-Lo como o Messias por causa das Suas supostas origens duvidosas (vv. 41-42).

Por outro lado, nem tudo quanto Jesus proclamava era perfeita e imediatamente entendido. Ao afirmar (v. 34) que “O buscariam e não O achariam e que onde Ele estivesse não poderiam ir,” esta declaração não foi devidamente entendida e interrogavam-se sobre o seu verdadeiro significado. No versículo 35, lemos que alguns levantaram a hipótese de Ele se ausentar de Israel, deslocando-se a outros Judeus que viviam espalhados pelo mundo grego.

Conhecendo nós o percurso de Jesus, sabemos que esta é uma alusão à Sua partida não para os Judeus da Diáspora, mas ao Seu regresso ao Pai, após a Sua morte. Mas há também uma perplexidade nesta afirmação: ela surge em contraponto e em oposição à promessa de Deus em Jeremias 29:13: “E buscar-me-eis e me achareis quando me buscardes de todo o vosso coração.” O que não deixa de ser estranho porque até então todo aquele que tivesse procurado Jesus tinha encontrado n’Ele receptividade e uma resposta para o seu problema. De resto, ainda hoje essa é a experiência de todo o crente que, tendo-O buscado, O tem encontrado. Se elaborarmos um pouco mais a comparação entre as duas afirmações, a de Jeová em Jeremias e a de Jesus em João, verificamos que a diferença está na condição: “Se me buscardes de todo o vosso coração.” Ou seja, tal como encontramos Jeová se O buscarmos de todo o nosso coração, também precisamos de buscar Jesus de todo o coração se de facto O queremos encontrar.

Mas nesta declaração de Jesus, podemos detectar de novo um paralelismo com a Sabedoria de que Provérbios fala. A propósito do versículo 28, em que estabelecemos um paralelo com a Sabedoria que clamara pelas ruas, verificamos que em Provérbios 1:28, a Sabedoria diz: ”A mim clamarão mas eu não responderei; de madrugada me buscarão, mas não me acharão.”

Há, então, uma aproximação e identificação entre estas três personagens; Jeová, a Sabedoria e Jesus. Em Cristo, está a sabedoria de Deus e a Ele podemos encontrar se O buscarmos de todo o coração. Mas a Palavra alerta-nos que podemos não encontrá-Lo se o nosso coração estiver ausente dessa procura. Essa de resto é a recomendação da Escritura em Isaías 55:56: Buscai o Senhor enquanto está perto!” Como é refrescante e consolador verificar que uma declaração de aviso “Vós me buscareis e não me achareis” é também uma declaração da natureza divina e sapiencial de Jesus!

Já vimos que toda esta secção situa Jesus na Festa dos Tabernáculos. Vimos a origem e o significado da Festa. É durante todo este tempo que ocorrem as diversas declarações de Jesus. E de novo, numa outra identificação com a Sabedoria, lemos no versículo 37 que, no último dia da Festa, Jesus clamou. Repare-se que o evangelista não se limita a informar que foi no último dia da festa, mas que o classifica como “o grande dia da Festa.”

Recordemos que esta Festa, que durava sete dias e vem registada em Levítico 23:34-43, comemorava o tempo de peregrinação no deserto e a beneficência de Deus no tempo das colheitas. Era uma festa com um profundo significado espiritual e profético, comemorada com muito entusiasmo pelo povo. Nela, todos os dias os sacerdotes enchiam no tanque de Siloé uma vasilha de prata para ser derramada no altar. No cortejo entre o tanque e o altar, entoavam os Salmos 113 a 118, em especial o Salmo 118:25,26: “Salva, Senhor, nós Te pedimos; ó Senhor, nós Te pedimos, prospera. Bendito aquele que vem em nome do Senhor: nós vos bendizemos desde a casa do Senhor.” Em cada dia, os sacerdotes rodeavam o altar agitando ramos de palmeiras. O grande dia era o sétimo em que, a par do ritual executado em cada um dos dias anteriores, os sacerdotes rodeavam o altar por sete vezes. Esse era o momento alto e foi nesse dia que Jesus levantou a voz, apresentando um convite que ainda hoje ecoa: “Se alguém tem sede venha a mim e beba.” Por outras palavras, Jesus afirma-se como sendo a fonte da água espiritual, indispensável à frutificação do crente que espera em Deus. Jesus mantém-se igual a si mesmo, uma vez que repete o que já dissera à samaritana e identifica-se como a provisão prometida por Deus em Isaías 44:3: “Porque derramarei água sobre o sedento e rios sobre a terra seca.” Ele é a água que sacia não apenas o homem individual mas o homem colectivo e todo o meio ambiente em que os seres humanos habitam. Poderíamos também citar Ezequiel 47:8, na sua referência ao poder sarador desta água que sacia: “Estas águas, sendo levadas ao mar, sararão as águas.” As muitas águas do mar simbolizam na Bíblia as nações. Ora, as águas saídas do altar são aquelas que, entrando no mar, que entrando nas nações, as podem sarar. Essa água é a pessoa de Cristo.

Nessa declaração de Jesus, João esclarece que a expressão “rios de água viva que correrão do interior das pessoas” se referia à recepção e manifestação do Espírito que, como sabemos, foi derramado sobre os discípulos no dia de Pentecostes, outra das grandes festas bíblicas.

Assim, podemos entender que a expressão “no último dia, o grande dia da festa” tem uma profunda conotação teológica e não se limita a ser uma referência cronológica. Isso leva-nos a afirmar sem receio que podemos esperar ver em cada acção e em cada pronunciamento de Jesus um profundo sentido teológico, estabelecendo uma ponte entre os preceitos de Deus e a obediência do homem. É por isso que sempre que entramos em contacto com algum episódio que envolva a pessoa de Jesus Cristo, temos sempre de perguntar: “O que está o Senhor Deus a comunicar-me? Onde posso ver aqui uma mensagem que Deus está a entregar-me?”

Foi esta faceta do ministério de Jesus que os responsáveis bíblicos do Seu tempo não conseguiram detectar nem tampouco perceber. Assim, não admira que procurassem prendê-Lo e silenciá-Lo. Quais vigilantes de uma ordem que eles próprios impunham derivada da sua interpretação das recomendações de Moisés, esses responsáveis não podiam tolerar qualquer desvio à ortodoxia instituída. Um dos seus problemas é que subordinavam essa ortodoxia a uma tradição resultante de uma prática religiosa nem sempre alicerçada numa correcta interpretação da Revelação.

Repare-se que se consideravam os únicos conhecedores e intérpretes da Lei de Deus. Por isso, podiam acusar os restantes de entre o povo: “Esta multidão que não sabe a Lei é maldita.” (v. 49) Desse modo, constituíam-se e assumiam-se como uma elite especial e favorecida. Mas pergunta-se: “Como elite, não seria sua responsabilidade e obrigação instruir a multidão?” Esse é o grande pecado e tentação das elites: demitir-se da sua função não de mestres mas de ensinadores. E ensinar, como sabemos, é um acto de amor, incompatível com o orgulho e a arrogância de guardar o conhecimento só para si.

Devido a essa arrogância, os responsáveis religiosos eram lestos a condenar quem não se encaixasse nos modelos que eles próprios haviam criado. Disso é testemunha a objecção levantada por Nicodemos que alertou para um princípio inviolável da Lei e que estava a ser espezinhado pela arrogância dessa elite auto-satisfeita: “Porventura a nossa lei condena um homem sem primeiro o ouvir e ter conhecimento do que faz?” (v. 21). Note-se que Nicodemos também fazia parte do Sinédrio mas, talvez sensível à mensagem de Jesus em resultado da conversa que ambos travaram tempos antes, não se esquecera das bases fundamentais da Lei, não se esquecera de que toda a nossa interpretação da Escritura não pode ir contra a mesma.

A resposta dos seus pares não deixa de ser surpreendente: em vez de contra-argumentarem com a própria Lei que Nicodemos invocava, contrapuseram com a Tradição que condicionava todas as suas interpretações: “Também é da Galileia? Examina e verás que da Galileia nenhum profeta surgiu” (v. 52).

Nesta resposta, podemos ver não apenas uma acusação contra Nicodemos, taxando-o de judeu impuro (os Galileus eram considerados como tal) e de ter uma visão enviesada, mas também a confissão da sua total cegueira. De facto, fazem sobrepor a Tradição à Lei, que lhe deveria servir de base. Mas Nicodemos não invocara a Tradição nem se escondera atrás dela – invocara o princípio que deve comandar toda a nossa acção, mesmo que esteja em oposição à Tradição. No fundo, quem tinha uma visão enviesada da realidade não era Nicodemos mas o restante Sinédrio.

De Jesus, ou melhor, da aplicação da Sua acção, devemos esperar não propriamente uma voz crítica contra a Tradição, mas um apelo a nunca comprometermos a realidade à sombra, o essencial ao acessório, o eterno ao passageiro, mas um apelo a nunca nos esquecermos de onde viemos e da base sobre a qual a nossa vida se deve erguer – é que essa base tem de ser a água que nos purifica e nos faz crescer!

 

C. Ourique, 26.Julho.2022

AS CREDENCIAIS DO MESSIAS

As Credenciais do Messias

João 7:10-29

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Jesus respondeu-lhes e disse: “A minha doutrina não é minha, mas daquele que me enviou. Se alguém quiser fazer a vontade dele, pela mesma doutrina conhecerá se ela é de Deus ou se eu falo de mim mesmo.” (João 7:16-17)

 

Esta secção caracteriza-se tanto pela argumentação de Jesus face à Sua missão e à natureza do Seu papel na revelação divina, na Sua qualidade de Messias como pelo desconforto que as Suas palavras produzem na assistência, amarrada aos preconceitos criados pelo ensino oficial da tradição religiosa.

Nesta argumentação, Jesus põe em causa os fundamentos de todo um ensino que distorcia a intenção fundamental das Escrituras e da Revelação em que esse mesmo ensino se dizia basear. O resultado dessa argumentação redunda na consolidação das posições de aceitação ou rejeição da Sua doutrina por parte a audiência. Mas aceitando-O ou rejeitando-O, em todos a mensagem de Jesus e a Sua argumentação produzem espanto e estupefacção. Disso é testemunha a interrogação dos assistentes: “Como sabe este letras, não as tendo aprendido?” (v. 15).

Como vimos, Jesus surge incógnito na festa (v. 10). No entanto, devido a ter-se tornado uma figura conhecida, fruto das Suas intervenções anteriores, todos esperavam que a qualquer momento aparecesse (v. 11). Ao mesmo tempo, definem-se as opiniões a Seu respeito. Podemos detectar três atitudes – a das autoridades que queriam ver-se livres d’Ele e, de entre o povo, os que O consideravam bom, aceitando-O, e os que defendiam que era um enganador, rejeitando-O (v. 12).

Presumivelmente, o autor deste evangelho ao referir que Jesus foi incógnito à festa a fim de, ao aparecer, surgir inesperadamente sem que ninguém suspeitasse quer de onde vinha, quer do momento em que se manifestaria tinha a intenção de O realçar como Messias. É que entre os Judeus corria a ideia de que o Messias, antes da sua apresentação majestosa e gloriosa, apareceria de súbito em público, sem aviso, sem que ninguém suspeitasse desse momento. Ora, ao ir incógnito e ao apresentar-se de surpresa no Templo, a ensinar, isso podia ser interpretado como um sinal da Sua messianidade. João dá testemunho desse facto no versículo 27: “Quando vier o Cristo, ninguém saberá de onde ele é.” Esta declaração está ligada ao espanto provocado pelo ensino público no Templo, numa situação em que se sabia da decisão das autoridades de O matarem (v. 25). Ora, falando com tanto à vontade e livremente, não admira a hipótese de os responsáveis religiosos se terem convencido de que Ele era o Messias (v. 26). Mas isso contradizia todas as convicções tradicionais: não se sabia de onde vinha o Messias, mas todos sabiam de onde provinha Jesus. O Seu trajecto era conhecido e todos sabiam que Jesus ia e vinha da Galileia. O próprio Jesus confirma isso: “Vós conheceis-me e sabeis de onde sou.” (v. 28) Como poderia então ser Ele o Messias?

Por aqui, vemos que a presença e identidade de Jesus provocavam polémica e não produziam consenso. A essa falta de consenso e a essa estupefacção, Jesus vai contra-argumentar com o Seu pensamento face às práticas religiosas dominantes e com a verdadeira natureza da Sua missão, da Sua função e do Seu ministério, tanto em palavras como em actos.

Quando os Judeus se interrogam quanto ao facto de Ele saber tantas coisas sem as ter aprendido (v. 15), estão a exigir-Lhe credenciais, ou seja, querem saber em nome de quem ensina o que ensina, querem saber de onde Lhe vem tal sabedoria. Pelo menos reconhecem que a mensagem de Jesus os obriga a pensar, comparando-a com o ensino tradicional. Há implicitamente o reconhecimento de que há algo de novo no ensino de Jesus, talvez até algo de positivo.

A resposta de Jesus não deixa de ser surpreendente e de ser paradoxal. Começa por primeiro afirmar a Sua subordinação a alguém que Lhe é superior, ao declarar-se como mero anunciador de quem O enviara e a quem reconhece a autoria da Sua mensagem. Assim deve ser a atitude do pregador do Evangelho, que não passa de um arauto de uma mensagem que não é sua e que o transcende.

Mas ao mesmo tempo, Jesus reconhece que se move em autoridade porque precisamente não fala de si mesmo nem busca a glória pessoal, mas a glória de quem O enviou. A força e a autoridade do arauto não estão nele mas reflectem-se no seu acto de obediência ao ser aquilo para que foi mandatado – arauto. No versículo 16, esta verdade é afirmada de modo muito claro: “a minha doutrina não é minha mas daquele que me enviou.

No versículo 17, Jesus propõe um teste pragmático para determinar a fonte, a origem da autoridade e o valor de uma mensagem anunciada. A parte inicial do versículo 17 pode ter duas leituras, dependendo de determinar a quem se refere a expressão “vontade dele.” A quem se refere este “dele”? À vontade do arauto ou à vontade de Deus? Pela forma como todo o versículo está construído, parece-nos que a expressão se refere à vontade de Deus, pelo que o sentido da frase e por extensão de todo o versículo fica mais claro se o lermos do seguinte modo: “quem estiver disposto a fazer [conhecer] a vontade de Deus, só tem de analisar a minha doutrina para saber se ela vem de Deus ou se é fruto dos meus pensamentos.

Ou seja, toda a doutrina proclamada em nome de Deus tem de mostrar inequivocamente que não exalta o seu mensageiro mas sim a pessoa de Deus e está de acordo com o seu carácter manifestado na revelação divina. Esse é o teste pelo qual toda a doutrina tem de passar. Mas este escrutínio a que toda a doutrina está sujeita exige uma relação pessoal com Deus e não pode estar dependente das interpretações a que as diversas escolas submetem a Revelação divina. Como disse alguém, Deus não é uma fórmula, mas presença e comunhão, com quem O busca, disposto a submeter-se à Sua vontade. Quando este contacto directo com Deus se rompe, desaparece a comunhão e Deus transforma-se em fórmula, sujeito à ideologia, aprisionado no universo estreito do pensamento mera e exclusivamente humano. Ao transformar-se em ideologia, a Revelação divina, que é a via para a comunhão com Deus, perde o seu carácter de sinal e transforma-se num simples código de leis castradoras, desumanas e desapiedadas, aplicadas com todo o rigor por quem se afirma como o único intérprete do carácter e da vontade de Deus.

Esta argumentação de Jesus surpreende e deixa sem resposta os Seus interlocutores, tanto mais que, a partir do versículo 19, centra a conversa na incompreensão e no desrespeito da Lei de Moisés por parte dos Seus ouvintes e da classe religiosa em geral. Jesus é muito claro ao afirmar que apesar de terem recebido a Lei de Moisés, os Judeus não a respeitam.

E não a respeitam porquê? Porque Moisés lhes deixou duas instituições centrais que acabam por caracterizar todo o judeu piedoso: a guarda do sábado e a circuncisão. Na realidade, a circuncisão surge antes da Lei, com Abraão. Moisés apenas lhe dá continuidade. Todo o judeu tinha de ser obediente ao cumprimento dessas duas instituições. Mas a Lei era clara ao dizer que a circuncisão era praticada ao oitavo dia de nascimento, o que implicava que ela poderia ocasionalmente ser executada no sábado, sobrepondo-se assim à obrigação de respeitar o sábado. Por outro lado, a própria Lei permitia que, em caso de perigo de vida, uma pessoa poderia ser salva, mesmo em dia de sábado. É com base nesta realidade que Jesus justifica ter curado um homem num sábado, referência sem dúvida à cura do paralítico de Betesda, registada no capítulo 5:10. Jesus demonstra assim que em tudo respeitou a Lei e que em momento algum a infringiu. Aquilo que Ele critica e contra o qual se levanta é o facto de os dirigentes religiosos terem transformado um preceito de origem divina em instrumento de repressão e de escravidão, adulterando por completo a intenção de todo o preceito divino que é trazer liberdade aos cativos. Fora por isso que logo no início do Seu ministério, Jesus se identificou como libertador, ao considerar que era o cumprimento da profecia de Isaías que Ele lera na sinagoga de Nazaré (Lucas 4:7-21): “O Espírito do Senhor é sobre mim… enviou-me a apregoar liberdade aos cativos, a pôr em liberdade os cativos…”

A revelação e a presença de Deus na vida do ser humano são libertadoras e nunca escravizadoras. Rejeitemos e desconfiemos de toda a doutrina que em nome de um falso evangelho traz opressão à alma humana.

O desconhecimento desta verdade levou Jesus a erguer a voz, a clamar, a gritar na própria sede do poder religioso, resumindo o essencial do que dissera até então: “Eu não vim de mim mesmo, mas aquele que me enviou é verdadeiro, o qual não conheceis. Mas eu conheço-o porque dele sou e ele me enviou.” (vv. 28,29). Há aqui um paralelismo com a sabedoria em Provérbios 1:20:21: “A suprema sabedoria altissonantemente clama de fora; pelas ruas levanta a sua voz. Nas encruzilhadas, no meio dos tumultos, clama, às entradas das portas e na cidade profere as suas palavras.” João apresenta Jesus como a sabedoria máxima de Deus, ensinando. Todo o ensino é um acto libertador e de amor porque nos abre o entendimento para percebermos e compreendermos toda a profundidade dos intentos divinos. Por isso, mais à frente (João 8:32), Jesus podia anunciar: “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará.

Com todo este posicionamento, Jesus demonstra à multidão que, ao contrário do que era crença geral, o Messias seria reconhecido não por um aparecimento repentino e inesperado, não seria reconhecido pela sua procedência mas por ser o enviado de Deus e portador do Espírito que liberta toda a alma cativa e traz consolação e refrigério ao contrito de coração. Ele era verdadeiramente o Messias. Ele é o nosso guia e salvador. A Ele toda a glória”!

C. Ourique, 19.Julho.2022

O DESAFIO DOS IRMÃOS DE JESUS

O Desafio dos Irmãos de Jesus

João 7:1-9

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E depois disto, Jesus andava pela Galileia e já não queria andar pela Judeia, pois os Judeus procuravam matá-Lo. E estava próxima a festa dos Judeus, a dos tabernáculos. (João 7:1-2)

Este capítulo 7 de João integra o chamado “Período de Conflito”, em que a oposição entre o ministério de Jesus e as autoridades religiosas assume um carácter extremamente forte, de que é testemunha a decisão de essas mesmas autoridades O quererem silenciar por todos os meios possíveis.

É também neste período que se vão definindo entre o povo a aceitação e a rejeição da Sua mensagem. Isso reflecte-se no facto de o Seu ensino estar carregado de desafios a uma tomada pessoal de decisão, de uma ambiguidade de interpretação do que anunciava e de afirmações que deixam a assistência sem resposta.

Integram este período dois grandes milagres: a cura do cego de nascença (cap. 9) e a ressurreição de Lázaro (cap. 11). Veremos mais em pormenor cada uma dessas situações.

O início deste período localiza Jesus na Galileia (v. 1 – Depois disto, Jesus andava pela Galileia…), junto da família e num ambiente que não lhe era abertamente hostil. Pela leitura dos vv. 4 e 5, ficamos até com a impressão de que o ambiente geral seria de indiferença (porque nem mesmo os Seus irmãos criam n’Ele.)

Toda esta secção do evangelho de João ocorre por ocasião da Festa dos Tabernáculos (v. 2 – E estava próxima a festa dos Judeus, a dos Tabernáculos.). A Festa dos Tabernáculos era uma das festas mais importantes do calendário judaico e atraía multidões a Jerusalém (Levítico 23:33-43). Ocorria no Outono, no final das colheitas e fora instituída para relembrar aos Judeus o tempo de peregrinação no deserto vivido pelos seus antepassados durante a epopeia do êxodo, sob a liderança de Moisés. Para não se esquecerem das provações que os antepassados experimentaram nesse período, os Israelitas eram convidados a, durante esses dias de festa, viverem em tendas, com o seu carácter transitório. A Festa dos Tabernáculos apresentava um significado profundo, pois relembrava aos participantes quão transitória e precária era a vida humana. Recordava-lhes que, à semelhança dos Israelitas saídos de uma terra que não era a sua pátria, a nossa vida neste mundo, que não é também a nossa pátria, é uma caminhada para uma situação na qual podemos dizer: “Durante todo o meu percurso fui dirigido por Deus, a Quem me sujeitei, obedecendo-Lhe!”

Mas a Festa dos Tabernáculos tinha uma outra relevância para os Israelitas. Como sociedade eminentemente agrícola que era, os Israelitas estavam dependentes do que a terra produzia. Assim, ocorrendo no Outono, após as colheitas, a Festa recordava-lhes o sustento que em última instância provinha da beneficência de Deus, uma vez que fora Jeová que lhes prometera uma terra onde habitar e prosperar. Era assim uma festa com um duplo significado, carregada de motivos da maior alegria.

Sendo uma época em que Jerusalém estava repleta de gente das mais diversas origens, não admira que os irmãos de Jesus O desafiassem a deslocar-se até à capital para que, conforme as suas palavras, “os Seus discípulos vissem as obras que Ele fazia.) (v. 3).

Parece-nos haver um claro tom de desafio nesta sugestão, até porque, como João informa, “nem mesmo os Seus irmãos criam n’Ele.” (v. 5)

Para quem tem a certeza, como Jesus tinha, de ter sido enviado por Deus e de possuir uma mensagem de transformação era tentador responder afirmativamente a um tal desafio.

E esta é uma primeira lição para todo o obreiro de Deus, para todo o proclamador do evangelho. Tendo a certeza do poder e do valor da mensagem do evangelho, o anunciador do mesmo pode considerar que deve aproveitar o desafio que lhe façam de ir à grande cidade, à grande festa que tanta gente atrai. Que oportunidade magnífica, poderá ele pensar!

Mas a decisão e a atitude de Jesus foram noutra direcção e a Sua resposta pode surpreender o mais incauto. Jesus responde, no v. 6, “que ainda não era chegado o Seu tempo.” E baseado nessa realidade declara que não se deslocará à cidade, conforme lemos no v. 8 (…eu não subo ainda a esta festa, porque ainda o meu tempo não está cumprido.) Ora, lendo a continuação do relato joanino, verificamos que mais tarde Jesus acaba por ir à festa, mas de forma oculta. Vai incógnito, sem chamar a atenção para si mesmo (v. 10).

A uma primeira leitura descuidada, tudo isso parece estranho e a atitude de Jesus surge como inconsistente e contraditória. Mas lendo com mais atenção, verificamos que não é assim.

Jesus sabia que, em resultado das Suas intervenções anteriores, suscitara muita controvérsia e animosidade por parte das autoridades religiosas, tanto através dos sinais operados como da mensagem que punha em causa o ensino oficial rabínico. Muito provavelmente não desconhecia que houvesse quem o quisesse matar, conforme nos revela João (v. 1).

Ora, tendo vindo com uma missão especial, de que tinha pleno conhecimento, Jesus sabia que tinha de cumprir até ao fim o Seu ministério, sem se desviar do plano que Deus estabelecera para Si. Então, teria de agir em cada circunstância segundo os ditames desse plano e não segundo a Sua própria vontade. Disso é testemunha tanto a oração agónica no Jardim do Getsémani (faça-se a Tua vontade e não a minha – Mateus 26:39), como as diversas declarações de que viera na vontade do Pai e de que não buscava a Sua glória, mas a do Pai (v. 18).

Assim, ciente do Seu lugar no plano de Deus, tinha de receber o aval do Pai quanto à Sua deslocação a Jerusalém. Se a resposta fosse negativa, permaneceria na Galileia. Se fosse positiva, iria até à festa. É, então, nesse sentido que temos de ler e de interpretar a Sua resposta aos irmãos de que não era chegado o Seu tempo. Note-se que esta expressão surge por duas vezes: no versículo 6 e no versículo 8. Este termo “tempo”, tradução do Grego kairós, refere-se não à data da Sua morte, mas sim a um momento específico da corrente temporal (cronológica). Segundo o plano de redenção a que estava sujeito, Jesus sabia que ele implicava a Sua morte de que, logicamente, não poderia escapar. Não se tratava, portanto, de querer fugir à Sua execução durante ou depois da festa, mas de saber se a Sua deslocação a Jerusalém nessa ocasião era o momento adequado, se era um kairós sintonizado com o plano e a vontade de Deus. Era-lhe, portanto, importante orar ao Pai em busca da orientação e decisão divinas. Que cada um de nós busque primeiro a direcção de Deus e não se deixe levar pelo engodo de uma situação aparentemente propícia e adequada. Fazendo o que Jesus fez, poupar-nos-emos muitos amargos de boca.

O que é certo é que Jesus, depois de consultado o Pai e depois de ter recebido a Sua resposta e aprovação, desloca-se, repita-se, não no tempo pessoal, não no tempo dos Seus irmãos, mas no tempo indicado por Deus.

O versículo 10 indica-nos como Jesus se deslocou a Jerusalém – em oculto. Foi incógnito, sem alarde, sem bandeiras, sem o rufar de tambores, sem aclamações. Tudo isso iria ocorrer, sensivelmente daí a seis meses, aquando da Sua entrada triunfal na capital da nação. Em ambos os casos, no tempo de Deus mas neste a Sua presença assumiria um outro carácter.

Este aspecto de estar incógnito não diminui nem o valor nem a proclamação do evangelho. Há momentos em que o evangelho é anunciado longe dos holofotes e dos grandes ajuntamentos. O momento da sua proclamação está sujeito a uma única exigência: ser no tempo, no kairós de Deus.

Recordando o episódio de Elias (1 Reis 19:8-12), Deus nem sempre está num grande e forte vento, nem sempre está no terramoto, nem sempre está no fogo. Não poucas vezes, Deus está na voz mansa e delicada. Tenhamos ouvidos para ouvi-la.

Soli Deo gloria!

SAC, 12.Julho.2022

Surge et ambula – O paralítico de Betesda

Surge et ambula – O paralítico de Betesda
João 5:1-15

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Jesus disse-lhe: Levanta-te, toma a tua cama e anda. (João 5:8)
Dicit ei Jesus: Surge, tolle grabatum tuum et ambula. (João 5:8)
Este episódio relata o terceiro milagre registado no evangelho de João. De novo em Jerusalém, Jesus dirige-se durante um sábado a um tanque onde, no meio de uma grande multidão, se dirige a um homem acamado, doente há trinta e oito anos a quem, depois de lhe perguntar se quer ser curado, restaura a saúde. Num segundo encontro, desta vez no templo, ordena-lhe que não peque mais. Quem não gostou do acontecido foram os religiosos que querem saber mais pormenores sobre a ocorrência.
Tradicionalmente, muitos comentadores bíblicos apontam este episódio para referir que Jesus tem poder sobre o infortúnio das pessoas e que para Ele não há mal-estar que atormente o padecente que Ele não possa curar. Para chegar a esta conclusão salientam o número de anos – 38 – em que este homem esteve privado da sua saúde. Sem negar esse facto, iremos ver que este episódio contém outras lições e conclusões que não devemos ignorar nem desprezar.
Acresce que em consequência dessa cura, tem início o choque entre Jesus e o sistema religioso do Seu tempo, que Ele aproveita para, através de diversas intervenções, ir transmitindo o evangelho de que é arauto.
A cena passa-se em Jerusalém, por ocasião de uma festa religiosa cujo nome o texto não menciona pelo que só podemos especular qual seria. De entre as sete principais festas dos Judeus, havia três que se destacavam: a Páscoa, o Pentecostes ou das Colheitas, realizado cinquenta dias depois da Páscoa e a festa dos Tabernáculos, que ocorria no Outono. Esta festa do capítulo 5 poderia ser uma dessas. Pelo versículo 1 ficamos com a ideia que teria ocorrido pouco depois da deslocação de Jesus a Jerusalém, por ocasião da Páscoa. Seja ela qual for, apenas sabemos que tudo ocorreu por ocasião de uma festa religiosa cujo nome desconhecemos.
O que sabemos, porém, é que tudo ocorreu em Jerusalém num tanque chamado de Betesda, situado perto da Porta das Ovelhas, edificada elo sumo sacerdote Eliasib no tempo de Neemias (Neemias 3:1) e por onde entrariam as ovelhas provavelmente destinadas ao sacrifício no Templo, situado a pouca distância.
O nome do tanque era Betesda que significa “Casa da Misericórdia” e era procurado por todo o tipo de doentes porque as suas águas tinham a fama de curar quando agitadas por um anjo.
Diz também o versículo 3 que entre aquela multidão de enfermos havia três grandes enfermidades: cegos, coxos (ou paralíticos) e ressicados ou doentes com ossos sem vida.
Nestas informações que o texto nos fornece cruza-se uma série de elementos com carácter simbólico e espiritual.
Na primeira ida a Jerusalém, Jesus dirige-se ao Templo, ao centro religioso da nação, onde se acolhe a elite sacerdotal. Mas nesta segunda visita, vai junto do povo desprezado passando pela Porta das Ovelhas aquele que é o Cordeiro de Deus.
Na primeira visita, derriba as mesas dos cambistas, mas na segunda está na Casa da Misericórdia aquele que é misericordioso.
O texto diz-nos que o tanque tinha 5 alpendres ou pórticos. O pórtico recorda o Templo, nomeadamente o pórtico de Salomão (João 10:23), pois era nos pórticos que se praticava o ensino oficial. Agora, neste local com 5 pórticos, Jesus surge para ensinar algo de novo, uma nova Lei marcada pela misericórdia de Deus. E tal como o edifício doutrinário dos Judeus se baseava nos 5 livros da Lei, agora este ensino de Jesus processa-se à sombra destes 5 pórticos.
O versículo 3 diz que entre a multidão de enfermos se contavam cegos, coxos e ressicados. Para além de deixar implícito que Jesus se sente bem entre as multidões de necessitados porque lhes traz não apenas uma palavra de ânimo e de consolo mas também a solução para os seus problemas, revela-O pronto à acção.
Do ponto de vista espiritual, um cego não consegue ver as realidades da Escritura santa – mas Jesus é a luz do mundo – quem O segue não andará em trevas.
Um coxo ou paralítico está incapacitado de percorrer com normalidade e desenvoltura o caminho que o leva a viver uma vida plena – mas Jesus é o caminho e quem segue por ele não se perde e pode desfrutar a beleza de toda a paisagem.
Um ressicado, que faz lembrar a visão do vale de ossos secos de Ezequiel 37, é alguém cujos ossos estão secos, sem vida e, portanto, inúteis – mas Jesus é a água e a vida, vivificando todo aquele que por acção própria ou pelas circunstâncias exteriores se encontra sem vida e com uma alma seca.
Sabemos também que o paralítico a quem Jesus se dirige se encontrava naquela situação há 38 anos. Não deixa de ser curiosa esta constante referência a números, que encontramos nos evangelhos: 12 apóstolos, 70 discípulos, 5 maridos, 5 alpendres, 38 anos, 153 grandes peixes e por aí fora.
Quarenta foram os anos passados no deserto durante o êxodo, mas é curioso que Deuteronómio 2:14 refere que de Cades-barnea até ao ribeiro de Zered, se tinham passado 38 anos, em cujo período desaparecera a geração de murmuradores contra Moisés. Cades-barnea foi o local onde os Israelitas se assustaram com o relatório dos espias enviados à Terra de Canaã e em virtude disso murmuraram contra Moisés. Embora estando às portas da Terra Prometida, essa revolta impediu-lhes a entrada e forçou-os a peregrinar no deserto durante 38 anos até o povo entrar por Zered em Canaã sob o comando de Josué.
Haveria então uma relação entre o episódio da rebelião e a situação do paralítico porque, de acordo com João 5:14, a ordem de Jesus de ele não pecar mais sugere que a sua situação de enfermidade se devia ao pecado.
O que é certo é que aqueles 38 anos indicam que toda a vida útil daquele homem fora consumida pela doença, resultante do pecado, impedindo-o de uma vida plena e significativa.
Tantos anos enfermo provocam danos não apenas físicos mas também psicológicos. Repare-se que quando Jesus lhe pergunta “Queres ficar são?”, uma pergunta que parece desnecessária e que quase exige uma pronta resposta positiva, o homem refere as circunstâncias externas que o impedem de ser curado. Há um claro desânimo na sua voz. Um tom de justificação, uma atribuição de culpa a terceiros, uma total dependência da ajuda e da caridade alheia.
Ficamos com a sensação de que Jesus quer do homem uma resposta clara, não uma desculpa, quer a aceitação de que, embora necessitado de ajuda, está disposto a fazer o que está dentro da sua acção para sair daquela situação.
Na resposta de Jesus, podemos encontrar todo o um evangelho. Para já, é um evangelho, ou seja, boas notícias: “Levanta-te, toma a tua cama e anda.” (v. 8). Temos aqui três verbos, todos eles no imperativo, que indica uma ordem. A ordem implica autoridade e poder Só dá uma ordem quem é detentor de autoridade.
Em segundo lugar, todos esses verbos referem uma acção activa e não passiva: levantar, tomar (segurar ou transportar) e andar.
Ora, o evangelho é poder, conforme o ensino de Paulo:”Não me envergonho do evangelho de Cristo, pois é o poder de Deus para salvação de todo aquele que crê.” (Romanos 1:16). Mas o evangelho não se limita ao poder mas apresenta-se como a manifestação de acção. Basta reparar na última instrução dada aos discípulos: “Ide, ensinai, baptizai.” (Mateus 28:19).
Neste episódio, Jesus não apenas mostra a Sua autoridade como ordena que o homem aja, que faça alguma coisa, que não se renda à passividade.
Levanta-te… De imediato vem-nos à lembrança uma outra ordem semelhante “Levanta-te de entre os mortos e Cristo te esclarecerá” (Efésios 5:14). Levantar implica que o homem tinha de abandonar a prostração em que se encontrava, de se assumir na posição erecta, aquela que caracteriza o ser humano normal e com a qual Deus o dotara, em suma, assumir a sua condição de ser humano pleno, não sujeito a qualquer amarra que o diminua.
O Evangelho é a restauração da integridade total do ser humano, a proclamação posta em prática de que Deus quer o homem livre de tudo quanto o impede de, em comunhão com o Salvador, atingir a plenitude daquilo para que foi criado.
A segunda acção era tomar a sua cama. Não bastava que o paralítico se assumisse como homem pleno, em combate contra aquilo que o mantinha prostrado: era-lhe ordenado que assumisse o controlo sobre os instrumentos da sua prostração e infortúnio. Agora, já não era servo daquela cama, mas seu senhor. Ao tomar a sua cama, estava a impor-se à sua infelicidade, a dominar as suas circunstâncias, a confirmar a recuperação do seu estatuto de homem livre e pleno. Como cristãos libertos das amarras do pecado, temos de lhe mostrar que ele agora não tem domínio sobre nós.
A última acção – andar – implica movimento. Repare-se na progressão das acções, no sentido do esforço que cada uma exige. Assim é a nossa caminhada cristã: começamos com uma decisão pessoal de tomar uma atitude, ainda que contra todas as expectativas e circunstâncias; depois, vamos assumindo poder e controlo sobre o que nos dominava e diminuía e finalmente pomo-nos a caminho à descoberta de um mundo novo cujas portas nos são abertas pelo evangelho.
Ao ser-lhe ordenado que andasse, o homem é convidado a abandonar por completo o seu local de prisão, a sua condição de incapacitado e a dirigir-se para um mundo a que não tinha pleno acesso porque a paralisia lho impedia. E cada passo que dava afastava-o cada vez mais do seu lugar e circunstância de infortúnio.
Assim é connosco a partir do momento em que Cristo entra na nossa vida: Ele levanta-nos, faz-nos senhores do nosso infortúnio e leva-nos à descoberta incessante das novas realidades espirituais, com isso afastando-nos cada vez mais da vida velha de aprisionados ao pecado.
Repare-se que o homem pegou na cama onde jazia e transportou-a pela cidade. Sabemos isso pelo versículo 10, quando os religiosos lhe dizem que por ser sábado não podia transportar a cama.
E perguntamos: se dele foi curado, porque leva ele o instrumento do seu infortúnio? Haverá algumas razões. E à partida, não nos esqueçamos de que ele transporta não a sua condição mas o instrumento da sua condição.
Em primeiro lugar, ao não deixar no local a sua cama, nem deixa lixo para trás nem permite que algum outro se aproveite da cama, perpetuando o ciclo da dependência. Assim também, ao sermos salvos, limpemos o local e as circunstâncias onde estivemos. E sempre que passarmos pelos locais ou situações onde vivemos em pecado, podemos dizer: agora sou livre, o meu pecado foi levado para longe!
Em segundo lugar, levando a cama, o homem tem agora sempre presente que já não é seu servo, mas seu senhor e que aquela cama pode servir para outras funções mais dignas.
Finalmente, levando a cama, deu testemunho aos religiosos de quem o curara, testificando ao mesmo tempo que encontrara alguém que era superior a todos os preceitos religiosos e ideológicos que nos possam prender.
De facto, nesse encontro com os religiosos, o homem deu testemunho do que lhe acontecera e à pergunta sobre a razão de transportar a cama num dia de sábado, respondeu: “Aquele que me curou, ele próprio disse: Toma a tua cama e anda” (v. 11).
Sentimos o desejo de aclamar esta declaração do homem e a sua coragem, firmeza e certeza. Mas se lermos com atenção, verificamos que falta qualquer coisa à declaração – faltou-lhe referir que Jesus primeiro lhe dissera “Levanta-te.” No fundo, omitiu o mais importante – sem se levantar, não podia tomar a cama e muito menos caminhar. Que lição para nós! Quantas vezes ficamos tão deslumbrados com a nova situação em que nos encontramos, com as novas possibilidades à nossa disposição que nos esquecemos daquilo que nos permite viver a nova situação, que nos esquecemos d’Aquele em quem tudo começou no que de bom nos aconteceu.
Sejamos-Lhe gratos e em tudo reconheçamos não apenas o que nos fez mas todas as Suas palavras que nos abriram o caminho à vida eterna.
Soli Deo gloria!

C. Ourique, 31.Maio.2022

O Oficial de Cafarnaum

O Oficial de Cafarnaum
João 4:43-54

Jorge Pinheiro
Segunda vez foi Jesus a Caná da Galileia, onde da água fizera vinho. E havia ali um régulo cujo filho estava enfermo em Cafarnaum. Ouvindo este que Jesus vinha da Judeia para a Galileia, foi ter com ele e rogou-lhe que descesse e curasse o seu filho, porque já estava à morte. (João 4:46-47)

Temos aqui mais uma história com todos os ingredientes de uma boa história. Nela encontramos dor, sofrimento, angústia, expectativa e um final feliz.
Este texto fala de um homem que se dirige a Jesus, que se encontrava em Caná da Galileia, a quem roga que vá com ele até Cafarnaum e aí lhe cure o filho que estava doente às portas da morte. Jesus atende apenas a metade do pedido do homem: não se desloca a Cafarnaum mas garante-lhe que quando regressar a casa encontrará o filho completamente restabelecido. E assim acontece de facto. Ainda antes de chegar a casa, recebe a notícia de que a febre que atormentava o filho desaparecera e se encontrava agora curado.
Como sucede com todas as histórias, temos de perguntar: que ensinamentos extraímos desta? E em que medida ela se encaixa na intenção declarada de João quando escreveu este evangelho?
Se a lermos com atenção, descobrimos uma série de informações que, complementadas com outros dados, nomeadamente geográficos, nos permitem chegar a algumas conclusões e lições interessantes.
Este episódio vem no seguimento do encontro de Jesus com a samaritana. O versículo 43 diz que Jesus permaneceu em Sicar durante dois dias, findos os quais parte para a Galileia, onde é bem recebido pelos Galileus, conhecedores do que Ele fizera em Jerusalém durante a Páscoa, nomeadamente o derrube das mesas dos cambistas no átrio do templo, os sinais ali realizados (2:13-25) e presumivelmente as suas argumentações no templo e a entrevista com Nicodemos (3:1-15).
Ficamos também a saber que na Galileia este episódio vai encontrar Jesus em Caná. Não sabemos a razão da Sua presença ali, se era passageira ou se ali fixara a Sua residência, mesmo que temporária. Podemos especular que os Seus familiares residiriam ali, nomeadamente sua mãe, uma vez que por ocasião do milagre de Caná, ela se encontrava presente. Também, pela referência que o versículo 43 faz do que acontecera em Caná, podemos presumir que o milagre ainda era recordado pelo impacte que provocara.
O que sabemos é que em Caná Jesus é procurado por um homem vindo de Cafarnaum (v. 46). A nossa versão trata-o por régulo, que traduz a ideia de ser alguém de sangue real ou um rei, uma vez que palavra “régulo” significa “pequeno rei.” No entanto, no original o termo usado transmite mais a ideia de ser um cortesão, um funcionário do rei ou, como diríamos em linguagem actual, um oficial administrativo ou governativo. Seja como for, tratava-se de alguém ligado à área do poder, provido de alguma autoridade civil e política.
Em relação a estas duas localidades, elas distavam entre si cerca de 30 a 40 kms e enquanto Cafarnaum se situava num vale, nas margens do mar da Galileia, Caná era uma cidade montanhosa, sendo assim sinuoso e acidentado o percurso entre ambas. Naquele tempo era uma distância e um percurso consideráveis.
Ora, foi esta distância que o homem percorreu na sua busca de cura para o filho que jazia às portas da morte (v. 47). Podemos imaginar a dor e a angústia desesperante deste homem que procura Jesus na qualidade de pai, pois é assim que ele se apresenta. Nos momentos de maior angústia, que abrem a porta ao desespero, o ser humano procura em todo o lado alívio para a sua dor e assume-se mais na sua qualidade intrínseca de ser humano porque sabe que, mesmo detentor das mais altas honrarias, continua a ser uma pessoa humana limitada e impotente perante aquilo que ultrapassa o seu poder de agente de autoridade.
É interessante notar que o versículo 47 utiliza a expressão “rogou-lhe que descesse.” É verdade que é uma referência ao carácter orográfico entre as duas povoações, mas podemos ver aqui um simbolismo e uma realidade espirituais. O funcionário foi do vale à montanha em busca de ajuda e de facto, em termos espirituais, nós que vivemos no vale temos de subir ao alto em busca de socorro, porque é ali que o encontraremos, conforme nos recorda o salmista:
“Elevo os olhos para os montes. De onde me virá o socorro? O meu socorro vem do Senhor que fez os céus e a terra” (Salmo 121:1-2). E também o profeta Isaías (57:15) que diz que o Senhor Deus habita num alto e sublime lugar. Deus ainda está na Sua alta e sublime habitação e a Ele recorreremos sempre em tempos de angústia e em tempos de bonança porque o Seu refrigério é permanente e constante.
A resposta de Jesus talvez tenha surpreendido o funcionário, porque começa por afirmar “se não virdes sinais e milagres não crereis.” Há aqui dois pontos interessantes. Primeiro, a referência a e milagres e não a sinais ou milagres, o que nos indica que embora movendo-se no mesmo universo apontarão para duas atitudes distintas. Já vimos que João utiliza a palavra “sinais,” querendo com isso dizer-nos que a nossa atenção deve estar mais focada não no portento da coisa extraordinária, mas no seu significado e no autor de quem a originou. Já quando falamos mais em milagre e menos em sinal, o nosso foco de interesse está mais virado para o acontecido, levando-nos a esquecer que o seu autor é que merece todo o louvor e atenção. Que sempre que buscarmos a intervenção miraculosa de Deus, o nosso coração esteja de olhos fixos n’Ele, louvando-O e engrandecendo-O.
O segundo ponto é que os verbos estão no plural: “se não virdes” e “não crereis”. Jesus não estaria a dirigir-se explicitamente ao homem mas sim aos que O rodeavam e nesse grupo podemos incluir-nos e aceitar essa Sua afirmação como uma advertência para nos fixarmos no que é importante.
O que é certo é que Jesus acede ao pedido do homem de lhe curar o filho, mas não cede ao seu desejo de descer com ele até Cafarnaum.
A verdade é que o menino enfermo ficou sarado, conforme disso dá testemunho o versículo 51. Estamos então na presença de um milagre e de um sinal, o segundo no relato que João faz do ministério de Jesus. Enquanto o primeiro – a transformação da água em vinho – revela o poder de Jesus em termos de transformar a qualidade e a natureza íntima das coisas, este segundo mostra que para Ele, a distância não é impedimento à manifestação do Seu poder. Por isso, ainda hoje, mesmo sentado à direita da majestade divina, podemos recorrer a Ele porque a distância física entre Ele e nós não Lhe tolhe o poder. E porquê? Porque estando Ele na dimensão do Absoluto, as limitações do nosso universo relativo nada são para Ele.
De acordo com o versículo 50, o funcionário não se deixou vencer pela dúvida que a distância lhe poderia suscitar, mas creu no conteúdo da afirmação de Jesus, aceitando-a como uma manifestação factual e não como uma declaração de intenções. Será que quando, a pedido de alguém, oramos por um milagre na vida dessa pessoa e declaramos que ele ocorreu, fazemo-lo como manifestação factual ou como uma declaração de intenções?
A fé do homem não foi abalada nem pela distância nem pelo tempo que levaria a percorrê-la e a testemunhar presencialmente o milagre anunciado. De facto, só no dia seguinte chegou ele a Cafarnaum. Foi uma espera no mínimo de 24 horas. O versículo 52 dá conta disso, quando os seus empregados o informam de que o menino ficara curado na véspera. Não sabemos se ele partiu no dia do milagre, em cujo caso teria iniciado a viagem a partir das 14h00 ou se, pelo contrário, teria partido no dia seguinte, o que lhe permitiria chegar ao seu destino ainda com luz do dia, evitando assim os imprevistos que numa viagem realizada com pouca luz sempre se produzem.
E esta não deixa de ser uma lição para nós. Estamos nós decididos a esperar o tempo necessário e a percorrer a distância exigível para testemunhar um milagre em que anteriormente cremos sem o termos visto? Com a agravante de embora o pedido do milagre ter sido formulado por nós e de nos termos sujeitado às canseiras de ir em busca da solução não termos sido os primeiros a testemunhar a sua concretização.
Em toda esta história há naturalmente uma pergunta pertinente que se nos impõe: por que razão Jesus não atendeu ao pedido de se deslocar a Cafarnaum? Muitas serão as respostas e todas elas não deixam de ser aceitáveis. Muito provavelmente, a razão será o somatório de todas essas respostas. Vejamos algumas:

1. Jesus estaria cansado ou teria reservado aquele período para alguma outra acção do Seu ministério. Embora pouco provável, porque Jesus nunca colocou os Seus interesses acima do serviço aos outros, não deixa de ser plausível porque uma deslocação a Cafarnaum e o regresso a Caná Lhe roubariam tempo que Ele tivesse destinado a outras acções.
2. Quis demonstrar que a distância não era impeditiva para Ele.
3. Quis mostrar, principalmente aos que O seguiriam após a Sua morte e ascensão, que não é necessária a Sua presença física para o milagre ocorrer, porque Ele está sempre presente em espírito entre os Seus.
4. Quis mostrar que para Deus não há distâncias, porque Deus é um Deus de perto mas também um Deus de longe (Jeremias 23:23).
5. Quis provar a fé do solicitante, o que é uma lição também para nós: quando Lhe rogamos alguma coisa, estamos dispostos a crer contra toda a expectativa, angústia ou outra circunstância física ou temporal?
6. Quis mostrar ao funcionário que uma palavra de autoridade ou a palavra de um agente de autoridade tem poder em si e por si mesma e não necessita da presença física do seu autor. Afinal, o funcionário era um agente de autoridade e as ordens que dele emanavam tinham poder em si e por si e nem sempre ou quase nunca exigiam a sua presença. Essa verdade foi compreendida pelo centurião que rogou pelo seu servo doente: “Dá-me uma ordem, Jesus, que eu também sou homem de autoridade e uma ordem minha é cumprida.” (Lucas 7:1-10). Estaremos nós dispostos a aceitar que o poder que nos foi delegado tem poder em si e por si e que em toda a sua aplicação tem de redundar não em benefício próprio mas em bênção do outro e glória de Deus?
7. Jesus quis deixar claro que “A Deus o que é de Deus e a César o que é de César.” Ao não aceder ao pedido de se deslocar a Cafarnaum, Jesus estaria a dizer-lhe que o Reino de Deus não pode, não tem de estar sujeito aos interesses do reino de César. O Reino de Deus abençoa também o senhorio de César mas não lhe está nem pode estar sujeito.

Repare-se também que o funcionário roga a Jesus que desça e lhe cure o filho (v. 47). No entanto, curiosamente, o evangelista regista que a resposta de Jesus não foi “Vai, o teu filho está curado”, mas “Vai, o teu filho vive” (v. 50). Poder-se-ia dizer que é a mesma coisa, que as duas expressões são sinónimas. Mas será assim? Não podemos aceitar que há uma intenção clara na utilização do termo “viver” e não “curar”? Se analisarmos as descrições das curas físicas efectuadas por Jesus, verificamos que na maioria dos casos o verbo utilizado está relacionado com o acto de curar, como na cura do paralítico de Betesda (João 5:6), “Queres ficar são?”, como no caso da cura do leproso em Mateus 8:3: “Sê limpo” ou como no caso da cura da mulher hemorrágica (Marcos 5:34) em que Jesus declara taxativamente: “Sê curada.” E isso para não falar da pergunta que faz aos fariseus: “É lícito curar os enfermos?” (Mateus 12:10) ou a ordem dada aos discípulos: “Curai os enfermos” (Mateus 8:3).
Mas nesta cura do filho do funcionário, Jesus diz: “Vai, o teu filho vive” e não “vai, o teu filho está curado.” Ou seja, a palavra de Jesus, o qual tem poder para curar, não fala aqui de cura mas de vida! Como que a querer dizer-nos que Ele nos veio dar vida e que a vida que Ele dá supera todas as nossas circunstâncias e limitações. Como que a querer dizer que o que Ele nos comunica não é uma mera restituição da saúde, que não é só e apenas uma simples resposta a um problema circunstancial na nossa existência, mas a outorga de uma vida de qualidade alicerçada na fé activa na Sua palavra que dá vida.

Estabelecendo um paralelo entre estes três grandes encontros dos primeiros quatro capítulos de João, podemos chegar a algumas conclusões interessantes e importantes:

• Nicodemos era da Judeia, a mulher de Samaria, o funcionário da Galileia, o que nos indica toda a nação de Israel.
• Nicodemos era um religioso, a samaritana uma plebeia e o funcionário um membro da classe político-governativa, o que nos indica todos os estratos do tecido social.
• Com Nicodemos, a conversa é de carácter teológico, logo é ideológica, enquanto com a samaritana e com o funcionário estamos na presença de milagres (um de transformação, o outro de cura), o que aponta para uma acção prática. O que nos indica que o evangelho tem de ser prático mas com uma boa base doutrinal e tem de ser doutrinário com uma manifestação prática, quer tanto pode atingir directamente o visado como reflectir-se indirectamente em quem tem uma relação com o visado.

Estes três episódios revelam-nos um evangelho integral que está ao alcance de todo o tipo de pessoas, acima das barreiras artificiais que tendemos a levantar face ao nosso semelhante.
Soli Deo gloria!

C. Ourique, 24.Maio.2022

O DISCURSO INCÓMODO

O Discurso Incómodo

João 5:10-47

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E Jesus lhes respondeu: Meu Pai trabalha até agora e eu trabalho também. (João 5:17)

Na meditação anterior, falámos de um homem paralítico há 38 anos, a quem Jesus curara. Agora, vamos ver as consequências dessa cura e as reacções que provocou em quem presenciou e experimentou o acto miraculoso e nos representantes do sistema religioso que ordenava toda a sociedade de então. Nesta secção do evangelho de João, vemos o confronto entre a doutrina anunciada por Jesus e as normas religiosas impostas ao povo. Também aqui temos o início da oposição declarada entre Jesus e o sistema religioso centrado no templo de Jerusalém e o primeiro grande discurso público de Jesus.

Tudo começa com o rescaldo da cura do paralítico. Embora no início do episódio nada se diga do dia em que ele ocorreu, apenas informando que se deu num período festivo, sabemos pelos versículos 9 e 10 que era um sábado.

Havia duas instituições que caracterizavam o ser Judeu e que a nação respeitava profundamente: a circuncisão e a guarda do sábado. É verdade que havia outras de igual importância, como a Lei moisaica e o templo com os seus sacrifícios, mas aquelas duas estavam coladas à alma judaica, com uma delas – a circuncisão – marcada no próprio corpo do homem judeu.

Ora, sucede que o paralítico, agora curado, é confrontado e repreendido por transportar a sua cama num dia de sábado, com isso infringindo a proibição de trabalhar nesse dia. Em termos práticos e aos ouvidos dos acusadores, o homem está a confessar que encontrou alguém com autoridade acima da instituição do sábado. Ao submeter-se a essa ordem, o ex-paralítico acaba por se tornar cúmplice do suposto infractor e por essa causa merecedor de repreensão. Quanto aos acusadores, estão mais preocupados com o cumprimento dos preceitos religiosos do que com o facto de o homem estar curado ao fim de tantos anos enfermo.

Ficamos na dúvida quanto à intenção da pergunta sobre a identidade de quem lhe ordenara que transportasse a cama (v. 12), mas não é difícil imaginar que não seria mera curiosidade mas visava criticar e condenar a suposta transgressão da não observância do sábado. Disso é reflexo não só o discurso posterior de Jesus como a própria declaração do autor do evangelho: “Por essa causa, os Judeus perseguiram Jesus e procuravam matá-Lo.” (v. 16).

É interessante o conteúdo do versículo 13: “O que fora curado não sabia quem era [o que o curara] porque Jesus se havia retirado, em razão de naquele lugar haver grande multidão.” Notemos aqui dois pontos de extremo interesse e importância. “Jesus havia-se retirado”. Ou seja, Jesus não faz alarde do acto miraculoso que realizou. Ele actua de forma discreta, deixando que as Suas palavras produzam efeito por si mesmas não se comportando como um vendilhão de mezinhas miraculosas, à espera de ser aclamado. Note-se também e saliente-se a expressão “naquele lugar.” Esse lugar é a piscina e nele a multidão era grande e composta por toda a casta de necessitados. Atendendo a que biblicamente as águas representam as nações (Apocalipse 17:15), podemos assumir “aquele lugar” como simbolizando os povos. Ora, foi no meio do povo necessitado que o poder de Deus se manifestou e não no templo, transformado em centro comercial, em casa de venda, explorador das necessidades dos necessitados. Como se o texto nos estivesse a dizer que Deus não se manifesta em edifícios de marca humana que, embora de aspecto divino, acabam por perder a sua sacralidade, mas junto das multidões que, quais ovelhas entrando pela porta da ovelhas, se aglomeram sem esperança, corroídas pelos males que a sua vida de pecado lhes vai deixando na existência.

Na sequência deste episódio de cura, temos o primeiro grande discurso de Jesus, cheio de uma novidade vivificadora e que entra em choque directo com a mentalidade rígida e castradora de um sistema religioso que impõe aos seus seguidores o espartilho do formalismo institucional. A isso, Jesus tem para oferecer uma mensagem de relação e comunhão com Deus, encarado como pai e não como juiz, como restaurador pleno da vida, convidando os mortos a deixarem o seu estado de decomposição e a aceitarem a nova vida que lhes é oferecida.

É interessante a forma como Jesus inicia este Seu importante discurso: “Meu Pai trabalha até agora e eu trabalho também.” (v. 17). Começa com duas expressões estranhas. Trata Deus não como Senhor e dono, não como juiz e distante, mas como Pai, o que indica uma proximidade de intimidade. Depois, declara que ”Deus trabalha até agora”, numa aparente oposição à afirmação de Génesis 2:3, “e abençoou Deus o dia sétimo e o santificou porque nele descansou de toda a Sua obra que Deus criara e fizera.” Era com base neste texto que toda a Lei se apoiava para justificar a sacralidade do sétimo dia, o sábado. Ora, as palavras de Jesus não deixam de surpreender a um ouvido formatado pelas imposições formalistas e rígidas do pensamento religioso, consideradas imutáveis e intocáveis e, por isso, essas palavras foram categorizadas como heréticas

De facto, Jesus nunca nos deixa de surpreender, a tal ponto que, quando consideramos ter a resposta para todos os problemas, Ele chega e baralha-nos a ordem e o conteúdo das perguntas. E habituados que estamos a ter resposta pronta, decorada sem uma reflexão cuidada e baseada no espírito da vida e não na letra formal e fria da lei institucional, sentimo-nos sem chão, dispostos a rejeitar tudo quanto vá contra as nossas certezas.

É o que Jesus faz aqui nesta Sua intervenção: baralha a ordem das perguntas, faz uma releitura da verdade-base e diz sem rodeios: “A revelação tem de ser lida na bênção e na certeza de uma relação com Deus na Sua qualidade de Pai preocupado connosco e interessado no acabamento desta obra-prima que é a vida humana, a quem Ele considera Seu filho.” No Génesis, Deus descansou da obra que fizera e criara, porque tudo estava perfeito, pois em Génesis 1:31, lemos que era tudo muito bom. Mas agora, neste mundo que Ele criou, há criaturas Suas que saíram das Suas mãos, destinadas a uma comunhão íntima com Ele, que estão manchadas, imperfeitas num caos sem retorno. E enquanto nesse caos não houver ordem, beleza e perfeição, Deus não descansa. Ele trabalha até agora porque está interessado em cada um e de cada um de nós aproxima-se não como legislador, não como juiz mas como Pai. E para que O possamos reconhecer e à Sua obra e intenção, enviou-nos Seu Filho Jesus que se nos apresenta idêntico a nós, mas perfeito, dizendo com isso que tal como Jesus é, assim podemos nós também ser.

Ora, todo este discurso surge como blasfemo pelos guardiões do templo erigido por mãos humanas, pelos defensores do formalismo religioso institucionalizado, pelos carrascos da liberdade que querem perpetuar a menoridade do ser humano, impedindo-o de caminhar na nova liberdade que lhe é oferecida.

De facto, é como blasfémia que os Judeus recebem este discurso, porque o versículo 18 revela que a razão de O quererem matar baseava-se no facto de não só quebrar o sábado, como de se assumir como idêntico a Deus.

Há comentadores que afirmam que Jesus não se declara igual a Deus e que essa afirmação resulta de uma interpretação equivocada que os Seus interlocutores fizeram das Suas palavras no versículo 17 e que nós repetimos sem uma devida contextualização. No entanto, se lermos com atenção toda a argumentação subsequente de Jesus, verificamos que a interpretação dos Judeus não está divorciada da verdade. Essa argumentação tem início no versículo 19, onde Jesus começa com uma atitude didáctico-pedagógica, seguindo o método que sempre seguiu: parte do conhecido para o desconhecido, parte de uma realidade física e detectável para uma verdade espiritual e transcendente.

No versículo 19, habitualmente as nossas Bíblias grafam “filho” e “pai” com maiúscula, querendo assim indicar que essas palavras se referem de forma directa, respectivamente a Jesus e a Deus, o que significaria que é logo aqui que Jesus começa a Sua argumentação de se afirmar igual a Deus. Propomos, no entanto, uma outra leitura que se torna mais clara se lermos essas duas palavras com minúscula. Assim, o que Jesus estaria a dizer era que tal como numa relação humana um filho está dependente do pai, de quem tudo aprende, assim é a relação entre Jesus e Deus. E de facto, faz sentido esta releitura; um pai projecta-se no filho, ensina-o, revela-lhe o segredo das coisas e envia-o ao grande mundo onde revelará a todos aquilo que aprendeu com o pai a quem viu fazer tudo quanto agora faz. Esta é uma realidade física que todos conhecemos e que era também do conhecimento dos adversários de Jesus que, a partir deste ponto consensual, avança para a grande verdade espiritual: de igual modo, se Deus Pai ressuscita os mortos e os vivifica, se Deus Pai cura os doentes, então o Filho de Deus limita-se a fazer o mesmo que Deus Pai. E se Jesus cura, vivifica e ressuscita os mortos, então que conclusão podemos extrair?

Todo o discurso de Jesus, desde o versículo 21 até ao 47 segue esta linha de pensamento, pelo que chegando ao fim, podemos afirmar que em tempo algum Jesus desmente a conclusão a que os seus opositores chegaram: Jesus está a declarar-se igual a Deus.

E para dar força às Suas reivindicações, Jesus declara que a Sua confissão se baseia no cumprimento das Escrituras que testificam d’Ele. No versículo 37, lemos: “O Pai que me enviou, Ele mesmo testificou de mim” e no versículo 39 encontramos: “Examinais as Escrituras… que de mim testificam.” E no seguimento, uma conclusão poderosíssima: “E não quereis vir a mim para terdes vida.” (v. 40). N’Ele há vida e por isso podia proclamar: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida.” (João 14:6)

Soli Deo gloria!

SAC, 7.Junho.2022

A Mulher Samaritana – II

A Mulher Samaritana – II

João 4:19-30

 Jorge Pinheiro 7

Disse-lhe Jesus: “Mulher, crê-me que a hora vem em que nem neste monte nem em Jerusalém adorareis o Pai. Vós adorais o que não sabeis; nós adoramos o que sabemos, porque a salvação vem dos Judeus. Mas a hora vem e agora é em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade, porque o Pai procura a tais que assim O adorem. (João 4:21-23)

 

Na meditação anterior, detectámos um paralelismo entre o estado civil da samaritana e a situação espiritual do seu povo. Relembremos que a revelação de que ela tivera cinco maridos e de que o homem com quem então vivia surge no seguimento do pedido de água por parte de Jesus, que afirma ter uma água que supera a água do poço, pois sacia eternamente a sede de quem a bebe. É neste contexto que surge a ordem de Jesus de ela ir buscar o seu marido e de se apresentarem os dois perante Ele. Nesta ordem, há um apelo a que a mulher assuma um compromisso com quem mantém uma relação de intimidade.

Não será forçar o texto afirmar que a recepção desta água viva que Jesus oferece implica um compromisso de uma relação íntima com a aceitação dessa mesma água. De facto, do Cristão exige-se um compromisso com as verdades que recebemos de Deus e com a dádiva de Jesus que em nós produz o abandono de uma água caduca que não sacia perpetuamente e que, pelo contrário, exige de nos uma recorrência constante aos mesmos rituais, muitas vezes realizados quando o calor das aflições mais aperta, simbolizada pela hora sexta a que a mulher se dirigia ao poço.

Não deixa de ser curioso que a hora a que a mulher se dirigia ao poço era a sexta. Não era apenas o momento de intenso calor, mas também indicava a metade do dia. De resto, a hora sexta corresponde às doze horas do nosso sistema cronológico que é a hora que separa as duas metades do dia. Acrescente-se também que na numerologia bíblica, seis é o número do homem e que foi nessa hora que Jesus começou a dialogar com a mulher, trazendo-lhe a novidade da oferta de uma comunhão íntima com Deus, com quem exige um compromisso firme.

Que lições podemos extrair destes simbolismos? Na hora do homem, a sexta, surge a revelação de Jesus que nos convida a encerrar um ciclo que mais nada tem para dar e iniciar um novo ciclo em que a vida é inesgotável, permanente e vivificadora.

Falando em água, é curioso que além dela Jesus menciona nos seus discursos o sal e o ar. Estes são três elementos carregados de um profundo significado e valor espiritual. O ar ou vento aponta para Deus, que é espírito. Em grego, espírito é designado por pneuma, que também significa vento. Deus, ao criar o homem, soprou-lhe nas narinas e o homem foi feito alma vivente (Génesis 2:7). Jesus soprou sobre os discípulos, dizendo: ”Recebei o Espírito Santo (João 20:22). No dia de Pentecostes, o Espírito Santo desceu sobre os apóstolos como um vento impetuoso (Actos 2:2). Quanto à água, ela está relacionada com o arrependimento, com a purificação e com a salvação, enquanto o sal surge ligado à transformação, à cura, ao testemunho, à santificação.

Estes três elementos são indispensáveis ao ser humano que não pode viver sem eles. Privado deles, o homem pouco tempo tem de vida. Mas eles têm uma característica comum: nenhum tem carbono na sua composição química. Ora, o homem, para além de viver num planeta carregado de carbono, é todo ele formado com carbono e depende do carbono. Todos os alimentos da roda dos alimentos têm carbono na sua composição. A maioria do vestuário e dos abrigos do homem tem carbono e até a sua pedra mais preciosa, o diamante, é carbono puro. O homem pode abdicar de muitas coisas com carbono, da alimentação ao vestuário, que não morre com a sua ausência. Mas privado destes três elementos sem carbono – ar, água, sal – perto está do seu fim. O que nos diz que em termos espirituais o homem não pode viver sem esses elementos de origem divina – o espírito, a salvação, a santificação!

Mas voltando à samaritana, tal como há um paralelismo entre a sua situação civil e a situação espiritual do seu povo, também há um paralelismo entre os Samaritanos e a nossa geração. É que tal como os Samaritanos tinham cinco santuários a deuses estranhos, a nossa geração divide-se e oscila entre cinco grandes correntes do Cristianismo (são elas a Igreja Copta, a Igreja Católica Romana, a Igreja Ortodoxa, a Igreja Anglicana e as Igrejas Reformadas), cujos aderentes consideram a sua matriz como a única verdadeira, imitando os Samaritanos que adoravam no monte Gerizim em oposição ao templo de Jerusalém. E quantos no mundo cristão não se agarram ao seu monte, declarando que é apenas nele que Deus se manifesta e pode ser adorado? À semelhança da samaritana, esta geração precisa que Jesus lhe venha dizer “Homens, crede-me que a hora vem em que nem neste monte nem em Jerusalém, adorareis o Pai!” À semelhança da samaritana, esta geração precisa que Jesus lhe diga: ”Homens, adorais o que não sabeis, porque a salvação vem da revelação que vos trago, porque eu vos revelo o Pai!” E todos nós, crentes e descrentes, precisamos de saber que “a hora vem e agora é em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade. Porque o Pai procura esses que assim O adorem.”

Ele convida-nos a sermos  verdadeiros adoradores em espírito e em verdade. Queremos sê-lo? Estamos dispostos a reconhecer e a aceitar as exigências que Ele nos propõe? Estamos dispostos a deixar de adorar nos nossos montes caducos, ultrapassados e muitos deles falsos e deixarmo-nos encontrar pelo Pai que nos busca?

Repare-se que Jesus repete por duas vezes esta expressão “adorar o Pai em espírito e em verdade” (4:23, 24).

Note-se que em resposta à argumentação da mulher relativamente ao local de adoração (v. 30), Jesus é muito claro e taxativo: “Vós adorais o que não sabeis… a salvação vem dos Judeus.” Apesar de toda a novidade apresentada por Jesus e que abala todo o edifício teológico da samaritana, Jesus não tem para com ela uma palavra de condenação ou de danação. Ele apenas afirma a verdade. À semelhança da samaritana, precisamos de saber e de aceitar que a verdade vem da revelação de Deus aos patriarcas, aos profetas e aos apóstolos, revelação essa concentrada em pleno em Jesus, o dom de Deus para a humanidade.

Num segundo ponto, Jesus declara que Deus é Pai, o que indica que a relação entre nós e Deus tem de ser de intimidade porque recebemos d’Ele a Sua natureza. Não somos um corpo exógeno ou estranho para Deus. Entre Ele e nós não há anticorpos porque, como Seus filhos, partilhamos com Deus a Sua natureza. E se anticorpos surgirem, o sangue de Cristo elimina-os porque pelas Suas pisaduras fomos sarados.

Uma terceira verdade é que o momento em que podemos e devemos adorar a Deus conforme a revelação de Jesus, já chegou. “Mas a hora vem e agora é.” (v. 23). Jesus abriu o caminho para essa comunhão, iniciou esta nova era, introduzindo-nos num tempo novo quando por ocasião da Sua morte o véu do templo se rasgou.

Uma quarta verdade é que Deus não está dependente de um lugar, não está preso nem aprisionado num santuário feito pela mão de homem algum. Diz o apóstolo Paulo que nós somos o templo do Espírito Santo, o que faz todo o sentido porque se temos a natureza de Deus e se o Espírito de Cristo habita em nós, então nada mais natural que o semelhante procure o semelhante.

O que nos leva a uma quinta verdade: o Pai procura esses que assim O adorem. Deus procura-nos e como podemos escapar Àquele que tudo vê e a cujos olhos nada escapa? Se o Pai busca é porque tem interesse em nós. Para Ele somos preciosos. E que coisa maravilhosa essa quando, olhando para nós mesmos e nos achando tão falhos e tão indignos, ouvimos que Deus nos busca! Como não reagir gozosos, dispostos a tudo fazer, agradecidos porque o Seu amor nos constrange, a Sua benignidade dura para sempre e n’Ele estamos protegidos, escondidos na Sua potente mão? Por isso, a nossa resposta não pode ser outra senão actos de agradecimentos e de amor.

O nosso culto antigo exigia o recurso a bens exteriores – o sacrifício – a que renunciávamos e que quantas vezes não apresentavam a nossa impressão digital e ofertados não poucas vezes como o fruto do medo! Agora, neste culto a que Jesus nos convida a participar, entramos confiantes com uma oferta que provém não do exterior mas do íntimo de nós mesmos, sabendo que ela será aceite pelo nosso Pai que se compraz em chamar-nos Seus filhos.

Recorde-se que a mulher, percebendo o alcance das palavras de Jesus, deixa o cântaro para trás (v. 28), liberta do seu peso, e corre a anunciar esta boa nova. A palavra cântaro é a mesma do episódio de Caná. Ambas estavam ligadas ao culto antigo que exigia todo um cerimonial externo para uma aproximação  a Deus. Que à semelhança da samaritana estejamos dispostos a largar o nosso cântaro que nos prendia a tradições, a legalismos, a um culto ritualista que se erguia como uma barreira à entrada directa na comunhão com Deus.

Finalmente, a grande verdade desta revelação de Jesus – Ele diz que é possível e assim deve ser o nosso culto a Deus: “em espírito e em verdade.”

O nosso culto deve ser verdadeiro em dois sentidos: 1) não ser falso, mas ser real e 2) basear-se na verdade que é Cristo, que o mesmo é dizer que todo o nosso culto tem de estar em sintonia com os ensinamentos de Cristo.

Mas o que significa a expressão “adorar em espírito”?

Antes de tentarmos responder, recordemos que os Judeus utilizavam como sinónimo de adorar uma palavra que se referia a “servir.” Ora, servir implica dar sem esperar nada em troca. Assim, quando adoramos, estamos a ofertar um serviço. Já o Novo Testamento utiliza dois termos para “adorar.” Um conserva o significado de “servir”, enquanto o outro transmite a ideia de “prostrar-se.” Por isso, na adoração o crente tem a tendência a prostrar-se, a inclinar-se perante Deus.

Notemos que a expressão “adorar em espírito” vem no seguimento da declaração de que “Deus é espírito” e é antecedida pelo verbo “importa”, ou seja, “é necessário”, “é imperioso”, “é indispensável.” Há aqui uma relação de causa e efeito; como Deus é espírito, Ele tem de ser adorado em espírito! Ou seja, a nossa adoração, o nosso serviço a Ele tem de ter em si características que façam parte da natureza de um espírito e, neste caso, do espírito de Deus.

Então, se a única adoração agradável a Deus tem de ser “em espírito”, temos não só de conhecer as características do espírito de Deus, de conhecer a natureza íntima de Deus, como incorporar na nossa adoração essas mesmas características, porque o semelhante identifica-se com o semelhante.

Vemos então que se quisermos adorar correctamente Deus, temos de O conhecer e de ter presente que  a adoração é um serviço que Lhe prestamos a Ele e não a nós, que na adoração toda a nossa atenção e intenção têm de estar centradas n’Ele pois é Ele a quem servimos.

Se Deus é espírito, então não está dependente nem limitado por tudo quanto esteja relacionado com o mundo físico, com o mundo do relativo. Assim, Deus não está nem pode estar preso ou dependente de um lugar, de um objecto, do tempo, de uma postura especial ou de qualquer coisa cuja natureza e existência estejam dependentes e ligadas ao mundo físico. Por isso, Jesus dizia (v. 21) “que nem neste monte [Gerizim] nem em Jerusalém devemos adorar o Pai.” Não há, pois, lugares que por si só sejam sagrados porque se sagrado é o local onde Deus está, então toda a criação é sagrada porque toda ela saiu das mãos de Deus. Assim, o mais correcto seria afirmar que sagrado é o local onde Deus na Sua busca de nós nos encontrou e aí O servimos.

O que se diz do espaço, diz-se do tempo, dos objectos, de tudo quanto nos identifica como seres finitos e relativos que somos. Assim, embora te devas esforçar por te apresentar neste encontro com Deus de uma forma considerada digna, o importante é que o encontro se faça, o importante é que Deus ao te buscar te encontre. Deixemo-nos, pois, encontrar porque nesse encontro dá-se a junção de dois seres que, embora distintos, partilham algo em comum. E quando esse algo em comum se encontra, então podemos ter a certeza de que em resultado desse encontro o nosso espírito ficou mais enriquecido, ficou mais purificado. Isso é espiritualidade. Por isso, fomos chamados a ser espirituais e não meros religiosos.

Soli Deo gloria!

C. Ourique, 10.Maio.2022

A Mulher Samaritana – I

A Mulher Samaritana – I

João 4:3-8

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Deixou [Jesus] a Judeia e foi outra vez para a Galileia e era-lhe necessário passar por Samaria. Foi, pois, a uma cidade de Samaria chamada Sicar, junto da herdade que Jacob tinha dado a seu filho José. E estava ali a fonte de Jacob. Jesus, pois, cansado do caminho, assentou-se assim junto da fonte. E era isto quase à hora sexta. Veio uma mulher de Samaria tirar água; disse-lhe Jesus: “Dá-me de beber.” Porque os seus discípulos tinham ido à cidade comprar comida. (João 4:3-8)

Esta é uma narrativa muito conhecida dos cristãos e acaba por ser muito citada pelos ensinamentos que encerra. Podemos classificar as narrativas literárias em três categorias:

Mitológicas, em que o que importa na narrativa não é a historicidade dos factos mas as lições que a história contada nos transmite. Um bom exemplo é a história de Adamastor que se encontra em Os Lusíadas.

Heróicas, em que a história gira em torno de um herói alçado à categoria de um portento. Em muitos dos casos, os factos em que ele intervém ou são exagerados ou envolvidos em muita ficção. É o caso das histórias de Robin dos Bosques.

Histórias, em que se procura ser o mais fiel à realidade histórica, ainda que o narrador lhe transmita um cunho literário ou seleccione os factos que mais lhe interessam. Como exemplo, temos as histórias das grandes navegações, explorações ou descobertas de algum tipo.

Embora podendo haver numa dada narrativa características de uma outra categoria, toda a narrativa insere-se num destes grupos e é classificada consoante os traços mais marcantes da respectiva categorização.

Estes três tipos surgem em qualquer literatura, na bíblica inclusive. Esta história do encontro entre Jesus e a samaritana apresenta todas as características de narrativa histórica porque tudo quanto ela descreve é passível de ser verosímil. Nada há, portanto, nela que nos permita afirmar que não possa ter acontecido.

Como encaramos uma narrativa? Só pelo prazer da história contada? Por causa das lições que encerra? Porque nos interessam os seus aspectos simbólicos ou estilísticos? A verdade é que todo o autor de qualquer narrativa tem sempre uma finalidade em vista. Muitas vezes percebemos essa intenção e finalidade pelas opções que tomou em relação à descrição dos factos. Ora, o evangelista João revela a finalidade com que escreveu o seu evangelho em que esta narrativa se insere. Em João 20:21, declarou: Estas coisas foram escritas para que creiais que Jesus é o Cristo e para que crendo tenhais vida em Seu nome. Nesta sua declaração, detectamos duas intenções: 1) para creiais que Jesus é o Cristo; 2) para que tenhais vida em Seu nome.

Estando esta história integrada no evangelho de João, então é de esperar que nela encontremos os elementos que nos conduzem à finalidade pretendida pelo autor, o que nos indica que esta história pretende levar o leitor a crer que Jesus é o Messias e, crendo n’Ele, tenha a vida eterna. Podemos encontrar esses elementos na narrativa em si, nos discursos e nos acontecimentos ou em algum carácter simbólico ou com carga simbólica declarada ou implícita. De facto, a uma análise mais apurada, encontramos tudo isso nesta narrativa.

Conhecer a história é bom, como é positivo saber reconstituí-la ou reformulá-la, mas ficar por aí é ficar apenas no primeiro degrau, é ficar apenas à porta da entrada deste magnífico monumento literário e doutrinário.

Comecemos por estabelecer alguns paralelismos com a história de Nicodemos que encontramos em João capítulo 3.

 

Nicodemos

Samaritana

Homem Mulher
Designado pelo nome – Nicodemos, que significa “povo vitorioso” Desconhecemos o seu nome
Instruído Simples
Religioso Leiga
Judeu Samaritana
Pertencente à classe dominante Plebeia
Cumpridor da Lei Moisaica Praticante de um culto sincrético
Pensamento complexo Pensamento simples, pouco elaborado
Duvidoso Vencida pela convicção
Procurou Jesus Procurada por Jesus
Encontro à noite Encontro à tarde

 

Ambos mostram interesse no que Jesus declara, ambos dialogam com Jesus, ambos suscitam de Jesus afirmações poderosas e de extrema importância.

Esta narrativa principia de uma forma interessante. No versículo 4, lemos que “era necessário que Jesus passasse por Samaria”. O Seu destino final era a Galileia mais a norte e Jesus, que partia da Judeia, poderia ter escolhido um outro caminho, mais longo é certo, mas que não atravessasse Samaria. No entanto, foi por aí que Ele se dirigiu. Há então implícita uma intenção da Sua parte, podendo nós concluir que Ele tinha interesse em cruzar território samaritano.

O versículo 9 explica que Judeus e Samaritanos não se comunicavam por causa da grande rivalidade e inimizade existentes entre ambos. Todos sabiam desses atritos, mesmo que alguns já nem soubessem justificar a sua origem. Na medida do possível, um Judeu evitava o contacto com um Samaritano e vice-versa. Essa situação explica o assombro da mulher que ao pedido de Jesus Lhe responde como é que Ele, sendo judeu, se atreve a dirigir-lhe a palavra, pedindo de beber? A sua primeira reacção foi, natural e justificadamente marcada pela animosidade mútua existente, não apenas de estupefacção mas de agressividade, sem dúvida, numa atitude defensiva porque no seu imaginário “de um Judeu não se sabe o que esperar”.

Mas é curioso notar que à medida que o diálogo se vai travando e o gelo inicial se vai quebrando, a atitude da mulher vai-se alterando e isso verifica-se nos designativos como vai tratando Jesus. Sem embarcar no mesmo tom agressivo, mas mantendo uma postura pedagógica e gentil com o seu pedido de ela Lhe dar água, Jesus desperta-lhe a curiosidade ao afirmar (v. 10) que se ela conhecesse o dom de Deus, Ele lhe daria uma água que é viva. Ante essa afirmação, a samaritana reconhece-O como maior do que o patriarca Jacob (v. 12) porque como pode Ele dar tal água se não O vê com instrumentos capazes de a fornecer? Sem mudar de tom, Jesus desperta-lhe o desejo, anunciando (v. 13) que se ela bebesse da água que lhe disponibiliza, ela não teria necessidade de ir de contínuo ao poço. Detectamos isso no versículo 15 em que a mulher expressa o desejo de receber essa água para nunca mais ter sede nem ter de se deslocar ao poço, o que revela a sua ambição de uma vida melhor.

Numa aparente alteração inusitada do tema da conversa, no seguimento do pedido de que fosse chamar o marido, a samaritana é confrontada com a declaração de Jesus de que não só ela tivera cinco maridos como o homem com quem vivia no momento não era seu marido. Não a conhecendo e sem ela Lhe ter revelado qualquer pormenor da sua vida íntima e do seu estado civil, eis que aquele homem maior que o patriarca Jacob lhe desvenda todo o seu passado. E a conclusão surge-lhe imperiosa: este só pode ser profeta (v. 19).

Talvez para se escusar a dar mais pormenores sobre a sua vida, a mulher toma a iniciativa de iniciar um outro tema de carácter teológico que de certeza, pela sua natureza, interessaria a um profeta e que talvez também a atormentasse, querendo obter uma resposta de um homem de Deus que ela tomaria como definitiva quanto à validade das suas práticas religiosas. “Em qual destes montes devemos adorar? Onde se encontra a verdade: em Gerizim ou em Jerusalém?” Sem se deixar envolver numa discussão que se tornaria árida e certamente aumentaria as barreiras então existentes entre os dois povos, a resposta de Jesus deixa claro que independentemente do local onde o adorador se encontra, Deus quer ser adorado por quem O procura e por quem se deixa buscar por Ele. Ante esta afirmação, talvez a medo, no espírito da mulher surge a hipótese de aquele homem ser talvez o Messias porque apenas o Messias tem a capacidade de conhecer todas as respostas (v. 25) e a resposta que aquele judeu lhe dá tem todas as características de uma resposta vinda do Messias.

A resposta de Jesus a esta afirmação da samaritana surge no versículo 26: “Eu o sou, eu que falo contigo.” Jesus assume sem rodeios e de forma clara, explícita e inequívoca ser o Messias, essa figura profética anunciada desde o jardim do Éden. Sendo a primeira vez, em mais lado nenhum dos relatos evangélicos volta a assumir de uma forma tão clara e indubitável que é o Messias.

A reacção da samaritana a esta confissão reflecte a sua convicção que a leva a abandonar o cântaro (abandono esse com uma carga profundamente simbólica) e corre a dar a notícia aos seus patrícios, esquecida de qualquer animosidade que estes pudessem ter para com ela devido ao seu estado civil. O seu anúncio, no versículo 29, induz por seu turno uma resposta dos outros aldeãos que, duvidosos ou não, acodem a ouvir o que Jesus tinha para lhes dizer e perante as afirmações do Nazareno concluem que a convicção da mulher face àquele judeu estava certa – agora podiam crer que Ele era o Messias, em resultado de um encontro pessoal e não apenas baseados num testemunho (v. 42).

Vemos então que neste diálogo tanto com a samaritana como com os outros aldeãos há um movimento em crescendo de conhecimento, de convicção, de aceitação e de compromisso.

Entre os diversos comentadores bíblicos, há uma tendência para considerar a samaritana como uma mulher promíscua e isso com base no facto de ter tido cinco maridos e de viver à época com alguém com quem não contraíra laços de matrimónio. Mas mesmo que o fosse, esta história mostra que ninguém está longe ou impedido de chegar ao conhecimento e ao desfrute da verdade. E mais: que por intermédio da sua interacção dialogal com Jesus, grandes verdades foram comunicadas não somente a ela mas a todas as gerações posteriores. Basta reparar nas grandes verdades com que entramos em contacto nesta história e que descortinamos em resultado da análise das respostas que ela vai recebendo da parte de Jesus.

E porque é ela considerada promíscua por alguns? Por duas razões:

1. Por causa da hora do calor a que fora buscar água. O texto diz-nos (v. 6) que era quase à hora sexta, isto é, ao meio-dia, hora de intenso calor.

2. Porque tivera cinco maridos e o homem com quem vivia não era seu marido (vv. 17,18)

Note-se que, sem concordar com a situação civil da mulher, não há uma palavra de condenação da parte de Jesus que em toda a cena rompe e quebra todos os tabus culturais e religiosos de então.

A verdade é que não sabemos a razão de ela ter tido cinco maridos. Terão morrido? Foram eles que tomaram a iniciativa de se divorciar dela? E aquele com quem vivia, quem era? Seu remidor, à semelhança da história de Rute? Ou tratava-se de uma “amizade colorida”? Não sabemos e qualquer juízo de valor não passa de especulação porque o texto é completamente omisso às razões da sua situação. É evidente que também se pode especular em sentido contrário. Para ter tido tantos maridos, seria bonita ou mulher de posses para tantos homens quererem viver com ela. E promíscua porquê? Afinal, se os cinco haviam sido seus maridos, foram-no todos num quadro legal. É evidente que também não se pode negar a hipótese de ela não ser um exemplo de integridade moral mas para sermos honestos na interpretação teremos sempre de declarar que essa é uma hipótese. O que sabemos com rigor é que ela viveu vários matrimónios e no momento do encontro com Jesus não se encontrava casada.

O que sabemos também é que de repente, no meio da conversa do “dá-me de beber”, “não tens com que a tirar”, “o poço é fundo”, “és maior que Jacob?”, “dá-me dessa água”, Jesus faz um pedido que aparentemente nada tem que ver com o assunto “da água do poço” e do seu correlativo “água que nos faz saltar para a vida eterna”: “Vai, chama o teu marido e vem cá” (v. 16). Que podemos concluir deste pedido que quase nos atrevemos a considerar uma ordem?

Jesus queria que ela se apresentasse com uma confissão de compromisso com o seu marido, com o seu senhor: “Vai, chama e vem.” Ao regressar com o suposto marido, ela estaria a reconhecer o seu compromisso com o homem com quem vivia.

Aqui, temos de perceber quem eram os Samaritanos e como funcionavam eles em termos religiosos. Se formos a Oseias e a 2 Reis 17:24-31, encontramos algumas pistas não só para esta questão mas para a razão de ser do pedido de Jesus.

Recordemos que Oseias recebe de Deus a ordem de se consorciar com uma adúltera (Oseias 3:1), que funciona como a situação então existente entre Deus e o Seu povo, que trocara o Senhor por outros deuses. Ou seja, Deus está atento aos desvios do Seu povo, mas isso não O impede de querer estar desposado com ele. Não que queira prostituir-se com ele mas porque quer arrancar o Seu povo ao domínio da idolatria e elevá-lo ao patamar da comunhão plena e satisfatória com quem é triplamente santo. Essa foi sempre e continuará a ser a atitude do nosso Deus, que deve ser proclamado como um Deus santo mas que ama de forma intensa até aqueles que Lhe viraram as costas ou que misturam no seu altar fogo estranho.

Em 2 Reis 17:24-41, vemos o início da formação do povo samaritano. O rei da Assíria enviou para Samaria cinco grupos de povos, cada um com os seus deuses e práticas religiosas e aí instalaram-se, misturando-se com o povo da terra. Dessa mistura surgem os Samaritanos que, embora mantendo as tradições e os estatutos da Lei de Moisés, as misturavam com os novos cultos.

Veja-se o versículo 33: “Assim que ao Senhor temiam e também aos seus deuses, segundo o costume das nações, de entre as quais tinham sido transportados”, ou seja, os grupos que o rei da Assíria enviara para Samaria. Para se distinguirem dos Judeus e evitarem a ida ao templo de Jerusalém, os Samaritanos erigiram o seu próprio templo no monte Gerizim, aquele a que a samaritana se referiu em João 4:20, exactamente no seguimento do pedido de Jesus de ela ir buscar o seu marido.

Ora, se lermos com atenção 2 Reis 17:30-31, verificamos que além do templo de Gerizim, os Samaritanos tinham outros cinco santuários dedicados a deuses estranhos. E repare-se também (v. 32) que os sacerdotes em Gerizim eram escolhidos entre os mais baixos, ou seja, eram escolhidos os que tinham fraca preparação teológica.

Podemos ver aqui um paralelismo entre a samaritana e a situação espiritual do seu povo, como se Jesus estivesse a dizer que a situação dela em nada diferia do seu povo – eles tinham 5 deuses, ela tivera 5 maridos; apesar de terem um templo em Gerizim, não tinham um compromisso firme com Deus Iavé. Tal como o seu povo, a samaritana não tinha também um compromisso firme com o homem com quem vivia. Daí a conclusão plausível de que Jesus queria levar a samaritana a ver concretizada em si a afirmação de Oseias 2:16: “E acontecerá naquele dia que me chamarás meu marido e não me chamarás mais meu Baal.”

Repare-se que Jesus começa o diálogo pedindo água para beber. Pede como homem, pois está cansado do caminho e com sede. Ao fazê-lo, identifica-se como qualquer um de nós. Ele compreende os nossos problemas, ansiedades e necessidades. Mas vai mais longe e desfaz as barreiras existentes entre os homens, sejam elas religiosas, étnicas, morais ou sociais. Ele não está aqui para perpetuar as nossas diferenças mas para unir o que estava separado e dividido. Disso é exemplo o grafismo da cruz que estabelece uma ponte entre o céu e a terra e também entre o ocidente e o oriente. Sem exagero, podemos afirmar que na cruz Ele é a ponte de toda a nossa geografia humana, individual ou colectiva.

No versículo 10, vemos que, partindo de uma necessidade física, Jesus leva a mulher à descoberta de uma realidade espiritual. E o que Ele oferece é algo de vivo e permanente e que, ao contrário da água física, não se esgota mas torna-se disponível a todos através de quem a bebe. Ou seja, primeiro pediu mas agora oferece. E o que oferece supera a oferta que a mulher Lhe entregasse. Assim é também connosco: pede uma vida destroçada e oferece uma vida com sentido, pede um ladrão e transforma-o numa pessoa honesta, pede um pecador e dá em troca um santo.

Aparentemente, a mulher não entende o alcance desta oferta porque insiste nos aspectos físicos: “Onde tens essa água?”, “O poço é fundo”, “Não tens balde para a tirar.” E continua agarrada às tradições herdadas dos antepassados.

O versículo 12 dá conta da sua estupefacção e incompreensão: “És tu maior que o nosso pai Jacob?” E repare-se na continuação da sua argumentação: “[nosso pai Jacob] que nos deu o poço e ele, os seus filhos e o seu gado beberam dele.” Que é como quem diz: “Esta água (e entenda-se a água tanto em sentido físico como metafórico) serviu plenamente os antepassados, serve também para nós.” Como é difícil a quem está tão agarrado à tradição aceitar a oferta nova de Deus!

Repare-se que a água que Jesus oferece é uma água viva, especial, dom de Deus. Não vem do poço, não vem da tradição, mas vem do dom de Deus. E esse dom é a pessoa de Jesus. Como nos deveriam ecoar sempre as palavras de Maria: “Fazei tudo quanto Ele ordenar.”

E curiosamente, aquando da Sua morte, como prova de que facto morreu, do lado de Jesus sai água e sangue – o ciclo encerrara-se e agora pelo sangue e pela água temos entrada na comunhão plena com Deus. Esse é o caminho – arrependimento e expiação do pecado pelo sacrifício oferecido pelo próprio Salvador, a água que sacia inteiramente a nossa alma.

Soli Deo gloria!

C. Ourique, 3.Maio.2022