O Senhor do Sábado

O Senhor do Sábado
Mateus 12

Jorge Pinheiro 5Dr. Jorge Pinheiro
Este é um capítulo marcado por quatro grandes temas, a saber:

1. Jesus é Senhor do sábado – vv. 1-8
Incidente marcado pelo facto de, num sábado, os discípulos de Jesus terem colhido e comido espigas para saciarem a fome.
2. Cura de um homem com a mão mirrada – vv. 9-21
Podemos situar neste incidente, os primeiros sinais de oposição a Jesus.
3. Cura do endemoninhado cego e mudo – vv. 22-32
A oposição detectada no incidente anterior prossegue com mais força neste, em que surge a famosa declaração do pecado imperdoável – a blasfémia contra o Espírito Santo (vv. 31-32).
4. Polémicas – vv. 33-50
Aqui nesta secção, encontramos três momentos em que a polémica está instalada:
4.a. O fruto das árvores – vv. 33-37 – pelo fruto se conhece a árvore.
4.b. A reinterpretação do milagre de Jonas – vv. 38-45 – face ao pedido de um sinal por parte de alguns escribas e fariseus, Jesus afirma-se superior a Jonas e a Salomão, reforçando o que já havia dito antes, de ser maior que o Templo (v. 6)
4.c. A família de Jesus – vv. 46-50 – Jesus aponta as qualificações necessárias para se ser membro da Sua família.
1. Jesus é Senhor do sábado – vv. 1-8

Em resumo, podemos afirmar que este é um capítulo rico em incidentes, em ensinamentos e em polémicas e marca o início do período de oposição do ministério terreno de Jesus. Passado um primeiro momento de interesse por parte dos Judeus em geral e da Nomenklatura religiosa em particular, face ao ensino e ministério de alguém que se torna no início difícil de ser catalogado, acaba o estado de graça de Jesus e começa a oposição que os religiosos Lhe vão mover, tornando-se cada vez mais intensa.

E tudo porque os discípulos de Jesus, com fome, ao colherem e comerem espigas num sábado infringem o que a tradição baseada nos mandamentos da lei moisaica impunha a todo o membro da comunidade judaica.

É verdade que a Lei de Moisés estipulava a guarda do sábado (Êxodo 20:8-11). Esta é uma ordem geral, mais tarde especificada quanto ao modo de ser cumprida (Êxodo 23:10-13; 31:12-18, por exemplo). Como sucede com as leis, que são apresentadas na generalidade e depois discutidas na especialidade, a observância do sábado levantava sempre e necessidade da sua aplicação às diversas incidências provocadas pelas situações do dia-a-dia e que a própria evolução da sociedade exigia. Assim, a par do estipulado na Lei escrita, foi surgindo toda uma normativa legal e legislada, codificada numa lei oral e tradicional, tanto mais que a observância do sábado era basilar e central em todo o ordenamento religioso judaico. A par da circuncisão, a observância do sábado era uma das marcas identificadoras do judeu piedoso, cumpridor da lei moisaica. Como estudiosos da Lei, os fariseus assumiam-se como seus grandes defensores e guardiães máximos e, por isso, estavam atentos a qualquer tentativa de infracção da norma imposta.

Naturalmente que em tese, em princípio, a observância da Lei e a sua especificação e aplicação a cada situação da vida não estão erradas em si. No entanto, como Marcos 2:27 salienta a propósito do mesmo incidente, “o sábado foi feito por causa do homem e não o homem por causa do sábado.” Ou seja, em todo o ordenamento religioso as necessidades humanas em todos os seus domínios têm de estar presentes e ser levadas em conta, não podendo ser menorizadas.

Com este episódio, Jesus recentra as prioridades do ordenamento religioso. As normas religiosas perdem o sentido quando relegam a necessidade humana para segundo plano. Naturalmente, é muito ténue a fronteira entre os dois elementos centrais do culto a Deus – a exaltação da divindade e o lugar que o ser humano ocupa nessa exaltação – e, por vezes, é difícil encontrar o equilíbrio entre ambas essas exigências. Que o Altíssimo merece toda a preeminência não podendo o Seu lugar ser sonegado, disso não há qualquer dúvida. Mas não menos verdade é que sem a atenção devida dada às necessidades humanas, que é o outro elemento do diálogo com a divindade, o culto torna-se desequilibrado e, por isso, sem sentido.

Um profissional religioso, em caso de dúvida, recorre sempre à aplicação cega e fria da normativa religiosa, receoso de, com a sua omissão, ofender a divindade. Ora, como Jesus enfatizava, Deus é amor e compreende a nossa fraqueza, as nossas limitações, as nossas necessidades. Esse conhecimento por parte de Jesus levava-O (e levou-O) a reconhecer Deus primeiro como Pai e só depois como legislador. E nisto, Jesus divergia profundamente dos fariseus e do seu pensamento, os quais invertiam a sua relação com Deus, a quem viam primeiro como legislador e só depois como Pai de família, encarado como o senhor de muitos escravos.

Jesus salientava que se nos aproximamos de Deus como nosso Pai (que Ele é), vemo-Lo na sua faceta de amor que sentimos e experimentamos e, ao vivenciá-los (a Deus e ao amor de Deus Pai), dispomo-nos a sujeitar-nos a toda a Sua vontade, mesmo que esta eventualmente possa ir contra os nossos desejos e necessidades e fazemo-lo motivados pelo amor de um filho para com o pai e de um pai para com um filho e não pela atitude servil, motivados pelo temor de um servo face a um senhor impiedoso, mais interessado no respeito e cumprimento da lei do que numa relação paternal com um filho a quem Ele ama sem limites.

Por isso, Jesus podia proclamar: “se soubésseis o que significa misericórdia quero e não sacrifício, não condenaríeis os inocentes”. Com esta declaração, Jesus fazia eco das palavras de Oseias 6:6: “Porque eu quero misericórdia e não sacrifício; e o conhecimento de Deus, mais do que holocaustos.” Os dois, Oseias e Jesus, são unânimes quanto ao carácter e natureza de Deus, que se compraz mais em ser conhecido pelos Seus do que pelo cumprimento de toda e qualquer normativa religiosa, porque o conhecimento implica intimidade e compromisso com o objecto conhecido. Curiosamente Oseias significa salvo e Jesus significa Salvador. Caso para dizer que o Salvo e o Salvador estão sintonizados.

Mas podemos ver algo mais nesta declaração, nesta antinomia misericórdia-sacrifício. A palavra misericórdia significa literalmente um coração inclinado à miséria enquanto o termo sacrifício significa “tornar sagrado”. Ou seja, a misericórdia é um atributo da natureza de Deus, enquanto o sacrifício é um acto humano. A misericórdia vem de cima e o sacrifício vem de baixo. Ambos os movimentos devem encontrar-se no amor de Deus onde se fundem harmonicamente. Ora, se o nosso alvo é aproximarmo-nos cada vez mais de Deus, essa aproximação começa quando cultivamos em nós os elementos marcantes da natureza divina. Por isso, quando exercemos misericórdia, estamos implicitamente a confessar que nos identificamos com Deus e com aquilo que Ele quer de nós. Não admira, pois, que uma das bem-aventuranças seja precisamente: “Bem-aventurados os misericordiosos porque eles alcançarão misericórdia.” (Mateus 5:7) E na medida em que exercemos misericórdia, o sacrifício deixa de estar relacionado com coisas exteriores a nós que oferecemos a Deus muitas vezes numa ânsia de aplacar a Sua ira e passamos nós a ser o sacrifício agradável a Deus, conforme a recomendação de Paulo em Romanos 12:1-2, em que somos convidados a “oferecer-nos como sacrifício vivo, santo e agradável a Deus que é o nosso culto racional”.

E foi por compreender e conhecer a verdadeira natureza de Deus e a correcta relação que o mortal que O busca deve manter com Ele que Jesus podia exclamar num grito que ecoa pelos séculos dos séculos: “Pois eu vos digo que está aqui quem é maior do que o Templo.” O Templo significava e simbolizava o centro da adoração judaica, o ponto de encontro entre a divindade e a humanidade. Ao afirmar-se como maior do que o Templo, Jesus não apenas reivindica para si o papel que o Templo representa, mas declara sem rodeios que Ele supera tudo quanto é necessário para que o nosso encontro com Deus seja real e efectivo porque ele se realiza através de quem reúne em si o divino e o humano – o nosso sumo sacerdote, Jesus de Nazaré, o Cristo de Deus.

Curiosamente, neste capítulo Jesus afirma-se não apenas maior do que o templo, mas maior que o profeta Jonas e o rei Salomão (vv. 41 e 42).
2. Cura de um homem com a mão mirrada – vv. 9-21

O segundo episódio aborda uma situação de cura – Jesus restaura a mão mirrada de um homem. Não sabemos se era a mão direita ou esquerda, apenas que se tratava de uma mão e todos sabemos a falta que uma mão funcional nos faz. As mãos funcionais dão-nos liberdade de acção e permitem-nos realizar tarefas das mais simples às mais complicadas. As mãos são um dos meios de que nos servimos para nos ligarmos e nos identificarmos com o meio ambiente que nos envolve, tanto o próximo como o distante, tanto o terreno como o transcendente. A mão funcional agora mirrada fazia falta ao homem e diminuía-o na sua capacidade e integridade.

De novo, neste episódio, o sábado e a sua observância voltam a estar presentes. Pela narrativa, percebemos que Jesus enfrenta uma provocação por parte dos Seus opositores religiosos: “É lícito curar nos sábados?” perguntam eles. Jesus não se esconde, não se esquiva, não ignora a provocação e o desafio. O confronto não O intimida e desta vez torna-se mais contundente na denúncia da incongruência de um pensamento religioso que relega para plano secundário e inferior o ser humano, o agente que presta culto a Deus. A resposta de Jesus é demolidora e impiedosa por assim dizer. Se os seus acusadores socorrerão num sábado um animal ferido ou magoado, quiçá uma ovelha para o sacrifício, com muito mais razão aquele que é maior do que o templo tem autoridade suficiente não para ignorar o sábado mas para exercer misericórdia junto de quem, pela sua diminuição física, se apresenta diminuído e incompleto perante Deus a quem deve adorar na sua plenitude.

E é o que o pensamento religioso no seu pior está disposto a fazer – a considerar inferior a um animal o ser humano, criado à imagem e semelhança de Deus, reflexo da glória divina. Mas Jesus veio ao mundo para restaurar a pessoa caída, veio para refazer no ser humano a glória de Deus, veio para proclamar que a vontade de Deus é que o homem se apresente perante Ele na sua integridade total, aberto a toda a manifestação da glória e do poder divinos. Porque, como coroa da Sua criação (Salmo 8), Deus está interessado em ter comunhão com o único ser de toda a Sua criação capaz de um relacionamento íntimo e duradouro.

E perante este acto de misericórdia de quem é maior que o Templo, como reagem os supostos guardiães do Templo? Com planos para matar quem é o dador da vida e da saúde e que, com a Sua ressurreição, mostrou ser superior à própria morte.
3. Cura do endemoninhado cego e mudo – vv. 22-32

De novo um episódio de cura, desta vez de um homem com uma tríplice condição que o afectava tanto no aspecto físico como psicológico e espiritual. Qualquer das suas condições era dramática e impedia-o não só de comunicar devidamente com o seu semelhante por via da cegueira e da mudez, como lhe coarctava qualquer possibilidade de uma comunhão plena com o seu Deus. Ou seja, era um homem afectado na relação tanto no domínio do físico como do espiritual. E a primeira conclusão a que podemos chegar neste episódio é que o poder de Jesus de Nazaré era suficientemente abrangente e que nenhum domínio escapa à sua acção.

Mas de novo, a liderança religiosa judaica revela toda a sua inimizade para com Jesus e, num crescendo de oposição, atribui a cura de libertação à acção e intervenção das forças demoníacas. E é o que faz a cegueira provocada pelo endurecimento espiritual dos guardiães da revelação dada a Moisés provocado pelo apego a uma interpretação errónea dessa mesma revelação. Em última instância, a cegueira espiritual, travestida de ortodoxia pode levar a uma blasfémia de lesa-divindade. Na verdade, o que deveria levar ao regozijo e ao louvor a Deus pela libertação de um ser humano cativo é substituído pela blasfémia em nome de uma interpretação distorcida da revelação. Sim, porque os líderes religiosos tinham acesso à revelação divina dada através de Moisés.

E é neste episódio que surge uma das mais fortes e pungentes declarações de Jesus. Parafraseando: “Todo o pecado é passível de perdão, excepto aquele em que o Espírito Santo é blasfemado” (vv. 31 e 32). Verdade se diga que o texto não revela linearmente em que consiste essa blasfémia. Apenas ficamos a saber que há um pecado que não tem perdão e qual o objecto desse pecado – a blasfémia contra o Espírito Santo. Muitas têm sido as exegeses sobre esta declaração mas de nenhuma se pode dizer que seja a explicação final. Pelo texto, percebemos que ela surge no contexto de uma blasfémia de lesa-divindade, quando os corações religiosos mas empedernidos na sua cegueira atribuem aos demónios uma obra com o selo da divindade, em última análise identificando Deus com o Seu arqui-inimigo, Satanás. Que Deus nos ajude para, mesmo quando algo vá contra os nossos pressupostos espirituais e religiosos, estarmos abertos para saber discernir o que vem de Deus e o que não vem e termos a humildade suficiente para reconhecer o nosso erro de interpretação quando for esse o caso. Aí, só há um caminho – arrepender-nos da nossa falha, reconhecer que errámos (ou estávamos errados) e confessar a soberania de Deus. E Deus que é amor irá certamente cobrir-nos com o Seu perdão.
4. Polémicas – vv. 33-50

Nesta secção, encontramos três momentos de ensino, confronto e polémica que podemos considerar o corolário dos episódios anteriores em que a oposição dos líderes religiosos a Jesus assume forma de um modo bem vincado.

Num primeiro momento, Jesus separa as águas e estabelece uma divisão clara entre os que, como árvores boas, produzem bons frutos e os que, como árvores ruins produzem maus frutos. Estas palavras fazem ecoar o Salmo 1:3 quando o salmista canta que “o justo é como a árvore plantada junto a ribeiros de águas, a qual dá o seu fruto na estação própria”. Que a árvore que somos nós esteja plantada não num charco de águas fedorentas mas alimentada por aquele que de si mesmo disse ser a água da vida para que o nosso fruto tenha a unção do Espírito Santo.

Num segundo momento, quando Lhe pedem um sinal comprovativo da autoridade com que ministrava, Jesus limita-se a dar o sinal do profeta Jonas que esteve três dias e três noites no ventre do abismo. Numa alusão à Sua morte e ressurreição ao referir o profeta, Jesus não se coíbe de apontar a incredulidade dos seus inquiridores porque enquanto gentios se arrependeram em resposta à pregação de Jonas, os filhos do povo eleito recusam-se a reconhecer que a Sua autoridade vem de Deus, o que Lhe permite declarar ser mais do que Jonas. No seguimento, refere o episódio da rainha de Sabá, uma gentia, que se desloca da sua terra para apreciar em primeira mão a grandeza do rei Salomão. E, no entanto, perante os que Lhe pediam um sinal, estava alguém que é mais do que Salomão. É curioso notar que Jesus reivindica para si a sua superioridade em três domínios – como sacerdote (mais do que o templo) como profeta (mais que Jonas) e como rei (mais que Salomão). Esta é uma confissão de que Ele era o Messias prometido que agregava em si as três funções messiânicas que só eram reconhecidas após a respectiva unção.

Num terceiro momento, confronta a multidão com a necessidade de responder aos requisitos para se ser considerado membro da família do Cristo de Deus – todo aquele que fizer a vontade do Pai esse é irmão, irmã e mãe de Jesus, ou seja, todo aquele que observa e respeita a vontade de Deus está apto a ser considerado membro da família de Jesus. O Cristo de Deus está aberto a ter uma família a cujos membros não se envergonha de chamar irmãos. Que Deus nos abra o entendimento para, num gesto de entrega e submissão à Sua vontade, guardemos no fundo do nosso coração, a Sua Palavra que é guia e luz para o nosso caminho.

A TEOLOGIA DA CRUZ 2ª Parte

A TEOLOGIA DA CRUZ
2ª Parte
Dr. Jorge Pinheiro
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Temos falado até agora de uma das entidades, Deus, que, mais acima dizíamos ser importante e essencial abordar e analisar para contextualizar e perceber o alcance e profundidade da teologia da cruz. A outra entidade é o Homem, de quem era inevitável indicarmos algumas das suas características ao abordarmos a pessoa de Deus. À semelhança de Deus, o homem é um ser extremamente complexo. Embora com uma identidade e unidade estrutural, tanto física como mentalmente, é grande a sua diversidade tanto em sentido individual como grupal. De facto, podemos dizer que não há dois indivíduos rigorosamente iguais tal como também não há duas sociedades ou culturas idênticas entre si a cem por cento. E, no entanto, tanto a nível individual como grupal, vamos encontrar anseios e preocupações idênticas. Por outro lado, podemos dizer que o homem é tanto fruto do meio como o meio é fruto do homem. Ou seja, o homem não se limita a ser um agente passivo, mas influencia o meio ambiente em que vive, pelo qual também se deixa influenciar. Houve um filósofo que declarou que o homem é ele e a sua circunstância. Por todas essas razões, ao abordar o homem, temos sempre de levar em conta toda essa complexidade e não tentar aplicar a todo e cada um uma mesma fórmula como se de um robot ou uma máquina se tratasse. Vamos encontrar esta característica descrita nas páginas da Bíblia. Tanto os profetas como o próprio Jesus embora com uma mensagem e uma intervenção universalistas, isto é, destinadas a todos os homens sem excepção, abordaram o homem individual segundo a sua especificidade. Poderíamos resumir esta característica pela frase: cada homem é um homem, o que acaba por traduzir o velho lugar-comum da unidade na diversidade.
Apesar dessa complexidade e diferenciação individuais e grupais, o homem, tanto individual como colectivamente, é um indivíduo. Esta palavra – indivíduo – é interessante porque significa aquilo que é uno, não divisível. O facto de uma entidade ser composta por partes, por vezes distintas, não impede que seja considerada indivisível. De certo modo, é essa forçosamente a característica de um ser que se move na dimensão do relativo. E, no entanto, o facto de viver na dimensão do relativo não impede o homem-ser-complexo-relativo de, por assim dizer, ter a dimensão do absoluto despejada no seu íntimo. De facto, a tendência de superação, de procura do mais além, da busca do transcendente é algo que caracteriza o homem. Vemos todo esse trajecto ao longo da história da humanidade. O Génesis descreve de forma magnífica esta realidade, ao afirmar que, na criação do homem, Deus declarou ir criá-lo à Sua imagem, conforme a Sua semelhança (1).
O carácter de ser que se move na dimensão do relativo faz com que o homem, por natureza, seja incompleto e esteja dependente do seu exterior ou de algum outro ser para ser aquilo que é. O homem entra em diálogo com a sua exterioridade e é através desse diálogo que se vai construindo, numa procura incessante de superação. Dessa procura dá conta o salmista em diversas das suas composições em que refere que a sua alma descansa, confia ou espera em Deus (2), expressões que surgem com outro articulado como o refúgio, a habitação, as asas de Deus, de que o Salmo 23 é paradigmático ao declarar que nada lhe faltará no Senhor que o faz deitar (em sossego), o guia e o orienta (3). Esta realidade também não escapa à análise do autor da epístola aos Hebreus quando fala do repouso que o crente encontra em Deus (4). O repouso é também característica que vamos encontrar em Deus, conforme declara o Génesis, dizendo que, depois de ter criado o Universo, Deus repousou (5). E é interessante notar que esta ideia de repouso vai surgir no Budismo, embora com outro articulado, partindo de outros pressupostos e chegando por isso mesmo a um resultado diferente daquele que defende o monoteísmo cristão. Falamos do conceito de nirvana que, no Budismo, é o estado de completo repouso da consciência, em que o homem consegue por fim libertar-se de todo o ciclo do samsara, o fluxo incessante de renascimentos. Sem entrarmos na discussão deste conceito e/ou da sua comparação mais exaustiva com a teologia cristã, podemos salientar que, embora a procura do repouso tenha de partir sempre do homem, no Cristianismo esse repouso vem de cima, ou seja, é potenciado por Deus, enquanto no Budismo, vem de baixo, ou seja, é potenciado pelo homem, na medida em que, no Budismo, Deus está ausente por ser irrelevante. Ou, em termos mais técnicos, a proposta do Cristianismo vai da transcendência para a transcendência passando pela imanência, enquanto no Budismo é da imanência para a transcendência passando pela imanência.
Há, então, no homem algo de divino ou, melhor dizendo, de natureza divi-na, o que explica toda a sua tentativa de superação existencial, motivando-o a elevar-se acima dos limites estreitos do relativo. Dir-se-ia que a natureza absoluta de Deus está aprisionada numa redoma frágil e contingente e dela procura libertar-se. Nos vários diálogos travados entre Jesus e muitos dos Seus interlocutores, verificamos que embora com vivências e estruturas psico-espirituais distintas, todos eles escutaram as propostas que Ele lhes apresentava. O tipo de respostas poderia variar, mas todos quantos respondiam positivamente revelavam esse anseio mais ou menos patente pelo absoluto. Vejam-se os casos de Nicodemos e da samaritana, de Marta e Maria e dos discípulos (6). Até mesmo os que, como o mancebo de qualidade, consideravam excessivas as posições do mestre galileu (7) não se furtaram ao diálogo.
Do ponto de vista da teologia bíblica, a essa característica validada pela Bíblia, junta-se uma outra já referida e que vai balizar todo o relacionamento do homem com o absoluto de Deus – a sua condição de ser imerso no pecado. Há, naturalmente, várias definições de pecado, algumas nada consentâneas com a realidade bíblica e muitas delas em livre curso em muitas igrejas. Isso talvez se deva ao facto de a Bíblia não apresentar uma definição de pecado mas de se limitar a induzir a ideia de ele ser uma transgressão à vontade e aos estatutos de Deus, colocando assim o homem em rota de colisão com a divindade de quem se encontra distante por via desse mesmo pecado. Seja qual for a definição de pecado que as diversas comunidades cristãs possam apresentar, todas elas produzem um efeito comum – a transmissão da noção de culpa do homem pelo seu afastamento da vontade de Deus, que o leva a deixar de ter comunhão directa com a divindade. Por via do pecado, o homem vive um drama espiritual intenso – o seu íntimo, onde tem inscrita uma matriz de origem divina, que anseia pela comunhão com o seu Criador, o que lhe permite trazer descanso e sossego, sente-se cortado dessa mesma comunhão e tudo fará e faz para que essa brecha que se abriu na comunhão entre Deus e o homem seja ultrapassada com sucesso, segurança e certeza.
Este é o drama que vamos encontrar em todos os quadrantes e latitudes, em todos os tempos e locais de habitação do homem. Seja qual for o posicionamento em que o homem se coloque na sua relação com o divino, em todas as expressões de religiosidade encontramos esta necessidade de ultrapassar a ruptura entre o nosso mundo do relativo e o absoluto de Deus. Como atrás mencionámos, o sistema sacrificial do Antigo Testamento aponta o caminho da restauração – a oferta de uma vítima vicária inocente, sem mancha ou defeito, por via da qual o penitente pode finalmente entrar no descanso da divindade.
Ora, é sobre este pano de fundo que se movimenta toda a teologia da cruz. Nela foi oferecido o sacrifício de uma vítima pura, inocente e sem mancha ou defeito. E para reforçar a realidade de se tratar de uma expiação plena do pecado, o altar em que esta vítima foi oferecida foi uma cruz, instrumento de tortura dos mais atrozes e que, na teologia veterotestamentária, tornava maldito tudo quanto nela fosse colocada, conforme a reflexão de Paulo (8) sobre o texto de partida em Deuteronómio que declarava ser maldito todo aquele que fosse exposto no madeiro (9). Na brilhante exposição de Paulo aos Gálatas, epístola que juntamente com a de Hebreus deveria ser de leitura obrigatória para todo o cristão, aprendemos que aquela vítima (Jesus) que era inocente, pura e sem defeito, se fez maldição, entenda-se pecado, por todos quantos aceitarem esse sacrifício. Desse modo, em última instância, em termos teológicos, era o próprio pecado que estava a ser entregue a Deus para que Ele o afastasse e eliminasse do existir humano. Esse é o entendimento de Paulo, ao declarar que Cristo se fez pecado por nós (10), o que indica, como atrás dizemos, que a cruz estava a receber o pecado em toda a sua extensão e em toda a sua latitude. Ou seja, em Cristo, na cruz, o homem está a entregar aquilo que o afasta da comunhão com Deus. A cruz esvazia o pecado do existir humano, da alma humana que, assim, despojada daquilo que a impede de ter comunhão com Deus pode, através deste sacrifício, entrar livremente na presença de Deus, com a certeza de, enquanto permanecer à sombra do Calvário, não estar mais conspurcada pelo pecado. Depois de rememorar a acção, o carácter e a função do sacrificado Jesus, o autor da epístola aos Hebreus grita de triunfo que podemos agora chegar com confiança junto do trono da graça de Deus (11).
Há, assim, uma novidade no Cristianismo em relação ao Judaísmo – sem rejeitar toda a revelação anterior a Cristo, no Cristianismo há um sacrifício em tudo idêntico aos sacrifícios expiatórios veterotestamentários, mas em que o pecado morre com a própria vítima e em que a vítima acaba por ser ao mesmo tempo vítima e sumo sacerdote. Cristo surge então com esta dupla característica ou natureza – vítima sacrificial e sumo sacerdote. No AT o sumo sacerdote entrava uma vez por ano no Santo dos Santos a oferecer um sacrifício por todos os pecados confessados e não confessados, os declarados e os omitidos (12). En passant, é interessante notar que o sumo sacerdote tinha de se banhar num banho ritual para se purificar (13) antes de poder oficiar no Lugar Santíssimo. De igual modo, Jesus, como nosso sumo sacerdote também passou por este banho ritual purificador quando foi baptizado por João Baptista (14). O facto de Cristo ser em simultâneo vítima e sumo sacerdote é, só por isso, tema de um tratado de teologia. Limitemo-nos a apontar uma ideia-força. Agrupando em si essas duas características que teologicamente surgem como tendo natureza e função distintas, para não dizer opostas e até antagónicas, Jesus surge como o verdadeiro elo entre o Deus santo e o homem pecador. Como cordeiro sacrificial, assume não apenas a figura do homem em si, mas de tudo quanto ele tem de negativo, impeditivo de uma comunhão plena com Deus. Como sumo sacerdote, é o primeiro entre todos os sacerdotes, o que lhe confere singularidade. Na sua qualidade de sacerdote, a pessoa pura que surge como representante de Deus no acto sacrificial, Jesus une em si os dois pólos desta relação quebrada no jardim do Éden, garantindo assim ser não UM sacrifício, mas O sacrifício por excelência. E rematando todo este acto com selo de qualidade e garantia, o cordeiro em sacrifício é o cordeiro DE Deus.
Este sacrifício feito uma vez por todos dispensa qualquer acto da parte do penitente e do pecador visando por meio de um qualquer sacrifício de qualquer natureza obter da parte de Deus a graça de lhe ser permitido entrar na Sua presença. A cruz dispensa o pecador de, a cada pecado, apresentar um sacrifício redentor. Essa obrigação foi cumprida uma vez por todas por aquele que, sendo o Cordeiro de Deus, foi enviado por Deus para, por meio do Seu sacrifício, redimir por completo toda a raça humana. Por isso, a epístola aos Hebreus declara triunfalmente e sem sombra para dúvidas que este sacrifício singular é suficiente para, por toda a eternidade, santificar o pecador (15). Isso não significa, porém, que liberto dessa obrigação, o crente possa viver a seu bel-prazer, ignorando todos os estatutos que Deus coloca perante o homem e cujo cumprimento e observação são indispensáveis para que a comunhão com Deus não entre em ruptura. Agora, o cristão vive em novidade de vida (16), o que significa que deve apresentar no seu viver frutos de uma vida transformada e em consonância com o querer de Deus. E para que o cristão não diga que se sente incapaz de o conseguir, Deus, conforme promessa de Jesus, coloca no seu interior o Espírito Santo (17) permitindo-lhe assim produzir fruto agradável a Deus (18).
Por tudo quanto atrás dizemos, concluímos que todo o cristianismo, quer em termos colectivos, quer em termos individuais, tem de girar sempre e inescapavelmente, em torno do sacrifício de Cristo para que, por meio dessa acção, os seus membros possam ser beneficiários de toda a herança de que o sacrifício no Calvário os fez herdeiros. Reunião cristã que esteja arredia dessa verdade não passa de uma socialização de entretenimento. Cristianismo em que essa verdade esteja ausente nem caricatura é de cristianismo, mas a prostituição de todo o plano de Deus para a redenção da humanidade. Cristianismo em que os seus seguidores, sejam líderes, sejam leigos, se arroguem à reivindicação de alguma parcela de glória pela sua acção não passa de associação de malfeitores e ladrões.
A cruz representa, pois, salvação e salvação vinda de Deus sem o contributo humano. Por isso, é uma obra perfeita e absoluta, porque Deus, sendo perfeito e absoluto, coloca a Sua marca em toda a Sua obra. Mas é uma salvação ao mesmo tempo colectiva e universal mas também individual. Universal, na medida em que está acessível a todos sem excepção. Individual, porque cada um tem de assumir sozinho o compromisso de passar a ter comunhão com Deus, na medida em que Deus respeita a individualidade do homem, convidando-o a, face a face, decidir-se pelo caminho da reconciliação agora definitivamente franqueado. O Apocalipse retrata essa realidade de uma forma magistral e sublime (19).
No sacrifício há dor, a dor do animal que é morto. Jesus, como ser senciente, isto é, que sente, experimentou dor e dor atroz porque, como dizemos mais atrás, a cruz era instrumento de tortura dos mais atrozes, dos mais dolorosos. Sendo o Cordeiro de Deus, isso significa que Deus está presente na nossa dor e, através dela, podemos ver, embora nem sempre sentindo (20) que o Deus salvador está em nós (21), guiando-nos por aquilo que consideramos ser o nosso vale da sombra e da morte (22). Como diria Lutero, embora Deus oculto porque Ele é conhecido apenas porque se revelou, isto é, retirou o véu que O ocultava, Deus manifesta-se nas coisas visíveis. Embora sendo o Deus das Alturas, de que o cântico dos anjos aos pastores se faz eco (23), Deus mani-festa-se no mais profundo, como reconhece o salmista (24). Ele manifesta-se no mais profundo da nossa dor, da nossa ignomínia, da nossa insuficiência. E fá-lo através daquele que é Emanuel, a oferta sacrificial perfeita. E embora possamos sofrer em resultado da nossa decisão de seguir Cristo, isso não significa nem que iremos forçosamente sofrer nem que tenhamos de procurar o sofrimento para nos chegarmos a Deus em busca de redenção. Esta está já garantida uma vez por todas e não precisamos de procurar a dor e o sofrimento porque o Salvador levou já sobre si todas as nossas dores (25). Mas se a dor vier em consequência da nossa adesão a Cristo, por muito sofrimento que ela possa causar, só temos de recordar ao nosso coração e à nossa circunstância que do Alto vem o socorro (26), porque o Alto conheceu e experimentou a nossa baixeza.
Mas a cruz revela também o paradoxo do plano salvífico de Deus. Na cruz, aparentemente, não podemos ver Deus, tanto mais que, como referimos já, Jesus exclamou: “Deus meu, Deus meu porque me desamparaste?” Ou seja, Deus está ausente, oculto da cruz. E, no entanto, é este Deus oculto que está presente em toda a extensão do sacrifício e do sofrimento de Cristo. Podemos avançar, em tentativa de explicação que Deus está, pelo menos aparentemente, ausente porque na cruz está não o Filho Unigénito, mas o pecado negro e hediondo. O que reforça o paradoxo porque, nessa linha de pensamento, o Deus santo passa pelo pecado, atravessa o pecado, mergulha no pecado para se chegar até ao pecador e resgatá-lo à sua condição de filho amado de Deus. O que faz com que Deus deixe de estar oculto DA cruz, para estar oculto NA cruz. Tal como Deus baixou do Alto à nossa profundeza, assim nós também, temos de subir ao alto através da nossa baixeza sabendo que em todo esse processo, em toda essa caminhada, no túnel escuro do pecado estamos resguardados por aquele que abriu um caminho seguro para o nosso ser.
Ainda citando Lutero, “a cruz põe à prova todas as coisas”. Ou seja, face a qualquer teoria ou doutrina de salvação de origem estritamente humana, a cruz manifesta-lhe as fragilidades e surge como o único e seguro caminho porque, como paradoxo de Deus, enfrenta os paradoxos do existir humano. Porque quando seguimos outro caminho que não o da cruz, estamos a dar primazia exclusiva ao intelecto e à vontade humana, remetendo para segundo plano a via segura de conhecer Deus através da revelação em que Ele próprio se empenha e compromete. Quando abraçamos a revelação de Deus, ela valoriza e potencia todas as faculdades humanas, incluindo a vontade e o intelecto. Ou seja, estes só podem pretender atingir o seu esplendor máximo quando andam de mãos dadas com a revelação da cruz, que é a revelação máxima de Deus ao homem e revelação final de Deus no tocante ao plano de salvação.
Por todas as razões atrás apresentadas e por outras que não abordámos, podemos concluir com Paulo, confessando e reconhecendo que “a loucura de Deus é mais sábia do que os homens e a fraqueza de Deus mais forte do que os homens” (27). A Deus toda a glória.
(1) Génesis 1:26.
(2) Salmo 62:1
(3) Salmo 23.
(4) Hebreus 4:8,9.
(5) Génesis 2:1.
(6) João 3; 8; 11; 6:68.
(7) Marcos 10:17-22.
(8) Gálatas 3:13.
(9) Deuteronómio 21:23.
(10) 2 Coríntios 5:21.
(11) Hebreus 4:14-16.
(12) Levítico 16:29-34.
(13) Levítico 16:4.
(14) Mateus 4:13-17.
(15) Hebreus 10:12, 14.
(16) Romanos 6:4.
(17) João 16:13.
(18) Gálatas 5:22, 23.
(19) Apocalipse 3:20.
(20) Porque Cristo exclama na cruz sentir-se abandonado – Mateus 27:46.
(21) Porque Jesus é Emanuel, Deus connosco – Mateus 1:23.
(22) Salmo 23.
(23) Lucas 2:14.
(24) De profundis clamavi ad te Domine – Salmo 130:1.
(25) Isaías 53:4.
(26) Salmo 121:1.
(27) 1 Coríntios 1:25.

A SIMPLICIDADE DO EVANGELHO

A SIMPLICIDADE DO EVANGELHO
2018julho21 Casamento Ana
Samuel R. Pinheiro
O evangelho é simples. De algum modo não precisamos de nenhuma versão de um evangelho para “totós”. Muito menos aquela expressão “explica-me como se eu fosse muito burro”. É suficiente ler o evangelho com uma mente e um coração abertos. Ele é fácil de entender e de acolher no coração e na vontade.
Na sua simplicidade o evangelho encerra os maiores mistérios que alguma vez poderíamos imaginar.
Em primeiro o mistério de um Deus trino que se dá a conhecer pessoalmente, em carne e osso, pele Filho. Deus que se mostra de um modo visível aos olhos humanos, não era uma novidade em relação à história que antecede a chegada de Jesus Cristo, no que é chamado de teofanias. Existe, no entanto, uma diferença radical no que concerne a Jesus entre nós, como o Filho de Deus. Pela ação do Espírito Santo Jesus é concebido no ventre da virgem Maria. Deus toma a forma humana, veste-se de carne. O Criador surge na história na condição de criatura sem deixar de ser divino.
Em segundo lugar o mistério da vida de Jesus, Deus e Homem, numa única identidade. É aqui que reside a grande tensão de todo o evangelho no contexto da sociedade e da cultura judaica. Podemos dizer que este era o contexto mais difícil para a divindade de Jesus ser assumida e demonstrada. Por exemplo o evangelho escrito pelo apóstolo João tem como objetivo nas palavras do próprio: “Jesus fez ainda diante dos seus discípulos muitos outros sinais que não vêm escritos neste livro. Estes foram contados para que creiam que Jesus é o Messias, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenham vida no seu nome.” (João 20:30,31 – BPT). Tudo o que Jesus fez, todos os Seus inúmeros milagres, toda a Sua vida nesta terra, têm um objetivo primordial, são por isso “sinais”, apontando para a identidade de Jesus. Quem Jesus é, é decisivo. Ao percebermos que Ele é muito mais do que um homem, sendo o Homem, é Deus. Ao longo de todo o evangelho de João, Jesus é apresentado como o EU SOU: “Eu sou o pão que dá vida” (6:35,48); “Eu sou a luz do mundo” (8:12); “Eu sou a porta” (10:7,9); “Eu sou o bom pastor” (10:11,14); “Eu sou a ressurreição e a vida” (11:25); “Eu sou o caminho, e verdade, e a vida” (14:6). Na introdução ao evangelho de João a edição A Bíblia Para Todos, acrescenta: “Com sentido absoluto, isto é, sem nenhum predicativo ou complemento, aparece em 6:20 (´Sou eu, não tenham medo!’) e, sobretudo, em 18:5,6, onde os soldados caem por terra diante da santidade, majestade e divindade do EU SOU, paralelo ao nome divino (Êxodo 3:14).” Um dos pontos mais sensíveis acontece quando Jesus cura um paralítico para vindicar o fato de que tem autoridade para perdoar os pecados, e isso os religiosos judaicos sabiam só Deus pode fazer!
Em terceiro lugar Jesus Cristo cumpre o Seu propósito de morrer. Deus conhece a morte com um corpo de homem. A Sua morte incorpora a morte de todos os seres humanos. Uma morte que começa por ser espiritual na separação de Deus e da Sua vontade, e acontece no corpo. “Está determinado que os homens morram uma só vez…” (Hebreus 9:28ª – BPT).
Em quarto lugar o mistério da ressurreição de Jesus Cristo. A ressurreição não é mais do que o ponto mais sublime e supremo da história da humanidade e da revelação divina. A morte é enfrentada nos olhos e é vencida. A partir daí não existe mais qualquer reticência. A morte foi derrotada. Há uma nova vida a viver para lá desta, ou como prolongamento desta mas com uma condição totalmente distinta. É Deus quem concretiza. Só Ele o poderia fazer. Nenhum homem ou mulher, nenhum líder religioso, filosófico, cultural ou político o fez ou pode fazer.
Nenhum destes mistérios é um entrave para uma mente aberta diante da evidência que nos leva a crer que Jesus é Deus entre nós, e a partir daí tudo se resolve, tudo se torna fácil tanto para a mente como para o coração. O que é necessário de seguida é agir em conformidade. Colocar em Jesus a nossa confiança e aceitá-lO como Ele é – o Senhor que nos salva da situação em que nascemos, prisioneiros da morte, reféns do que nos aprisiona dentro dos limites estreitos do nosso egoísmo, da nossa incapacidade de chegarmos por nós a Deus. Um vez crendo as evidências multiplicam-se, como alguém disse “crer para compreender”.
Antes do que cremos e da razão por que cremos, está em Quem cremos. No evangelho isso é essencial. A pessoa de Jesus dá-nos um novo referencial de vida, do tempo, da história, do passado ao futuro e à eternidade. Em Jesus e por Jesus o céu é estabelecido com algumas nuances aqui, e em toda a sua plenitude na eternidade. A terra fará parte do céu, e todos em Jesus viverão eternamente com o Pai, o Filho e o Espírito Santo. A decisão é feita aqui e agora! “A todos quantos o receberam, aos que crêem nele, deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus.” (João 1:12- BPT).
Samuel R. Pinheiro
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UM PLANETA SEDENTO DE GRAÇA

UM PLANETA SEDENTO DE GRAÇA

 2018julho21 Casamento Ana

                A meritocracia da finança e da economia infiltrou-se nos relacionamentos e dentro do coração do homem. Porventura é daí mesmo que ela brotou. A ditadura do mérito está presente na escola, na empresa, na família e nas religiões. Talvez nem sequer tenhamos já a capacidade de conceber um mundo diferente. Mas o que se verifica nas várias dimensões da vida humana, está também agarrado à pele do homem.

                Eu mereço ou eu não mereci a isto, faz parte de uma mesma realidade como uma moeda de duas faces, mas cuja essência é a mesma.  

                A essência do evangelho que Jesus nos veio trazer, está resumida na palavra GRAÇA. A graça significa que eu não tenho que merecer, nem sequer alguma vez vou conseguir merecer. Não é por aí que eu tenho de ir. Preciso fazer uma inversão de marcha, mudar de rumo, seguir na direção oposta. Encontrar em Deus o meu suporte e a minha segurança. O texto da Bíblia é bem explícito. Esta é uma diferença radical entre todas as religiões e o evangelho. As religiões dizem “faça” e o evangelho diz “feito”. E o que a religião manda fazer nunca é suficiente o bastante para dar ao homem a segurança da vida eterna, e de ser aceite já nesta terra.

                O evangelho dá-nos a conhecer o plano incrível de Deus de vir ao nosso encontro para fazer por nós o que nós nunca poderíamos fazer por nós próprios. Por isso o homem estava irremediavelmente perdido.

                Se repararmos a vida que recebemos é um ato da graça. Existimos não porque merecemos, mas porque fomos desejados por Deus. A nossa vida pode não ser o que desejávamos por inúmeros fatores, mas a realidade é que viemos à existência pela graça. E Deus nos convida a continuarmos a viver no desenvolvimento dessa graça que tem o seu clímax em Jesus Cristo. Se existimos pela graça, só podíamos ser reconciliados com o plano de Deus que é vida plena e abundante, pela graça.  

                O problema do homem não reside na realidade de existir, mas de ter rompido com os desígnios e a vontade de Deus. Deus nos criou para vivermos num jardim e vivermos a cada dia desfrutando da Sua amável presença. O problema também não está apenas na decisão dos nossos primeiros pais que desobedeceram ao mandamento divino de não comer da árvore da ciência do bem e do mal. O problema consiste no que cada um de nós hoje faz diante do amor de Deus expresso na pessoa de Jesus. Deus fez tudo para que sejamos salvos.

                O Deus da Bíblia, o Deus que se nos deu a conhecer em Jesus Cristo, não negoceia connosco seja o que for. A religião pode virar, e geralmente vira negócio. Mas o evangelho não! Nada podemos pagar pela nossa vida, e nada podemos pagar pela nossa salvação.

                O estranho, ou talvez não, é que a meritocracia, está de tal modo arreigada no coração do homem, que este lida mal com a generosidade divina. Muitas pessoas ao ouvirem falar da graça de Deus, consideram que isso é mais do que podemos esperar. E em certa medida têm razão. Mas o que não esperávamos, e o que não podíamos exigir, foi o que Deus fez, porque Deus é mesmo assim. Nós somos diferentes porque a nossa natureza e condição originais foram corrompidos. Deus foi muito para lá da nossa imaginação. Ele surpreendeu-nos. O Seu amor é imenso.

                Muitas pessoas quando ouvem falar de Deus pensam imediatamente em mandamentos, em regras, em ética e moral. Mas se formos honestos connosco mesmo temos de reconhecer que estamos moralmente falidos. Mesmo que vivamos segundo os ditames da mais exigente ética, isso não é suficiente.

                Jesus encontrou-se com um religioso que seguia com todo o rigor os padrões éticos do judaísmo. Jesus de rompante disse-lhe que ele precisava nascer de novo e que só dessa maneira ele podia ver o reino de Deus. O homem ficou estupefacto e apesar de toda a sua cultura religiosa, não conseguia atingir como tal poderia ser possível. Talvez a sua religião fosse precisamente a razão pela qual ele não conseguia descortinar como tal podia ser possível, apesar de ter declarado que Jesus não podia fazer o que fazia se Deus não fosse com Ele. Na realidade Deus é o Deus do impossível. Ele pode mudar o ser humano por dentro, fazer-nos nascer de Deus, e sermos feitos Seus filhos. É aí que recuperamos a nossa imagem e semelhança perdidas. (João 3:1-21)

                O mesmo aconteceu com o apóstolo Paulo criado na mais estrita e rígida observância religiosa. Depois do seu encontro com Jesus e por revelação divina escreveu aos cristãos em Éfeso e a todos nós o que é a base sólida do plano divino:

                “Porque pela sua graça é que somos salvos, por meio da fé que temos em Cristo. Portanto, a salvação não é algo que se possa adquirir pelos nossos próprios meios: é uma dádiva de Deus. Não é uma recompensa pelas nossas boas obras. Ninguém pode reclamar mérito algum nisso. Somos a obra-prima de Deus. Ele criou-nos de novo em Cristo Jesus, para que possamos realizar todas as boas obras que planeou para nós.” (Efésios 2:8-10 – O Livro)

                O amor de Deus é incondicional. Todos somos amados porque Deus é amor. O que é que vamos fazer com esse amor? Do que fizermos depende o nosso presente e o nosso futuro eterno.

                No amor divino concretizado por Jesus na cruz encontramos uma nova identidade como filhos de Deus, um novo sentido e propósito na glória divina, perdão e completa libertação da culpa. É a vida eterna que recebemos, uma vida que permanece para sempre!

 

Samuel R. Pinheiro

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A TEOLOGIA DA CRUZ

A TEOLOGIA DA CRUZ
JorgePinheiro_23a_peqJorge Pinheiro
Falar da teologia da cruz implica ter de falar necessariamente de duas outras entidades para que este tema seja contextualizado e assim entendida a sua profundidade. Essas duas entidades são Deus e o Homem.
De facto, tendo em conta que, na visão cristã, a teologia da cruz é es-sencial, sendo o seu suporte e coluna mestre, ela só faz sentido tendo como pano de fundo não apenas essas duas entidades atrás referidas, mas a relação existente entre ambas, na medida em que a Cruz surge como o caminho que cimenta essa relação. Melhor ainda, a Cruz é o próprio cimento dessa relação.
Convenhamos que, em termos humanos, não é fácil falar de Deus. Como seres relatados estamos destinados a conhecer directamente apenas aquilo a que os nossos sentidos têm acesso. Essa, de resto, é a base de todo o conhe-cimento humano. É assim que se move toda a ciência. Qualquer ciência, seja ela física, humana ou formal, tem como objecto de estudo uma realidade ou ser acessível aos nossos sentidos e sobre o qual se podem realizar experiências, para comprovar a sua realidade e as conclusões a que se chegou do seu estudo. É verdade que cada ciência, de acordo com a sua natureza, segue métodos específicos que, em alguns casos, não permitem a experimentação directa (como é o caso das chamadas ciências humanas), mas todas elas têm como comum a necessidade de um objecto sensível de estudo.
Naturalmente, também, toda a ciência é, por princípio, incompleta, na medida em que não consegue esgotar o conhecimento pleno do seu objecto de estudo por se encontrar em permanente estado de evolução resultante da dialéctica estabelecida com esse objecto. Por isso, a cada momento se elabo-ram novas teorias baseadas em pressupostos, hipóteses ou descobertas en-tretanto adquiridos as quais muitas vezes contradizem ou melhoram uma perspectiva anterior. Sem nos aventurarmos na demonstração de que toda a ciência é influenciada pela ideologia do poder político, económico ou social em que se desenvolve, podemos afirmar que a ciência acaba sempre por estar em evolução não podendo por isso arrogar-se à palavra final do conhecimento, dada essa característica transitória. Mas também é verdade que na caracte-rística sincrónica do viver humano, as conquistas da ciência e o conhecimento que ela adquire surgem como absolutos porque, a quem vive sincronicamente falta a perspectiva diacrónica. Isto é, enquanto seres humanos só podemos estabelecer comparações factuais com o passado e apenas pressuposições, hipotéticas portanto, em relação ao futuro. Por isso, o momento (relativo) em que se vive tende a surgir para quem viva apenas sincronicamente como abso-luto e adquirido. Salomão, ao reflectir sobre a existência humana e a sua con-tingência, declarava que tudo é vaidade ( ), querendo com isso dizer que tudo neste mundo é transitório e não absoluto ou definitivo. Esta mesma ideia acaba por ser elaborada por João ao declarar que “o mundo passa” ( ).
Ora, falar de Deus no pressuposto de Ele ser o objecto de estudo de uma ciência experimental é algo que surge como impossível, uma vez que, como Ser Absoluto, não sujeito às contingências e limitações do relativo, Deus não é directamente captável pelos sentidos humanos sob o risco de, sendo-o, deixar de ser Deus por perder a sua natureza absoluta. É que, enquanto o Absoluto pode abarcar o relativo, o relativo apenas pode tentar abarcar o relativo e, do Absoluto, ter somente um vislumbre hipotético.
Assim, toda e qualquer ideia que o homem possa ter de Deus será sempre aproximada porque lhe falta a capacidade de exercer algum tipo de controlo ou domínio sobre o seu objecto de estudo. No entanto, apesar das limitações que cercam a abordagem científica de Deus, há sempre alguns aspectos que se podem tomar como adquiridos. Naturalmente, entendendo Deus como ser absoluto, pode imaginar-se, por exemplo, que todos os Seus atributos sejam também absolutos. A partir daqui, no entanto, pouco mais se pode avançar, como seja o perfeito carácter de Deus e as Suas intenções. Neste aspecto, tudo quanto se possa elaborar a esse respeito terá de ficar pelo campo das hipóteses, uma vez que não há possibilidade de as confirmar ou infirmar. De resto, é a essa conclusão que chega Paulo, ao declarar: “Quem compreendeu o intento do Senhor?” ( ), reflectindo a confissão de Job “Bem sei que tudo podes e nenhum dos Teus pensamentos pode ser impedido” ( ).
Dada a natureza absoluta de Deus, ao homem, como ser relativo, faltam as qualidades e capacidades para O descrever e aos Seus atributos de forma rigorosa, pelo que toda a descrição ou referência a tudo quanto importa a Deus peca por defeito. Daí recorrer-se a uma abordagem antropomórfica do Ser Absoluto. Disso são reflexo as diversas expressões que o crente utiliza para se referir à protecção ou ao amor de Deus, para citar apenas duas das Suas características. Todos conhecem os cânticos “Segura na mão de Deus” e “Sob Suas asas refúgio eu tenho”. No mesmo andamento, é costume o crente referir-se ao trono ou à habitação de Deus. Sendo Deus absoluto e sendo o espaço e o tempo realidades do relativo, então Deus não está sujeito às limi-tações do relativo, razão pela qual, em bom rigor, é incorrecto falar-se de lugar em relação a Deus. Essa mesma metodologia antropomórfica vamos en-contrar logo em Génesis quando, no seguimento da criação de Adão e Eva, o texto bíblico se refere a Deus a passear no jardim, pela viração do dia ( ). Ou, ao referir-se à ira de Deus, encontramos por diversas vezes a expressão “arrependeu-se Deus” como no episódio do dilúvio ( ). Os exemplos são inúme-ros. É evidente que, em alguns dos exemplos citados, se pode dizer que o texto recorre a metáforas, mas mesmo sendo metáforas, elas surgem com um carácter antropomórfico.
Chegados a este ponto, poderemos, justamente, perguntar: “Então, é im-possível conhecer Deus? É impossível saber como Ele de facto é e quais os Seus intentos e propósitos?”
Antes de responder a essa pergunta, é fundamental perceber que Deus, como ser inominável, não pode ser demonstrado. E ainda bem que assim é, porque no momento em que se demonstrasse física e cientificamente a Sua existência, Deus deixaria de ser Deus porque ao ser percebido pelo ser relativo que é o homem, perderia a Sua natureza e essência absolutas. Isto é, Deus passaria a caber e a pertencer ao domínio do relativo. É verdade que há inúmeras tentativas ou teorias de demonstração da existência de Deus e muitos afadigam-se por encontrar a demonstração perfeita e irrefutável. De igual modo, muitos crentes, por vezes de forma angustiosa, são impelidos a basear a sua fé em Deus numa prova científica ou filosófica demonstrativa cabal da Sua existência. Ora, a verdade é que todas as teorias de demons-tração da existência de Deus podem ser refutadas o que levaria a uma con-clusão – nenhuma teoria pode afirmar ou negar a existência de Deus. E porquê? Porque, rememorando o que atrás se diz, estamos a lidar com o ser absoluto e, como seres relativos, faltam-nos as competências e as ferramentas próprias para afirmar ou negar irrefutavelmente tudo quanto concerne a Deus. Este facto não nega nem impede, porém, que, quem creia em Deus, não possa ou não deva reflectir lógica e racionalmente sobre Deus e os Seus atributos. De resto, toda esta exposição é prova do que acabamos de afirmar.
A resposta à pergunta não é fácil de dar e depende dos pressupostos de que se parte. Dada a impossibilidade de se comprovar experimentalmente toda a declaração feita directamente ou em nome de Deus, como saber que uma dada mensagem considerada proveniente de Deus, veio de facto d’Ele? Seria sempre necessário partir da hipótese (indemonstrável) da Sua existência. É sempre com base nessa hipótese que qualquer reivindicação da origem divina de uma mensagem, de um acontecimento ou de uma realização tem de ser analisada. Essa é a posição do autor da epístola aos Hebreus ao declarar: “É necessário que aquele que se aproxima de Deus creia que Ele existe e que é galardoador dos que O buscam” ( ). E aqui entra um elemento indispensável, diríamos central e insubstituível, para a resposta à pergunta em apreço. Esse elemento é a fé, no sentido de convicção e confiança. A convicção é o esteio da certeza e esta vai-se alicerçando cada vez mais à medida que o crente se aproxima de toda a mensagem ou intervenção tida como proveniente de Deus, quer directamente quer por algum intermediário.
Esta convicção resulta da escolha em favor da existência quando a pessoa é confrontada com a impossibilidade da afirmação ou negação da existência de Deus. Quem opta pela não existência, embora de forma sincera e em busca das respostas últimas à existência, segue o seu caminho em diálogo constante com a sua contingência, buscando argumentos em favor da sua opção. Em última análise e instância, pode seguir nessa opção até ao final dos seus dias ou chegar à conclusão de que esgotou os argumentos em favor da não existência de Deus, só lhe restando testar a opção oposta e que até então rejeitara. Quem opta pela existência procura ver em cada declaração tida como proveniente de Deus não apenas a confirmação da sua opção mas a identificação com a sua hipótese de partida. Concluímos então que a fé na existência de Deus, fé no sentido de convicção, é fundamental para que o crente receba como fidedigna uma mensagem ou intervenção atribuída a Deus. Não é, pois, por acaso que a Palavra de Deus declara que o justo viverá pela fé ( ). Repare-se na parte final deste último versículo (Hebreus 10:38): “se ele [o justo] recuar, a minha alma não tem prazer nele”. Ou seja, se a pessoa não tiver fé na existência de Deus, Deus deixa de existir para ela.
Posto o problema nestes termos, é forçoso olhar ao nosso redor e ver como se apresenta o universo teológico de todos quantos optaram pela hipótese da existência de Deus, sem descurar as objecções ou contra-argumentos de quem defende a não existência de Deus. Ou seja, devemos analisar as diversas propostas desse universo e fazê-las passar pelo crivo fino e exigente da sua congruência.
Nesse esforço, podemos classificar de diversas formas o universo teoló-gico: politeísmo, panteísmo ou monoteísmo, teologias (ou religiões) reveladas ou naturais (não reveladas). Sem entrar em grandes pormenores, podemos centrar a atenção no monoteísmo revelado. Rapidamente as razões dessa preferência em detrimento das outras perspectivas são:
1) No caso do politeísmo está ausente necessariamente a figura de um Deus absoluto. Se os deuses são vários, então não são absolutos. Em última instância, o politeísmo e o naturalismo ou o animismo movem-se nos mesmos pressupostos porque os diversos deuses dos politeísmos acabam por ser a encarnação de forças naturais que os animistas reverenciam. De certo modo, o politeísmo é um animismo de grau elevado.
2) No caso dos panteísmos, esta perspectiva acaba por ser um meio-termo entre um politeísmo e um monoteísmo. Em última instância, o deus (ou deuses) dos panteísmos perde ou compartilha o seu carácter absoluto com quem é do domínio do relativo ou então o outro elemento, por norma a natureza, surge como absoluto. Num caso ou no outro, o deus dos panteísmos surge sempre como não absoluto ou, no mínimo, o que seria o mesmo, como um absoluto truncado ou bipartido.
3) No caso do monoteísmo, se Deus é uma pessoa, então é natural que Ele fale porque o verbo, a fala, a comunicação é o que caracteriza a pessoa. É verdade que nos monoteísmos podemos encontrar a figura de um Deus impes-soal para quem o destino da criação é indiferente. É o caso dos diversos de-ísmos. Ora, parece-nos, salvo melhor opinião, que o deísmo é de grau inferior a qualquer teísmo porque toda a pessoa apresenta uma outra característica, a de criador interessado na sua criação. Sendo uma pessoa, o Deus dos monoteísmos tem necessariamente de ser criador e de estar interessado (e muitas vezes envolvido) na Sua criação.
Note-se que referimos monoteísmos e não apenas monoteísmo. De facto, encontramos vários monoteísmos tanto na actualidade como ao longo da his-tória. Centrando-nos na actualidade, detectamos três monoteísmos, indicados pela sua ordem de aparecimento: Judaísmo, Cristianismo e Islamismo. Há quem considere o Siquismo um monoteísmo, mas tendo nós reservas quanto a essa classificação, preferimos não o abordar. Ora, a existência dos três mo-noteísmos levanta várias interrogações: são variantes de um só monoteísmo ou estaremos na presença de três monoteísmos distintos e, em última análise antagónicos. Subjacente a estas interrogações, a interrogação maior: o deus dos três monoteísmos é o mesmo ou cada um apresenta um deus diferente?
Sem aprofundarmos a questão, podemos salientar que os três monoteís-mos apresentam traços comuns tanto na concepção de quem Deus é como se reivindicam de uma herança comum. No entanto, a uma análise mais fina, veri-ficamos que há uma maior proximidade entre Judaísmo e Cristianismo, o que significa que, dos três, o Islamismo é o que mais distinções e diferenciações apresenta. As semelhanças e proximidades entre Judaísmo e Cristianismo são tais que podemos dizer, sem entrar em erro, que o Cristianismo é uma releitura do Judaísmo. Por algum motivo se fala de uma civilização judaico-cristã. De facto, as Escrituras cristãs aceitam como revelação divina todo o Antigo Testamento que é lido e interpretado não apenas no seu contexto histórico mas também como palavra de Deus preparatória de uma revelação que é con-tinuação do que fora revelado até ao aparecimento de Cristo. Jesus Cristo, personagem histórica que, na leitura cristã, surge como clímax de todas as promessas de redenção apresentadas no Antigo Testamento.
No monoteísmo revelado, é natural que se fale em revelação. De facto, sendo Deus um ser absoluto que escapa ao escrutínio de uma análise sensório-objectiva, exigência de qualquer ciência, só O podemos conhecer e ao Seu querer, carácter e planos para a criação, se Ele próprio se revelar. Das reve-lações tidas como provenientes de Deus, concluímos que a que apresenta Deus com todas as características expectáveis de um ser absoluto é a Bíblia Sagrada. Por isso, podemos afirmar que ela é sem sombra de dúvidas a única fidedigna. Qualquer característica que possamos atribuir merecidamente a Deus, vamos encontrá-la nas páginas da Bíblia. Deus único, omnipotente, pes-soal, que é amor, justiça, rectidão, etc., tudo vamos encontrar na Bíblia. Um agnóstico ou um ateu que analise com imparcialidade o texto bíblico terá de confessar que tudo quanto poderia esperar de Deus está na Bíblia. Ou, dizendo de outro modo, que a elaboração judaico-cristã das características de Deus é final e absoluta. Se compararmos a Bíblia com o Alcorão, verificamos que tudo quanto este último possa dizer das características, da personalidade e dos planos de Deus para a Sua criação se encontram já expresso de forma directa ou indirecta, implícita ou explicitamente nas páginas da Bíblia. Nesse sentido, a um monoteísta crente na Bíblia, o Alcorão nada acrescenta às características de Deus que ele já não conheça, aprecie ou tenha experi-mentado ou descoberto.
Temos, então, uma revelação escrita onde o crente pode ir buscar todas as respostas para as suas inquietações humanas, em qualquer campo do seu envolvimento pessoal: espiritual, social, económico, político, etc. Por isso, é fundamental que o crente, o cristão neste caso, esteja familiarizado com a Bíblia Sagrada e dela faça a sua bússola na sua caminhada terrena.
Falamos de revelação. Ora, revelação implica, como vimos, palavra ou co-municação, característica fundamental de pessoa. Sendo Deus uma pessoa, então é natural que comunique pela palavra. E é curioso porque, como seres relativos que somos, necessitamos sempre de uma forma para perceber e en-tender a realidade. Damos formas às coisas através de outros objectos ou de símbolos verbais ou não. O homem dá assim uma forma a todos os seres, uma vez que só tem a capacidade de apreender a realidade através desse meio. Por isso, alguém designou o ser humano como o homem simbólico. Sendo Deus um ser, mesmo sendo o ser absoluto, é necessário ao homem dar-Lhe uma forma para O perceber e entender. Por isso, ao longo da história da humanidade, vemos o homem atribuir à divindade as mais diversas formas. Ora, Deus sabe dessa contingência humana e, por isso, tem de se apresentar sob uma forma ao homem para dele ser conhecido ou, melhor dizendo, ser começado a ser conhecido. Verificamos, porém, que tendencialmente o homem acaba por identificar a forma da representação da divindade com a própria divindade. Ao fazê-lo, na prática acaba por atribuir a glória que apenas a Deus pertence à forma que O representa. Ora, a Escritura é muito clara ao declarar “Eu sou o Senhor; este é o meu nome; a minha glória, pois, a outrem não darei, nem o meu louvor às imagens de escultura (ou aos ídolos)” ( ). Por essa razão, a Bíblia é muito enfática ao declarar guerra aberta à adoração de ídolos, assumam eles a forma que assumirem. O Decálogo é disso prova exemplar: “Não terás outros deuses diante de mim. Não farás para ti imagem de escultura, nem alguma semelhança do que há em cima nos céus, nem em baixo na terra, nem nas águas debaixo da terra. Não te encurvarás a elas nem as servirás; porque eu, o Senhor teu Deus, sou Deus zeloso, que visito a iniquidade dos pais nos filhos, até à terceira e quarta geração daqueles que me odeiam” ( ). No entanto, devido à nossa contingência, continuamos a necessitar de uma forma que nos identifique Deus. O Deus da Bíblia sabendo disso encontra a solução, retratando-se através de uma das Suas características – Deus é um Deus loquans, um Deus que fala. Por isso, o nome de Deus, que é uma forma de O representar, é merecedor de todo o respeito e reverência. Por isso, de novo no Decálogo, vemos a proibição de invocar o nome do Senhor Deus em vão ( ). E Deus é um Deus loquans porque a primeira acção que d’Ele temos registada não foi algo que Ele tenha feito. A Sua primeira acção foi a fala: “Disse Deus” ( ). Deus é, então, Palavra. Não é por acaso que Jesus, que é a imagem visível do Deus invisível ( ), é chamado o Verbo divino ( ). Ou seja, tudo quanto queremos conhecer de Deus, vamos encontrar a resposta na mensagem e no ministério de Jesus.
Ainda quanto à forma de representação de Deus, há no Novo Testamento um texto curioso e paradigmático em relação a Jesus, que O declara como sendo em forma de Deus ( ). É bom não esquecer que o autor desta afirmação é o estudioso e grande conhecedor das Escrituras hebraicas, o apóstolo Paulo, para quem colocar alguém a par de Deus Yavé era algo de impensável.
Como ser absoluto que é, todas as características de Deus são também absolutas. Seria tarefa quase impossível enumerá-las todas. Por isso, citaremos apenas algumas, tendo sempre em mente que elas também se encontram em Jesus, na medida em que, como vimos atrás, Ele é o verbo divino. Na verdade, todas as características e atributos de Deus podem ser condensadas numa única expressão: Deus é santo. Por isso, Isaías declara enfaticamente: “Santo, santo, santo é o Senhor” ( ), expressão essa que é repetida na visão de João em Patmos ( ). Tradicionalmente, define-se santo como algo de magnífico, de intocável, de inconspurcável, de transcendente. Sem negar a verdade dessas definições, podemos considerar um outro sinónimo: perfeito. E perfeito no seu sentido etimológico: algo que está completo, a que nada falta. Recordamos certamente a designação de ”capelas imperfeitas” no mosteiro da Batalha. Elas são imperfeitas não porque tenham algum defeito, mas porque simplesmente não foram concluídas. Ora, neste sentido de perfeito, Deus é santo porque n’Ele nada falta para que seja o que é, porque é o Ser Absoluto, logo, perfeito. Foi nessa qualidade que se revelou a Moisés quando este Lhe perguntou o seu nome. “Eu sou o que sou” foi a resposta ( ). E repare-se que tal como Deus se revela no Antigo Testamento como aquilo que é (Justiça Nossa, dos Exércitos, Bom Pastor, etc.), Jesus também se identifica por aquilo que Ele é: o caminho, a verdade, a vida, a ressurreição, o bom pastor, a porta, etc. Isto mostra-nos que, como Seu seguidor, o cristão deve habitar no domínio do ser e não do ter. Somos o que somos não por aquilo que temos mas por aquilo que somos. Por isso, en passant, como crentes na acção do Paráclito, podemos dizer que os frutos do Espírito revelam o carácter, o ser, do crente em quem o Espírito Santo habita. Por isso, sem descurar os dons, o crente em Jesus deve estar mais preocupado em ser abundante nos frutos do Espírito Santo.
Sendo perfeito, então Deus é-o em tudo quanto diz respeito à Sua relação com o homem, Sua criação. E como o semelhante se aproxima do semelhante, não nos espanta a exigência feita através de Moisés “Sede santos, porque eu sou santo” ( ) e que Pedro repete ( ). Ora, sendo o homem pecador, estando por isso cortado da presença de Deus, é necessário que ele seja vivificado para prestar culto a Deus. Em todo o universo religioso, há a noção de que para o adorador ser aceite por Deus tem de se aproximar com uma oferta sacrificial que, por isso mesmo, passa a pertencer à divindade. Ora, o sacrifício máximo, a oferta última e derradeira, é a entrega da própria vida. Mas como ao dar a sua vida, o homem assume uma dupla morte, a espiritual e a física, fica impossibilitado de ter comunhão com o Criador que, através da recepção da sua oferta, se torna o seu Salvador. Por isso, o homem necessita da oferta de uma vida vicária. Nesse sentido, vemos que é em torno desta realidade que se move e se centra todo o sistema sacramental do Antigo Testamento. O sacrifício surge, então, não tanto para agradar a Deus, mas como caminho para a redenção do homem, da sua compra ao pecado que o afasta de Deus e da comunhão que pode e deve ter com o Criador.
No Antigo Testamento há toda uma elaboração do sistema sacrificial, com as suas exigências e consequências que não vamos reproduzir aqui. A compreensão do papel e do alcance de todo esse sistema sacrificial vicário vamos encontrá-la no magnífico estudo da epístola aos Hebreus que, sobre o pano de fundo desse sistema sacrificial, interpreta todo o ministério e acção auto-sacrificial de Jesus. Quem lê esse tratado aos Hebreus não pode ficar insensível não só face à profundidade desse estudo como também das conse-quências e alcance da obra daquele que João Baptista declara e confessa como o “Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo” ( ). Num judeu, esta expressão “Cordeiro de Deus” e a acção que dele resulta, a “extirpação do pecado do mundo” não são inocentes nem inócuas. O cordeiro era a vítima preferencial dos sacrifícios judaicos. Deveria ser apresentado sem mácula nem mancha ( ) para o sacrifício cruento. Mas há aqui, nesta declaração de João Baptista, uma novidade: enquanto no AT o animal a sacrificar era do penitente (leitura objectiva), aqui, com Jesus, a oferta sacrificial é de Deus (leitura subjectiva). É verdade que também se pode interpretar no sentido de o cordeiro ser oferecido a Deus (como o era), sendo portanto “de Deus”, mas a leitura subjectiva está também correcta e, por isso, é perfeitamente aceitável e a mais correcta, como veremos a seguir. Mas a novidade continua porque, enquanto no AT o sacrifício era contínuo pois cada pecado exigia um novo sacrifício, agora com este Cordeiro de Deus, trata-se de uma oferta uma vez por todas, conforme a magnífica elaboração do estudo da epístola aos Hebreus 9 que conclui pela perfeição do sacrifício de Jesus Cristo. Ora, a perfeição é característica de Deus, o que significa que se o Cordeiro é de Deus, então esse Cordeiro é perfeito, é divino. Sendo o Cordeiro de Deus a pessoa de Jesus, a conclusão lógica é pela perfeição de Cristo que assume assim um carácter divino. Sendo o sacrifício do Cordeiro um sacrifício perfeito, isso significa que foi suficiente e bastante, na medida em que, enquanto no AT o sacrifício cobria o pecado, neste o sacrifício apaga o pecado.
A finalidade do sistema sacrificial no AT era conseguir que se restabe-lecesse a relação entre Deus perfeito e, logo santo, e o homem imperfeito, logo pecador. O Novo Testamento vai mais longe e declara que a finalidade do sacrifício do Cordeiro de Deus não se fica apenas pelo restabelecimento da relação entre Deus e o homem, mas proclama a transformação do homem de pecador perdido e desgarrado em filho de Deus ( ). Deste modo, através de uma oferta do próprio Deus que se identifica com o Homem na sua qualidade de ofertante de um sacrifício, a justiça e a santidade de Deus encontram-se, encerrando nesse círculo todos quantos se identificam com esse sacrifício que o próprio Deus ofereceu.
Temos falado até agora de uma das entidades, Deus, que, mais acima di-zíamos ser importante e essencial abordar e analisar para contextualizar e perceber o alcance e profundidade da teologia da cruz. A outra entidade é o Homem, de quem era inevitável indicarmos algumas das suas características ao abordarmos a pessoa de Deus. À semelhança de Deus, o homem é um ser extremamente complexo. Embora com uma identidade e unidade estrutural, tanto física como mentalmente, é grande a sua diversidade tanto em sentido individual como grupal. De facto, podemos dizer que não há dois indivíduos rigorosamente iguais tal como também não há duas sociedades ou culturas idênticas entre si a cem por cento. E, no entanto, tanto a nível individual como grupal, vamos encontrar anseios e preocupações idênticas. Por outro lado, podemos dizer que o homem é tanto fruto do meio como o meio é fruto do homem. Ou seja, o homem não se limita a ser um agente passivo, mas influencia o meio ambiente em que vive, pelo qual também se deixa influenciar. Houve um filósofo que declarou que o homem é ele e a sua circunstância. Por todas essas razões, ao abordar o homem, temos sempre de levar em conta toda essa complexidade e não tentar aplicar a todo e cada um uma mesma fórmula como se de um robot ou uma máquina se tratasse. Vamos encontrar esta ca-racterística descrita nas páginas da Bíblia. Tanto os profetas como o próprio Jesus embora com uma mensagem e uma intervenção universalistas, isto é, destinadas a todos os homens sem excepção, abordaram o homem individual segundo a sua especificidade. Poderíamos resumir esta característica pela frase: cada homem é um homem, o que acaba por traduzir o velho lugar-comum da unidade na diversidade.
Apesar dessa complexidade e diferenciação individuais e grupais, o ho-mem, tanto individual como colectivamente, é um indivíduo. Esta palavra – in-divíduo – é interessante porque significa aquilo que é uno, não divisível. O facto de uma entidade ser composta por partes, por vezes distintas, não impede que seja considerada indivisível. De certo modo, é essa forçosamente a característica de um ser que se move na dimensão do relativo. E, no entanto, o facto de viver na dimensão do relativo não impede o homem-ser-complexo-relativo de, por assim dizer, ter a dimensão do absoluto despejada no seu ín-timo. De facto, a tendência de superação, de procura do mais além, da busca do transcendente é algo que caracteriza o homem. Vemos todo esse trajecto ao longo da história da humanidade. O Génesis descreve de forma magnífica esta realidade, ao afirmar que, na criação do homem, Deus declarou ir criá-lo à Sua imagem, conforme a Sua semelhança ( ).
O carácter de ser que se move na dimensão do relativo faz com que o homem, por natureza, seja incompleto e esteja dependente do seu exterior ou de algum outro ser para ser aquilo que é. O homem entra em diálogo com a sua exterioridade e é através desse diálogo que se vai construindo, numa procura incessante de superação. Dessa procura dá conta o salmista em diversas das suas composições em que refere que a sua alma descansa, confia ou espera em Deus ( ), expressões que surgem com outro articulado como o refúgio, a habitação, as asas de Deus, de que o Salmo 23 é paradigmático ao declarar que nada lhe faltará no Senhor que o faz deitar (em sossego), o guia e o orienta ( ). Esta realidade também não escapa à análise do autor da epístola aos Hebreus quando fala do repouso que o crente encontra em Deus ( ). O repouso é também característica que vamos encontrar em Deus, conforme declara o Génesis, dizendo que, depois de ter criado o Universo, Deus repousou ( ). E é interessante notar que esta ideia de repouso vai surgir no Budismo, embora com outro articulado, partindo de outros pressupostos e chegando por isso mesmo a um resultado diferente daquele que defende o monoteísmo cristão. Falamos do conceito de nirvana que, no Budismo, é o estado de completo repouso da consciência, em que o homem consegue por fim libertar-se de todo o ciclo do samsara, o fluxo incessante de renascimentos. Sem entrarmos na discussão deste conceito e/ou da sua comparação mais exaustiva com a teologia cristã, podemos salientar que, embora a procura do repouso tenha de partir sempre do homem, no Cristianismo esse repouso vem de cima, ou seja, é potenciado por Deus, enquanto no Budismo, vem de baixo, ou seja, é potenciado pelo homem, na medida em que, no Budismo, Deus está ausente por ser irrelevante. Ou, em termos mais técnicos, a proposta do Cristianismo vai da transcendência para a transcendência passando pela imanência, enquanto no Budismo é da imanência para a transcendência passando pela imanência.
Há, então, no homem algo de divino ou, melhor dizendo, de natureza divi-na, o que explica toda a sua tentativa de superação existencial, motivando-o a elevar-se acima dos limites estreitos do relativo. Dir-se-ia que a natureza absoluta de Deus está aprisionada numa redoma frágil e contingente e dela procura libertar-se. Nos vários diálogos travados entre Jesus e muitos dos Seus interlocutores, verificamos que embora com vivências e estruturas psico-espirituais distintas, todos eles escutaram as propostas que Ele lhes apresentava. O tipo de respostas poderia variar, mas todos quantos respondiam positivamente revelavam esse anseio mais ou menos patente pelo absoluto. Vejam-se os casos de Nicodemos e da samaritana, de Marta e Maria e dos discípulos ( ). Até mesmo os que, como o mancebo de qualidade, consideravam excessivas as posições do mestre galileu ( ) não se furtaram ao diálogo.
Do ponto de vista da teologia bíblica, a essa característica validada pela Bíblia, junta-se uma outra já referida e que vai balizar todo o relacionamento do homem com o absoluto de Deus – a sua condição de ser imerso no pecado. Há, naturalmente, várias definições de pecado, algumas nada consentâneas com a realidade bíblica e muitas delas em livre curso em muitas igrejas. Isso talvez se deva ao facto de a Bíblia não apresentar uma definição de pecado mas de se limitar a induzir a ideia de ele ser uma transgressão à vontade e aos estatutos de Deus, colocando assim o homem em rota de colisão com a divindade de quem se encontra distante por via desse mesmo pecado. Seja qual for a definição de pecado que as diversas comunidades cristãs possam apresentar, todas elas produzem um efeito comum – a transmissão da noção de culpa do homem pelo seu afastamento da vontade de Deus, que o leva a deixar de ter comunhão directa com a divindade. Por via do pecado, o homem vive um drama espiritual intenso – o seu íntimo, onde tem inscrita uma matriz de origem divina, que anseia pela comunhão com o seu Criador, o que lhe permite trazer descanso e sossego, sente-se cortado dessa mesma comunhão e tudo fará e faz para que essa brecha que se abriu na comunhão entre Deus e o homem seja ultrapassada com sucesso, segurança e certeza.
Este é o drama que vamos encontrar em todos os quadrantes e latitudes, em todos os tempos e locais de habitação do homem. Seja qual for o posicio-namento em que o homem se coloque na sua relação com o divino, em todas as expressões de religiosidade encontramos esta necessidade de ultrapassar a ruptura entre o nosso mundo do relativo e o absoluto de Deus. Como atrás mencionámos, o sistema sacrificial do Antigo Testamento aponta o caminho da restauração – a oferta de uma vítima vicária inocente, sem mancha ou defeito, por via da qual o penitente pode finalmente entrar no descanso da divindade.
Ora, é sobre este pano de fundo que se movimenta toda a teologia da cruz. Nela foi oferecido o sacrifício de uma vítima pura, inocente e sem man-cha ou defeito. E para reforçar a realidade de se tratar de uma expiação plena do pecado, o altar em que esta vítima foi oferecida foi uma cruz, instrumento de tortura dos mais atrozes e que, na teologia veterotestamentária, tornava maldito tudo quanto nela fosse colocada, conforme a reflexão de Paulo ( ) sobre o texto de partida em Deuteronómio que declarava ser maldito todo aquele que fosse exposto no madeiro ( ). Na brilhante exposição de Paulo aos Gálatas, epístola que juntamente com a de Hebreus deveria ser de leitura obrigatória para todo o cristão, aprendemos que aquela vítima (Jesus) que era inocente, pura e sem defeito, se fez maldição, entenda-se pecado, por todos quantos aceitarem esse sacrifício. Desse modo, em última instância, em termos teológicos, era o próprio pecado que estava a ser entregue a Deus para que Ele o afastasse e eliminasse do existir humano. Esse é o entendimento de Paulo, ao declarar que Cristo se fez pecado por nós ( ), o que indica, como atrás dizemos, que a cruz estava a receber o pecado em toda a sua extensão e em toda a sua latitude. Ou seja, em Cristo, na cruz, o homem está a entregar aquilo que o afasta da comunhão com Deus. A cruz esvazia o pecado do existir humano, da alma humana que, assim, despojada daquilo que a impede de ter comunhão com Deus pode, através deste sacrifício, entrar livremente na presença de Deus, com a certeza de, enquanto permanecer à sombra do Calvário, não estar mais conspurcada pelo pecado. Depois de rememorar a acção, o carácter e a função do sacrificado Jesus, o autor da epístola aos Hebreus grita de triunfo que podemos agora chegar com confiança junto do trono da graça de Deus ( ).
Há, assim, uma novidade no Cristianismo em relação ao Judaísmo – sem rejeitar toda a revelação anterior a Cristo, no Cristianismo há um sacrifício em tudo idêntico aos sacrifícios expiatórios veterotestamentários, mas em que o pecado morre com a própria vítima e em que a vítima acaba por ser ao mesmo tempo vítima e sumo sacerdote. Cristo surge então com esta dupla característica ou natureza – vítima sacrificial e sumo sacerdote. No AT o sumo sacerdote entrava uma vez por ano no Santo dos Santos a oferecer um sacrifício por todos os pecados confessados e não confessados, os declarados e os omitidos ( ). En passant, é interessante notar que o sumo sacerdote tinha de se banhar num banho ritual para se purificar ( ) antes de poder oficiar no Lugar Santíssimo. De igual modo, Jesus, como nosso sumo sacerdote também passou por este banho ritual purificador quando foi baptizado por João Baptista ( ). O facto de Cristo ser em simultâneo vítima e sumo sacerdote é, só por isso, tema de um tratado de teologia. Limitemo-nos a apontar uma ideia-força. Agrupando em si essas duas características que teologicamente surgem como tendo natureza e função distintas, para não dizer opostas e até antagónicas, Jesus surge como o verdadeiro elo entre o Deus santo e o homem pecador. Como cordeiro sacrificial, assume não apenas a figura do homem em si, mas de tudo quanto ele tem de negativo, impeditivo de uma comunhão plena com Deus. Como sumo sacerdote, é o primeiro entre todos os sacerdotes, o que lhe confere singularidade. Na sua qualidade de sacerdote, a pessoa pura que surge como representante de Deus no acto sacrificial, Jesus une em si os dois pólos desta relação quebrada no jardim do Éden, garantindo assim ser não UM sacrifício, mas O sacrifício por excelência. E rematando todo este acto com selo de qualidade e garantia, o cordeiro em sacrifício é o cordeiro DE Deus.
Este sacrifício feito uma vez por todos dispensa qualquer acto da parte do penitente e do pecador visando por meio de um qualquer sacrifício de qualquer natureza obter da parte de Deus a graça de lhe ser permitido entrar na Sua presença. A cruz dispensa o pecador de, a cada pecado, apresentar um sacrifício redentor. Essa obrigação foi cumprida uma vez por todas por aquele que, sendo o Cordeiro de Deus, foi enviado por Deus para, por meio do Seu sacrifício, redimir por completo toda a raça humana. Por isso, a epístola aos Hebreus declara triunfalmente e sem sombra para dúvidas que este sacrifício singular é suficiente para, por toda a eternidade, santificar o pecador ( ). Isso não significa, porém, que liberto dessa obrigação, o crente possa viver a seu bel-prazer, ignorando todos os estatutos que Deus coloca perante o homem e cujo cumprimento e observação são indispensáveis para que a comunhão com Deus não entre em ruptura. Agora, o cristão vive em novidade de vida ( ), o que significa que deve apresentar no seu viver frutos de uma vida transformada e em consonância com o querer de Deus. E para que o cristão não diga que se sente incapaz de o conseguir, Deus, conforme promessa de Jesus, coloca no seu interior o Espírito Santo ( ) permitindo-lhe assim produzir fruto agradável a Deus ( ).
Por tudo quanto atrás dizemos, concluímos que todo o cristianismo, quer em termos colectivos, quer em termos individuais, tem de girar sempre e inescapavelmente, em torno do sacrifício de Cristo para que, por meio dessa acção, os seus membros possam ser beneficiários de toda a herança de que o sacrifício no Calvário os fez herdeiros. Reunião cristã que esteja arredia dessa verdade não passa de uma socialização de entretenimento. Cristianismo em que essa verdade esteja ausente nem caricatura é de cristianismo, mas a prostituição de todo o plano de Deus para a redenção da humanidade. Cristia-nismo em que os seus seguidores, sejam líderes, sejam leigos, se arroguem à reivindicação de alguma parcela de glória pela sua acção não passa de associ-ação de malfeitores e ladrões.
A cruz representa, pois, salvação e salvação vinda de Deus sem o contri-buto humano. Por isso, é uma obra perfeita e absoluta, porque Deus, sendo perfeito e absoluto, coloca a Sua marca em toda a Sua obra. Mas é uma sal-vação ao mesmo tempo colectiva e universal mas também individual. Universal, na medida em que está acessível a todos sem excepção. Individual, porque cada um tem de assumir sozinho o compromisso de passar a ter comunhão com Deus, na medida em que Deus respeita a individualidade do homem, convidando-o a, face a face, decidir-se pelo caminho da reconciliação agora definitivamente franqueado. O Apocalipse retrata essa realidade de uma forma magistral e sublime ( ).
No sacrifício há dor, a dor do animal que é morto. Jesus, como ser sen-ciente, isto é, que sente, experimentou dor e dor atroz porque, como dizemos mais atrás, a cruz era instrumento de tortura dos mais atrozes, dos mais do-lorosos. Sendo o Cordeiro de Deus, isso significa que Deus está presente na nossa dor e, através dela, podemos ver, embora nem sempre sentindo ( ) que o Deus salvador está em nós ( ), guiando-nos por aquilo que consideramos ser o nosso vale da sombra e da morte ( ). Como diria Lutero, embora Deus oculto porque Ele é conhecido apenas porque se revelou, isto é, retirou o véu que O ocultava, Deus manifesta-se nas coisas visíveis. Embora sendo o Deus das Alturas, de que o cântico dos anjos aos pastores se faz eco ( ), Deus mani-festa-se no mais profundo, como reconhece o salmista ( ). Ele manifesta-se no mais profundo da nossa dor, da nossa ignomínia, da nossa insuficiência. E fá-lo através daquele que é Emanuel, a oferta sacrificial perfeita. E embora possamos sofrer em resultado da nossa decisão de seguir Cristo, isso não significa nem que iremos forçosamente sofrer nem que tenhamos de procurar o sofrimento para nos chegarmos a Deus em busca de redenção. Esta está já garantida uma vez por todas e não precisamos de procurar a dor e o sofri-mento porque o Salvador levou já sobre si todas as nossas dores ( ). Mas se a dor vier em consequência da nossa adesão a Cristo, por muito sofrimento que ela possa causar, só temos de recordar ao nosso coração e à nossa cir-cunstância que do Alto vem o socorro ( ), porque o Alto conheceu e experi-mentou a nossa baixeza.
Mas a cruz revela também o paradoxo do plano salvífico de Deus. Na cruz, aparentemente, não podemos ver Deus, tanto mais que, como referimos já, Jesus exclamou: “Deus meu, Deus meu porque me desamparaste?” Ou seja, Deus está ausente, oculto da cruz. E, no entanto, é este Deus oculto que está presente em toda a extensão do sacrifício e do sofrimento de Cristo. Podemos avançar, em tentativa de explicação que Deus está, pelo menos aparentemente, ausente porque na cruz está não o Filho Unigénito, mas o pecado negro e hediondo. O que reforça o paradoxo porque, nessa linha de pensamento, o Deus santo passa pelo pecado, atravessa o pecado, mergulha no pecado para se chegar até ao pecador e resgatá-lo à sua condição de filho amado de Deus. O que faz com que Deus deixe de estar oculto DA cruz, para estar oculto NA cruz. Tal como Deus baixou do Alto à nossa profundeza, assim nós também, temos de subir ao alto através da nossa baixeza sabendo que em todo esse processo, em toda essa caminhada, no túnel escuro do pecado estamos resguardados por aquele que abriu um caminho seguro para o nosso ser.
Ainda citando Lutero, “a cruz põe à prova todas as coisas”. Ou seja, face a qualquer teoria ou doutrina de salvação de origem estritamente humana, a cruz manifesta-lhe as fragilidades e surge como o único e seguro caminho porque, como paradoxo de Deus, enfrenta os paradoxos do existir humano. Porque quando seguimos outro caminho que não o da cruz, estamos a dar pri-mazia exclusiva ao intelecto e à vontade humana, remetendo para segundo plano a via segura de conhecer Deus através da revelação em que Ele próprio se empenha e compromete. Quando abraçamos a revelação de Deus, ela valoriza e potencia todas as faculdades humanas, incluindo a vontade e o intelecto. Ou seja, estes só podem pretender atingir o seu esplendor máximo quando andam de mãos dadas com a revelação da cruz, que é a revelação máxima de Deus ao homem e revelação final de Deus no tocante ao plano de salvação.
Por todas as razões atrás apresentadas e por outras que não abordámos, podemos concluir com Paulo, confessando e reconhecendo que “a loucura de Deus é mais sábia do que os homens e a fraqueza de Deus mais forte do que os homens” ( ). A Deus toda a glória.
SAC, 20.Abril.2018

a.C. – d.C.

a.C. – d.C.

SamuelPinheiro 5

 A História divide-se entre antes e depois de Cristo. Biblicamente podemos dizer que Cristo é a chave da História tanto no antes como no depois. O antes e o depois é definido pela presença em carne e osso, na forma humana, de Deus entre nós. Pode até acontecer que um dia um qualquer anticristo imponha que o tempo se conte de modo diferente. Nesta corrente de acontecimentos em que tudo o que afirme Jesus Cristo é considerado uma afronta para o relativismo e pluralismo religioso tudo pode acontecer, por mais louco e absurdo que possa parecer. Mas na eternidade, antes de todas as coisas existirem Jesus é a chave da História. Ou seja em Jesus temos Deus e o Homem na terra – 100% Deus e 100% Homem. Um mistério certamente, mas na natureza e na essência é isso que sucede. Não temos duas pessoas ou duas personalidades, mas uma só Pessoa e uma só Personalidade. Essa Pessoa e essa Personalidade é Deus connosco.
A realidade é que esta verdade no tempo é apenas o reflexo da verdade eterna. Tudo o que tem a ver com o plano divino e com o Seu mover na História, existe desde sempre na eternidade. Antes da fundação do mundo o Cordeiro de Deus – Jesus Cristo, foi destinado para morrer a nosso favor conforme nos informa o Espírito Santo pelo apóstolo Pedro na sua primeira carta: “Saibam que foram resgatados daquela vida inútil que tinham herdado dos antepassados. E não foi pelo preço de coisas que desaparecem, como a prata e o ouro, mas pelo sangue precioso de Cristo, como o de um cordeiro sem mancha nem defeito. Ele tinha sido destinado para isso, ainda antes da criação do mundo, e manifestou-se nestes últimos tempos para vosso bem. Por meio dele crêem em Deus, que o ressuscitou dos mortos, e o glorificou. E assim a vossa fé e esperança estão postas em Deus.” (1 Pedro 1:17-21 – BPT).
Na mesma linha de revelação o apóstolo Paulo fala a respeito de todos os que crêem em Jesus, e que segundo o eterno propósito divino foram escolhidos para uma nova vida segundo a Sua natureza de santidade e amor. “Pois, antes de o mundo existir, ele escolheu-nos para juntamente com Cristo sermos santos e irrepreensíveis e vivermos diante dele em amor. Ele destinou-nos para sermos seus filhos por meio de Cristo, conforme era seu desejo e vontade, para louvor da sua graça gloriosa que ele gratuitamente nos concedeu no seu amado Filho.” (Efésios 1:4-6 – BPT).
O amor das três pessoas da Trindade será contemplado e usufruído na sua plenitude pela nova humanidade recriada em Jesus. Esse amor preenche de modo absoluto a eternidade no absoluto divino, e nós estamos vocacionados a contemplá-lo e a vivenciá-lo: “Pai! Que todos aqueles que me deste estejam onde eu estiver, para que possam contemplar a glória que me deste, porque tu amaste-me antes que o mundo fosse mundo.” (João 17:24 – BPT).
O nascimento de Jesus a que se refere o Natal, é o acontecimento na História do que desde antes da criação de todas as coisas Deus tinha determinado que haveria de ser. Deus não foi surpreendido pela decisão do homem de romper com uma vida e natureza em conformidade com a Sua natureza e essência. O homem preferiu a ciência do bem e do mal e ainda hoje se debate com toda a sorte de frutos amargos, envenenados e podres que daí decorrem. O homem foi criado para viver no amor divino, e não na dialética do bem e do mal.
Um dia destes o tempo como o conhecemos atualmente, marcado pela morte, sofrimento, dor, miséria, fome, guerras, violência, iniquidade, corrução e imoralidade, desaparecerá por completo, e um novo tempo cheio do que a eternidade divina representa será instaurado. Deus habitará com os homens e até os instrumentos de guerra serão transformados em utensílios de lavoura, a ovelha pastará com o leão e a criança brincará com a áspide. Nesse dia céu e terra serão uma mesma realidade.
O plano divino consiste em reunir tudo em submissão a Jesus Cristo. “Deu-nos a conhecer o mistério da sua vontade e o plano generoso que tinha determinado realizar por meio de Cristo. Esse plano consiste em levar o Universo à sua realização total, reunindo todas as coisas em submissão a Cristo, tanto nos Céus como na Terra. Foi também em Cristo que fomos escolhidos para sermos herdeiros do seu reino, destinados de acordo com o plano daquele que tudo opera conforme o propósito da sua vontade. Louvemos, portanto, a glória de Deus, nós que previamente já pusemos a nossa esperança em Cristo.” (Efésios 1:9-14 – BPT). Natal é Deus tornando-se parte da humanidade para a redimir e resgatar, trazendo-a de volta ao Seu amor. O amor triunfa radicalmente na vida e morte de Jesus, bem como na Sua segunda vinda para estabelecer novos céus e nova terra. Celebrar o Natal é celebrar esta vitória na nossa vida e na História!
Samuel R. Pinheiro
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