HOUSE, O PACIENTE DE DEUS

House, o paciente de Deus 

Ricardo Rosa

House_MD_S06_by_Aleks10Sou um fã confesso de séries de televisão e por vezes de séries opostas em termos de género. Não consigo deixar de me rir com personagens como Niles Crane (Frasier) ou Sheldon Cooper (The Big Bang Theory) onde o pretensiosismo, a cultura e o centralismo dão as mãos.

Talvez por isso, não deixe de simpatizar com o célebre dr. Gregory House (House MD). Não porque me faça rir ou porque tenha tiradas satíricas memoráveis. Na verdade, o que me intriga em relação a este médico que vive nos limites da sensibilidade e do egoísmo, acaba por ser o modo lógico como tende a analisar tudo (tal como Niles Crane) e o sentimento de que ele é o Sol no movimento heliocêntrico da vida de todas as outras pessoas (à imagem e semelhança de Sheldon Cooper).

A lógica e a ciência são as verdadeiras bengalas em que a personagem interpretada por Hugh Laurie se sustenta. O próprio define-se como ateu, na melhor de todas as hipóteses um agnóstico severo (sem sentido de denegrir o quem quer que seja) para quem a hipótese Deus é meramente alucinogénia ou patológica. A sua definição de fé é baseada na ausência lógica e na falta de qualquer experiência[1]. E essa ausência de um elemento teoricamente improvável, leva-o a viver uma vida em que opta por tentar encaixar teorias, leis, probabilidades, métodos e dados de modo satisfatório. Segundo o que aprendemos com este médico, a humanidade é simultaneamente uma doença e uma cura. É o homem pelo Homem, no final de contas, após o último impulso eléctrico ter cessado no corpo humano, tudo o que nos espera é o vazio e o conceito filosófico do nada.

A própria negação da fé de House leva-o a experimentar uma visualização do pós-vida. Numa tentativa de perceber o que existe para além do último fôlego, House electrocuta-se servindo de cientista, cobaia e experiência em simultâneo[2]. O resultado acaba por lhe desagradar e “força-o” a concluir que não existe pós-morte, muito menos o conceito de um deus, seja ele qual for.

É aqui que percebo que esta é uma dúvida que ocorre demasiado, talvez pelo medo do desconhecido, talvez pela falta de uma certeza, talvez porque simplesmente não queiramos aceitar algo que nos recusamos a admitir. House pode ser um médico com resultados clínicos brilhantes (socialmente e humanamente duvidosos no entanto), mas não deixa de ser um paciente para Deus. A sua busca lógica, estruturada e orientada pede não uma prova, mas uma série de evidências inabaláveis que o conduzam a um resultado final.

O mesmo aconteceu aos ouvintes de Paulo no Areópago[3], queriam um raciocínio lógico e irrefutável, algo que Paulo lhes concedeu. Até ao momento em que abrevia pelo atalho falando da ressurreição dos mortos[4]. E mais uma vez, a medicina de Deus proveu pela Graça que a condição do ser humano fosse mudada nas vidas de Dionísio, Dâmaris e outras pessoas[5].

Tudo o que Deus nos dá e faz é por meio da Sua Graça, sendo um pouco como o médico que trata doentes sem seguro. A diferença na medicina de House e de Deus está no facto de que o primeiro é finito e não pode reverter a morte, é-lhe impossível contrariar as leis da natureza em que ele próprio se baseia. Já Deus tem o prazer de baralhar as cartas e tornar a dar, dando vista aos cegos[6], dando voz a mudos[7], restituindo partes do corpo a amputados[8] e anulando a acção da morte ao trazer à vida um amigo[9].

Em tudo isto, o especialista em doenças infecto-contagiosas e nefrologia não consegue deixar de ser um paciente necessitado de uma cura. O vício que mais o transtorna não é o dos analgésicos para uma perna estilhaçada. É o da incerteza sobre quem é o totalitário dono da vida: se o Homem, se Deus… Em comparação com House, todos os efeitos que nega pela lógica, Deus prova-os pela prática e assina o atestado de existência e capacidade. No fundo, o problema de House com Deus não é que não consiga acreditar n’Ele, é o de não querer aceitar que o divino cria as leis e os processos pelos quais nos regemos logicamente e isso dá-lhe sempre uma vantagem, seja em que situação for. E esse é um reflexo do ser humano, não do moderno ou pós-moderno, mas simplesmente do Homem tal e qual como o conhecemos. A ética darwiniana da evolução e adaptação não consegue dar uma resposta a tamanho dilema. Podemos tentar retardar a morte, mas nunca a conseguiremos aniquilar por nós mesmos.

O pecado é uma doença infecto-contagiosa, que acaba por levar a melhor sobre o nosso corpo[10], mas que não deve assenhorar-se da nossa alma. Por essa razão, o anseio furioso de House não é mais do que o Homem à procura da resposta que naturalmente o deveria levar a Deus[11].

Mas porque o pecado continua a sua obra destrutiva em cada um de nós[12], precisamos de perceber que a cura está ao alcance do ser humano e que Yhwh é o nosso médico pessoal…

Ricardo Rosa

 

[1] - http://www.patheos.com/blogs/friendlyatheist/2008/09/16/house-md-and-atheism/

[2] - http://en.wikipedia.org/wiki/Gregory_House#cite_note-58

[3] - Actos 17:16-33

[4] - Actos 17:32

[5] - Actos 17:33

[6] - Mateus 9:27-31; Marcos 8:22-26; João 9:1-12

[7] - Mateus 9:32-34

[8] - Lucas 22:50,51

[9] - João 11:1-45

[10] - Salmo 89:48

[11] - Romanos 1:20

[12] - Eclesiastes 7:20; Romanos 3:23, 5:12; 1ª Coríntios 15:21

OS SETE MOMENTOS DA PÁSCOA

Os Sete Momentos da Páscoa

Jorge Pinheiro

Cruz

Pela fé, Moisés sendo já grande, recusou ser chamado filho da filha de Faraó, escolhendo antes ser maltratado com o povo de Deus do que por um pouco de tempo ter o gozo do pecado, tendo por maiores riquezas o vitupério de Cristo do que os tesouros do Egipto, porque tinha em vista a recompensa.

Pela fé, deixou o Egipto, não temendo a ira do rei; porque ficou firme como vendo o invisível.

Pela fé, celebrou a Páscoa e a aspersão do sangue para que o destruidor dos primogénitos lhes não tocasse.

Pela fé, passaram o Mar Vermelho como por terra seca, o que intentando os Egípcios pereceram

(Hebreus 11:24-29)

 

Introdução

Estamos na época da Páscoa. Mas, afinal, o que é a Páscoa? Qual a sua história? Qual o seu significado? Qual o seu valor? Qual a sua importância para os nossos dias? Qual a sua relevância para o homem nosso contemporâneo?

A Páscoa que comummente se procura recordar nesta época é a Páscoa ocorrida por altura da morte de Cristo. Ou melhor dizendo, procura-se recordar os acontecimentos ocorridos por altura da morte de Cristo. Porque aquilo que se procura recordar não é a Páscoa mas sim os acontecimentos que envolveram a vida daqueles treze homens. Note-se que insisto no “procura-se recordar” e não no “recorda-se” porque realmente o que acontece de um modo geral nesta altura não é bem o recordar, o reviver desses acontecimentos, mas antes uma tentativa que termina falhada porque o drama então ocorrido, a profundidade espiritual daqueles acontecimentos, o significado e a implicação pessoal das comemorações pascais, enfim, o valor dos valores aí envolvidos escapam-se total e completamente aos peregrinos do nosso tempo porque, afinal, aquilo que é evocado e que é retido não passa de elementos folclóricos de uma herança cultural colectiva.

Mas a Páscoa é mais do que isso. A Páscoa é mais do que folclore. A Páscoa é mais do que uma data comemorativa do calendário.

Para lá das circunstâncias do momento, com a dieta alimentar habitual modificada e melhorada, com os presentes que se trocam e as amêndoas que se oferecem para adoçar o amargor da vida, a Páscoa permanece intacta, esperando que os homens toquem, provem e vivam o seu significado.

A Páscoa que queria relembrar não é apenas a Páscoa vivida por Cristo mas sim a Páscoa, a ideia divina da Páscoa. Porque afinal ― ainda que seja paradoxal e possa parecer estranho a ouvidos desprevenidos ― nós, como Cristãos, não temos de nos preocupar em recriar ou reviver a Páscoa de Cristo, ou seja, a Páscoa vivida por Cristo. E porquê? É que sendo Cristo a nossa Páscoa, então temos de viver pessoal e individualmente a pessoa de Jesus Cristo porque só vivendo-O estaremos a comemorar condignamente a ideia divina da Páscoa.

A Páscoa de Jesus Cristo foi a Páscoa d’Ele, vivida por Ele. É um acontecimento de profundos significados e implicações teológicas mas não deixa de ser um acontecimento histórico. É um marco da nossa vida, é verdade, mas é um facto passado que só revive como todos os factos passados, como todas as datas históricas importantes que são relembradas.

A Páscoa de Jesus Cristo foi d’Ele. Ainda que sejamos participantes das Suas bênçãos e ainda que seremos participantes da Sua glória vindoura, a Páscoa de Jesus foi d’Ele, não é nossa, porque foi vivida por Ele, sofrida por Ele. Nós não estivemos lá.

Então, na nossa Páscoa, não vamos incluir Jesus? Então, que Páscoa nos resta? Que Páscoa vamos recordar?

É que o equívoco está precisamente aqui. Nós não temos de recordar a Páscoa. Nós temos é de viver a Páscoa. Porque a vida cristã não vive de recordações. A vida cristã vive da presença viva e actuante de um Cristo vivo e glorioso. As únicas recordações de que a vida cristã deve viver são as recordações futuras, porque é para lá que caminhamos.

Na nossa Páscoa, não temos de incluir Cristo. Cristo já está na nossa Páscoa. Se ainda temos de incluir Cristo na nossa Páscoa, isso significa que a nossa Páscoa ainda não é a Páscoa divina, isso significa que ainda não entrámos no calendário divino.

Porque se a nossa Páscoa consiste apenas e só em relembrar os acontecimentos ocorridos na Páscoa em que Cristo morreu, então a nossa Páscoa é oca e sem valor.

Mas se na nossa Páscoa contínua e perpétua que é, afinal, a vida cristã, recordarmos não apenas uma vez ao ano, mas sempre, a Páscoa em que Jesus morreu, então essa Páscoa não nos é estranha, deixa de ser um facto histórico, um drama do passado, um acontecimento a nós alheio e estranho e passará a ser não apenas recordada mas vivida na sua plenitude e significado, deixará de ser uma Páscoa onde nós não estivemos para passar a ser uma Páscoa onde todos nós nos encontrámos e nos encontrávamos presentes, crucificando com os nossos pecados o Salvador, aguardando com ansiedade o desfecho da luta entre o Messias e Satanás no Reino do Hades e gritando de alegria a vitória alcançada no Domingo da Ressurreição: CRISTO VIVE! Ressuscitou! É Senhor! Aleluia! A morte foi vencida. Os pecados estão perdoados. O caminho para Deus está aberto. Fomos libertos, Cristo é rei! É Senhor! Aleluia! Aleluia! Aleluia!

Mas em que consiste, afinal, a ideia divina da Páscoa? Fala-se de Páscoa dos Judeus e da Páscoa dos Cristãos. Fala-se dessas Páscoas como se fossem dois acontecimentos estranhos um ao outro. Mas Páscoa só há uma: a Páscoa de Deus! A Páscoa judaica e a Páscoa cristã são, no fundo, uma só. Elas não passam de dois momentos distintos de um mesmo acontecimento. Mas Páscoa é uma só, ainda que com diversos momentos da sua vida: é a Páscoa de Deus!

É que as ideias divinas lutam sempre com uma grande dificuldade: a sua calendarização no tempo humano. Por isso, uma mesma ideia que é una e inseparável e imutável surge repartida aos nossos olhos pelos diversos tempos do nosso viver colectivo histórico.

Nesta Páscoa divina, podemos distinguir sete momentos. Ou dizendo de outra forma, podemos detectar 7 Páscoas no calendário divino. E falamos nós de apenas duas: a de Moisés e a de Cristo!

Quais são esses 7 momentos ou 7 Páscoas?

Antes, convém definirmos o que entendemos por Páscoa. A palavra Páscoa vem do Hebraico Pesah, que significa “passar por cima”, no sentido de “poupar”, como se depreende de Êxodo 12:13:

E aquele sangue vos será por sinal nas casas em que estiverdes; vendo eu sangue passarei por cima e não haverá entre vós praga de mortandade quando eu ferir a terra do Egipto.

A Páscoa aponta para a situação e os meios que permitem fazer-nos escapar à ira e ao castigo divino, levando-nos a entrar num estado de beneficiários do favor divino. A Páscoa indica o meio que Deus coloca à nossa disposição, permitindo-nos gozar da Sua protecção, restabelecendo a comunhão perdida com Ele.

Quais são, então, esses 7 momentos de que falávamos?

 

1. A Páscoa da Eternidade Passada

A Páscoa teve a sua origem em Deus e teve o seu início na eternidade antes da fundação do mundo.

Em João 17:24, Jesus reconhece esse facto quando ora ao Pai, lembrando o amor com que Deus O havia amado antes da fundação do mundo: Porque Tu me hás amado antes da fundação do mundo.

E Apocalipse 13:8, referindo-se a Jesus, declara: E adoraram-na (à Besta que subiu do mar) todos os que habitam sobre a terra, esses cujos nomes não estão escritos no livro da vida do Cordeiro que foi morto desde a fundação do mundo.

A ideia da Páscoa não é humana ― é divina. Deus concebeu-a quando o mundo ainda não tinha sido falado à existência. Isto dá-nos a garantia de qualidade e qualidade divina, porque a única forma que nos pode garantir a comunhão e a graça de Deus é através da própria graça de Deus.

 

2. A Páscoa Adâmica

Quando Adão pecou, rompeu-se a comunhão com Deus e a ligação tornou-se impossível. A Humanidade caíra, ficando sujeita à punição do castigo divino. Mas Deus preparou um escape e ali no momento da queda, revelou o meio que Lhe agradava para que o Homem voltasse a obter os Seus favores.

E fez o Senhor Deus a Adão e a sua mulher túnicas de peles e os vestiu (Génesis 3:21). Para as túnicas de peles, houve necessidade de verter sangue inocente, a fim de que a ira de Deus passasse por cima de Adão e Eva, poupando-lhes a vida. Através daquele sangue vertido, refloria a esperança no coração da Humanidade ― Deus não estava longe e o Homem podia ter a certeza de que o caminho para Deus estava aberto. No início da Humanidade, a presença de Deus na vida dos seres humanos, dizendo-lhes que não estavam sozinhos, abandonados aos caprichos de um destino cego e cruel mas antes que Deus amava a Sua criatura e desejava o melhor para ela.

 

3. A Páscoa de Abel

O terceiro momento da concretização da ideia divina da Páscoa vamos encontrá-lo no sacrifício de Abel.

E Abel também trouxe dos primogénitos das suas ovelhas e da sua gordura e atentou o Senhor para Abel e para a sua oferta (Génesis 4:4).

Abel aprendera bem a lição que seus pais lhe transmitiram. Abel sabia que o único meio de obter os favores de Deus era não só reconhecê-Lo como Senhor e Deus mas também reconhecer e sujeitar-se à vontade de Deus e ao meio que o Senhor instituíra para ter comunhão com a Sua criatura.

É que não basta o reconhecimento de que Deus é Deus ― é necessário estarmos dispostos a sujeitarmo-nos ao Seu querer. E se para tanto se torna necessário render-Lhe o nosso querer e os nossos bens, então façamo-lo. Esta foi a atitude de Abel ― trouxe dos primogénitos das suas ovelhas. E ao avançar esse passo de fé, exemplo de todos os fiéis que se lhe seguiriam, Abel alcançou o favor de Deus ― o Senhor não atentou apenas para a sua oferta: atentou também para ele: e atentou o Senhor para Abel e para a sua oferta.

 

4. A Páscoa Moisaica

O quarto momento é a Páscoa que Deus instituiu através de Moisés.

Uma vez mais, na cerimónia do Pesah, a Páscoa judaica, está presente a ideia central da Páscoa, ideia divina ― Deus ama a Sua criatura e quer ter comunhão com ela. Esta comunhão é possível apenas e só por um único caminho: a obediência ao Senhor, a submissão da nossa vontade ao Seu querer. Esta comunhão só é possível com a receita divina. Nenhum outro meio nos restabelece a ligação perdida.

E tomarão do sangue do cordeiro e pô-lo-ão em ambas as ombreiras e na verga da porta, nas casas em que o comerem; e aquele sangue vos será por sinal nas casas em que estiverdes; vendo eu sangue, passarei por cima de vós e não haverá entre vós praga de mortandade. (Êxodo 12:7, 13).

E uma vez mais, a presença do sangue de uma vítima inocente a pagar o preço do resgate. Uma vez mais, a certeza de que a comunhão com Deus e o favor do Senhor são possíveis. Mas que nos traz de novo esta Páscoa? Muita coisa ― porque momento após momento, Deus vai desenrolando o rolo do plano da Sua ideia…

Agora, a Páscoa não se circunscreve a um punhado de homens e de mulheres que vão transmitindo a lembrança de um sacrifício.

Agora, a Páscoa estende-se a cada família de toda uma nação. A Páscoa judaica tem significado porque ela é o elo comum a todas as famílias que compõem a nação.

Mas ela lembra também a libertação da servidão de uma terra rica de bens materiais e culturais. Ela lembra que a sorte do povo não está naquilo que o mundo pode oferecer mas na entrega incondicional à promessa divina. A Páscoa judaica lembra a caminhada para uma terra prometida por Deus, onde o povo iria ter a oportunidade de ver o que Deus pode fazer quando alguém está disposto a render-se à visão de Deus.

Moisés recusou o título de honra de ser filho da filha de Faraó. Faraó era divino, era filho de Ra, o Deus Sol. Por isso, se chamava Fa-ra-ó. Ou, por outras palavras, Moisés recusou ser filho de um deus, mas de um deus menor e preferiu ser escravo do Deus Altíssimo, o Todo-Poderoso.

E na Páscoa judaica, Deus Jeová nos diz que não basta submeter-nos ao meio estipulado por Deus mas que temos de estar dispostos a voltar as costas às certezas deste mundo para nos entregarmos plenamente às ilusões e aos sonhos divinos. Porque para os Egípcios, Moisés corria atrás de uma miragem, mas a miragem que Moisés perseguia era uma miragem divina ― permaneceu firme como vendo o invisível.

 

5. A Páscoa de Cristo

O quinto momento da realização desta ideia divina da Páscoa encontramo-lo há cerca de dois mil anos, na Páscoa vivida por Cristo.

Sabendo que não foi com coisas corruptíveis como prata ou ouro que fostes resgatados da vossa vã maneira de viver que por tradição recebestes de vossos pais, mas com o precioso sangue de Cristo, como de um cordeiro imaculado e incontaminado. (1 Pedro 1:18-19).

Pedro sabia do que estava a falar. Sabia que a morte de Cristo na cruz introduzia na história humana este quinto momento da ideia divina da Páscoa. Ele sabia que a morte de Cristo tinha um valor expiatório, substitutivo.

E uma vez mais, o sangue está presente. E uma vez mais, uma vítima inocente. E uma vez mais, um sacrifício instituído por Deus e que agradava totalmente ao Senhor Altíssimo. Uma vez mais, a confirmação de que a comunhão com Deus não só é desejável como possível. E possível porque foi ordenada e instituída pelo próprio Deus.

Mas que novidade nos traz esta Páscoa? Agora, a Páscoa não é exclusiva nem limitada a uma só nação. Ela é extensiva a todo o indivíduo que pessoal e individualmente se queira aproximar de Deus.

Agora, esta Páscoa diz-nos que não temos de estar dependentes da nossa provisão, indo buscar um cordeiro ao nosso rebanho, mas estamos antes dependentes da provisão de Deus que forneceu Ele mesmo o cordeiro necessário, suficiente e agradável.

Agora, esta Páscoa diz-nos que não basta estarmos dispostos a voltar as costas às certezas deste mundo para nos entregarmos plenamente às ilusões e sonhos divinos. É necessário agora que essa entrega seja fruto de um acto de amor. Porque é o amor que deve reger a nossa vida: “Um novo mandamento vos dou, que vos ameis uns aos outros”. “Nisto conhecerão que sois meus discípulos ― se vos amardes uns aos outros”. Porque o amor foi a motivação e a base da entrega pessoal de Jesus.

Agora, esta Páscoa diz-nos que, embora o centro da nossa Páscoa deva ser sempre o Senhor Deus, esse centro estará incompleto se na Páscoa não tivermos presente também o ser humano. Agora, cada ser humano não me é mais estranho ― é meu irmão! Em Cristo, não há judeu, não há gentio, não há rico, não há pobre, mas Cristo é tudo em todos. (Colossenses 3:11).

Agora, esta Páscoa diz-nos que, mais do que nunca, o Homem deixou de estar sozinho, porque Jesus é Emanuel, porque Deus Se identificou connosco na nossa pobreza e no nosso sofrer.

Agora, a Páscoa não tem significado se o amor que dizemos ter a Deus não se revelar um amor convertido em acções práticas, direccionadas para o nosso semelhante.

 

6. A Nossa Páscoa Presente e Individual

O sexto momento da concretização da ideia divina da Páscoa é a nossa Páscoa presente e individual que cada um de nós vive, é a Páscoa do Pacto da Graça, em que vivemos.

Que dizer desta Páscoa? É a Páscoa vivida na base da resposta que cada um de nós deve dar à mais importante de todas as perguntas: quem é Cristo para mim?

Se para mim, Ele é o Cristo, o Filho do Deus vivo, não apenas numa resposta remota e passada, de circunstância talvez, mas no reconhecimento diário e constante, momento após momento, então poderei dizer que estou a deixar Deus realizar em mim este Seu sexto momento da Sua ideia da Páscoa.

É que a Páscoa que cada um de nós deve viver é aquela em que Cristo e não nós, é o centro dos nossos interesses e motivações, em que procuramos viver a certeza de caminhar em direcção à estatura de varão perfeito em Cristo Jesus.

Se isto se verificar, então podemos dizer que esta Páscoa traz algo de novo. É que ela é uma Páscoa que se realiza momento após momento, dia após dia.

Então, esta Páscoa diz-nos que a Páscoa é extensiva a toda a Humanidade porque em cada esquina, em cada ocasião, estará sempre à mão do desesperado sem Cristo, uma possibilidade de salvação através do sacrifício voluntário de todo e qualquer seguidor de Cristo.

Rogo-vos, pois, irmãos, que apresenteis os vossos corpos em sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é o vosso culto racional (Romanos 12:1-2).

Então, esta Páscoa diz-nos que não basta que a nossa entrega a Deus seja fruto de um acto de amor. É necessário que cada um de nós esteja disposto a ser um sacrifício vivo, à semelhança do Cristo Cordeiro de Deus dado em resgate de nós.

Páscoa, sem entrega e sacrifício não é Páscoa. Nesta Páscoa da Graça divina, estejamos dispostos a entregar-nos como sacrifício de expiação para salvação do homem, nosso semelhante, ainda que à custa daquilo que mais prezamos. O caminho da cruz não é fácil ― Jesus nunca disse que seria.

Porque só quando entrarmos por esse caminho, podemos ter a certeza de que estaremos também presentes no sétimo momento da ideia divina da Páscoa.

 

7. A Páscoa da Eternidade Futura

E esse sétimo momento é na eternidade vindoura, quando se realizarem as Bodas do Cordeiro e em que estaremos para sempre com o Senhor.

Aí, não haverá dor, nem pranto, nem doença, nem morte. Aí, Deus irá concluir todo este processo iniciado ainda antes da fundação do mundo.

Essa é a nossa meta. É para lá que Deus aponta. Mas enquanto não chegamos, temos de viver a Páscoa que é nossa ― a Páscoa da Graça de Deus.

Que esta estação pascal deste ano (e refiro-me a todo o ano corrente e não apenas à semana pascal) seja vivida, momento após momento, com a manifestação do Cristo vivo e ressurrecto, Páscoa nossa, na nossa vida.

Porque não é apenas hoje, mas em todos os dias que deve soar o nosso grito triunfante: Cristo vive! Cristo vive! O Senhor ressuscitou! Ele ressuscitou no meu coração! Ressuscitou verdadeiramente o Senhor!

 

“Tempos Difíceis”: Um Libelo Contra o Materialismo

“TEMPOS DIFÍCEIS”: UM LIBELO CONTRA O MATERIALISMO

Agora, o que eu quero é, Factosolidariedades. Não ensinar a estes meninos e meninas outra coisa senão Factos.”1 Thomas Gradgrind, a personagem central do romance Hard Times de Charles Dickens definia assim, desde o princípio, o tipo de educação materialista que as crianças iriam ter na Inglaterra do século XIX.

Thomas Gradgrind é um educador que crê somente nos factos que podem ser demonstrados. Leva os seus dois filhos, Thomas e Louisa por uma atmosfera sombria materialista que vai afectar para sempre as suas vidas. Faz mesmo casar a filha com um homem muito mais velho, mas rico.

O romance clássico de Dickens, Tempos Difíceis, é uma acusação contra a falta valores éticos, sociais, que estruturaram também, negativamente, a Revolução Industrial no século XIX. Dickens procurou defender valores cristãos com este romance profundamente preocupado com a infância e a vida familiar, a exploração do trabalho infantil e os baixos salários e a miséria.

No pano de fundo da Inglaterra de então, na era da industrialização, passou também a subversão da religião cristã, limitando-a a uma estrutura dirigida para os ganhos materialistas, como hoje. É o retrato do homem sem escrúpulos que faz do lucro um instrumento cego para destruir o próximo e sobre as ruínas deste erguer impérios financeiros.

O autor inglês fala também de Economia sob o ponto de vista do lucro e da injustiça, do enriquecimento de uns poucos contra a pobreza de milhares.

Embora seja um romance que, segundo a crítica literária, esteja acima de rótulos, escolas e catalogações, diria que é um libelo cristão, com o melhor do cristianismo na área social: o “amai-vos uns aos outros”.

Para fazer prevalecer este dogma necessário, apresenta-nos e enfatiza os efeitos da sociedade dominada pelos deuses da produtividade e dos lucros.

Uma das personagens pergunta, dramaticamente a outra: “Have you a heart?” (Tu tens coração?)

Alguém escreveu, como sinopse deste romance libelo, o seguinte: “Hard Times retrata Coketown, um vermelho-tijolo da cidade industrial típica do norte. Nas suas escolas e fábricas, crianças e adultos estão enjaulados e escravizados, sem liberdade pessoal, até seu espírito está quebrado.”

O empobrecimento colectivo para fazer crescer a economia de poucos, é um dos factos com que construiu (destruiu, afinal) a vida, a família, o personagem- chave do romance, Thomas Gradgrind.

No dia em que está sentado no seu escritório, e o barulho da chuva a bater nos vidros lá fora não conseguia abstraí-lo, Louisa entra e interrompe o fio dos seus pensamentos para o questionar com o que ele lhe fez: “Onde estão os sentimentos do meu coração? O que o senhor me fez, ó pai, o que o senhor me fez, com o jardim que deveria ter florescido no meu coração onde há agora um grande deserto!” 2

O pai estava a escrever sobre o Bom Samaritano que foi um Mau Economista. E esta ideia errada da personagem sobre a parábola bíblica é a justificação para defender que a caridade e o amor ao próximo não conferem lucros nem são boa política económica. A caridade não faz crescer a economia.

A história dos textos económicos enfatiza sempre que todas as facetas da sociedade humana se regem pelo interesse individual, o individualismo do homem e a maximização dos lucros continuam a prevalecer. E os investimentos no que é pertença do interesse próprio de cada um.

Quando Gradgrind está a escrever sobre o bom samaritano ter sido um mau economista, está a propor que, de acordo com as teorias económicas e a sua, sobretudo, o altruísmo é uma anomalia.

É a subversão da Bíblia do senhor Gradgrind com uma leitura enviesada e que faz parte de um fenómeno cultural – como lhe chamaram – do pensamento utilitarista. E a resposta de Charles Dickens é o romance Hard Times referindo a parábola do Bom Samaritano como programa necessário para repôr a fraternidade, o auxílio aos pobres, para a sua época, contra o interesse utilitário e os mercados que já estavam a impor as suas regras. Por exemplo, manter em baixa os preços dos cereais para não se aumentar o salário aos trabalhadores.

“GOOD SAMARITAN WAS A BAD ECONOMIST”3

É um princípio apenas proclamatório, mas gera uma crítica à atitude do bom samaritano e coloca em causa a fraternidade cristã.

O bom samaritano fez um investimento que, segundo o conceito individualista do lucro, não lhe renderia quaisquer dividendos. Pior, era um “desinvestimento” a longo prazo. Era uma perda.

O denário (danarius), moeda romana, pagava um dia de salário. Dois denarii (no texto grego de Lucas: denária) era uma quantia considerável. Há uma referência bíblica para os tempos da fome no livro de Apocalipse (6:6) que lhe marca a importância como um preço exorbitante: “Uma medida de trigo por um denário; três medidas de cevada por um denário”

Os argumentos arrolados pelos críticos da ação do Bom Samaritano da parábola ética de Jesus, não seriam produto de nenhuma lógica mas do individualismo e falta de caridade. O Bom Samaritano, que ia de viagem, usou primeiro da sua caridade e do seu despojamento pessoal ao não recear tocar com suas mãos no homem moribundo, depois usou dos meios que possuía presentemente – o animal que transportou o ferido, só depois usou bens financeiros: o dinheiro que entregou ao hospedeiro para, nos dias futuros, o homem que salvou da morte certa poder ser bem tratado e recuperar para a vida. E deixou lavrado o que terá feito dele “mau economista”: o que for gasto, “eu pagarei quando voltar”.

Não pensou em custos, não pensou em rendimentos, não impôs juros ao pobre homem encontrado, à beira da morte, no caminho.

As leis do Bom Samaritano4

Tal atitude fez história, não apenas no Evangelho de Lucas, mas universalmente nas legislações em benefício do próximo e no âmbito das organizações não governamentais.

Com efeito, as chamadas leis do Bom Samaritano oferecem não apenas proteção legal aqueles que dão assistência a feridos, doentes, incapacitados, como encorajam as pessoas a oferecer a sua assistência. Enquadrando-se nas leis civis de qualquer Estado de Direito, têm também o efeito legal de exigir o dever do socorro ao próximo.

 

João Tomaz Parreira

Colaborador

Aveiro

 

Publicado na revista “Novas de Alegria”, setembro 2013

 

1 Hard Times, Charles Dickens, Penguin Classics, pág.9; 2 Op.cit, pág. 215; 3 Bom Samaritano que um Mau Economista (tradução livre); 4 Good Samaritan Laws