AS CREDENCIAIS DO MESSIAS

As Credenciais do Messias

João 7:10-29

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Jesus respondeu-lhes e disse: “A minha doutrina não é minha, mas daquele que me enviou. Se alguém quiser fazer a vontade dele, pela mesma doutrina conhecerá se ela é de Deus ou se eu falo de mim mesmo.” (João 7:16-17)

 

Esta secção caracteriza-se tanto pela argumentação de Jesus face à Sua missão e à natureza do Seu papel na revelação divina, na Sua qualidade de Messias como pelo desconforto que as Suas palavras produzem na assistência, amarrada aos preconceitos criados pelo ensino oficial da tradição religiosa.

Nesta argumentação, Jesus põe em causa os fundamentos de todo um ensino que distorcia a intenção fundamental das Escrituras e da Revelação em que esse mesmo ensino se dizia basear. O resultado dessa argumentação redunda na consolidação das posições de aceitação ou rejeição da Sua doutrina por parte a audiência. Mas aceitando-O ou rejeitando-O, em todos a mensagem de Jesus e a Sua argumentação produzem espanto e estupefacção. Disso é testemunha a interrogação dos assistentes: “Como sabe este letras, não as tendo aprendido?” (v. 15).

Como vimos, Jesus surge incógnito na festa (v. 10). No entanto, devido a ter-se tornado uma figura conhecida, fruto das Suas intervenções anteriores, todos esperavam que a qualquer momento aparecesse (v. 11). Ao mesmo tempo, definem-se as opiniões a Seu respeito. Podemos detectar três atitudes – a das autoridades que queriam ver-se livres d’Ele e, de entre o povo, os que O consideravam bom, aceitando-O, e os que defendiam que era um enganador, rejeitando-O (v. 12).

Presumivelmente, o autor deste evangelho ao referir que Jesus foi incógnito à festa a fim de, ao aparecer, surgir inesperadamente sem que ninguém suspeitasse quer de onde vinha, quer do momento em que se manifestaria tinha a intenção de O realçar como Messias. É que entre os Judeus corria a ideia de que o Messias, antes da sua apresentação majestosa e gloriosa, apareceria de súbito em público, sem aviso, sem que ninguém suspeitasse desse momento. Ora, ao ir incógnito e ao apresentar-se de surpresa no Templo, a ensinar, isso podia ser interpretado como um sinal da Sua messianidade. João dá testemunho desse facto no versículo 27: “Quando vier o Cristo, ninguém saberá de onde ele é.” Esta declaração está ligada ao espanto provocado pelo ensino público no Templo, numa situação em que se sabia da decisão das autoridades de O matarem (v. 25). Ora, falando com tanto à vontade e livremente, não admira a hipótese de os responsáveis religiosos se terem convencido de que Ele era o Messias (v. 26). Mas isso contradizia todas as convicções tradicionais: não se sabia de onde vinha o Messias, mas todos sabiam de onde provinha Jesus. O Seu trajecto era conhecido e todos sabiam que Jesus ia e vinha da Galileia. O próprio Jesus confirma isso: “Vós conheceis-me e sabeis de onde sou.” (v. 28) Como poderia então ser Ele o Messias?

Por aqui, vemos que a presença e identidade de Jesus provocavam polémica e não produziam consenso. A essa falta de consenso e a essa estupefacção, Jesus vai contra-argumentar com o Seu pensamento face às práticas religiosas dominantes e com a verdadeira natureza da Sua missão, da Sua função e do Seu ministério, tanto em palavras como em actos.

Quando os Judeus se interrogam quanto ao facto de Ele saber tantas coisas sem as ter aprendido (v. 15), estão a exigir-Lhe credenciais, ou seja, querem saber em nome de quem ensina o que ensina, querem saber de onde Lhe vem tal sabedoria. Pelo menos reconhecem que a mensagem de Jesus os obriga a pensar, comparando-a com o ensino tradicional. Há implicitamente o reconhecimento de que há algo de novo no ensino de Jesus, talvez até algo de positivo.

A resposta de Jesus não deixa de ser surpreendente e de ser paradoxal. Começa por primeiro afirmar a Sua subordinação a alguém que Lhe é superior, ao declarar-se como mero anunciador de quem O enviara e a quem reconhece a autoria da Sua mensagem. Assim deve ser a atitude do pregador do Evangelho, que não passa de um arauto de uma mensagem que não é sua e que o transcende.

Mas ao mesmo tempo, Jesus reconhece que se move em autoridade porque precisamente não fala de si mesmo nem busca a glória pessoal, mas a glória de quem O enviou. A força e a autoridade do arauto não estão nele mas reflectem-se no seu acto de obediência ao ser aquilo para que foi mandatado – arauto. No versículo 16, esta verdade é afirmada de modo muito claro: “a minha doutrina não é minha mas daquele que me enviou.

No versículo 17, Jesus propõe um teste pragmático para determinar a fonte, a origem da autoridade e o valor de uma mensagem anunciada. A parte inicial do versículo 17 pode ter duas leituras, dependendo de determinar a quem se refere a expressão “vontade dele.” A quem se refere este “dele”? À vontade do arauto ou à vontade de Deus? Pela forma como todo o versículo está construído, parece-nos que a expressão se refere à vontade de Deus, pelo que o sentido da frase e por extensão de todo o versículo fica mais claro se o lermos do seguinte modo: “quem estiver disposto a fazer [conhecer] a vontade de Deus, só tem de analisar a minha doutrina para saber se ela vem de Deus ou se é fruto dos meus pensamentos.

Ou seja, toda a doutrina proclamada em nome de Deus tem de mostrar inequivocamente que não exalta o seu mensageiro mas sim a pessoa de Deus e está de acordo com o seu carácter manifestado na revelação divina. Esse é o teste pelo qual toda a doutrina tem de passar. Mas este escrutínio a que toda a doutrina está sujeita exige uma relação pessoal com Deus e não pode estar dependente das interpretações a que as diversas escolas submetem a Revelação divina. Como disse alguém, Deus não é uma fórmula, mas presença e comunhão, com quem O busca, disposto a submeter-se à Sua vontade. Quando este contacto directo com Deus se rompe, desaparece a comunhão e Deus transforma-se em fórmula, sujeito à ideologia, aprisionado no universo estreito do pensamento mera e exclusivamente humano. Ao transformar-se em ideologia, a Revelação divina, que é a via para a comunhão com Deus, perde o seu carácter de sinal e transforma-se num simples código de leis castradoras, desumanas e desapiedadas, aplicadas com todo o rigor por quem se afirma como o único intérprete do carácter e da vontade de Deus.

Esta argumentação de Jesus surpreende e deixa sem resposta os Seus interlocutores, tanto mais que, a partir do versículo 19, centra a conversa na incompreensão e no desrespeito da Lei de Moisés por parte dos Seus ouvintes e da classe religiosa em geral. Jesus é muito claro ao afirmar que apesar de terem recebido a Lei de Moisés, os Judeus não a respeitam.

E não a respeitam porquê? Porque Moisés lhes deixou duas instituições centrais que acabam por caracterizar todo o judeu piedoso: a guarda do sábado e a circuncisão. Na realidade, a circuncisão surge antes da Lei, com Abraão. Moisés apenas lhe dá continuidade. Todo o judeu tinha de ser obediente ao cumprimento dessas duas instituições. Mas a Lei era clara ao dizer que a circuncisão era praticada ao oitavo dia de nascimento, o que implicava que ela poderia ocasionalmente ser executada no sábado, sobrepondo-se assim à obrigação de respeitar o sábado. Por outro lado, a própria Lei permitia que, em caso de perigo de vida, uma pessoa poderia ser salva, mesmo em dia de sábado. É com base nesta realidade que Jesus justifica ter curado um homem num sábado, referência sem dúvida à cura do paralítico de Betesda, registada no capítulo 5:10. Jesus demonstra assim que em tudo respeitou a Lei e que em momento algum a infringiu. Aquilo que Ele critica e contra o qual se levanta é o facto de os dirigentes religiosos terem transformado um preceito de origem divina em instrumento de repressão e de escravidão, adulterando por completo a intenção de todo o preceito divino que é trazer liberdade aos cativos. Fora por isso que logo no início do Seu ministério, Jesus se identificou como libertador, ao considerar que era o cumprimento da profecia de Isaías que Ele lera na sinagoga de Nazaré (Lucas 4:7-21): “O Espírito do Senhor é sobre mim… enviou-me a apregoar liberdade aos cativos, a pôr em liberdade os cativos…”

A revelação e a presença de Deus na vida do ser humano são libertadoras e nunca escravizadoras. Rejeitemos e desconfiemos de toda a doutrina que em nome de um falso evangelho traz opressão à alma humana.

O desconhecimento desta verdade levou Jesus a erguer a voz, a clamar, a gritar na própria sede do poder religioso, resumindo o essencial do que dissera até então: “Eu não vim de mim mesmo, mas aquele que me enviou é verdadeiro, o qual não conheceis. Mas eu conheço-o porque dele sou e ele me enviou.” (vv. 28,29). Há aqui um paralelismo com a sabedoria em Provérbios 1:20:21: “A suprema sabedoria altissonantemente clama de fora; pelas ruas levanta a sua voz. Nas encruzilhadas, no meio dos tumultos, clama, às entradas das portas e na cidade profere as suas palavras.” João apresenta Jesus como a sabedoria máxima de Deus, ensinando. Todo o ensino é um acto libertador e de amor porque nos abre o entendimento para percebermos e compreendermos toda a profundidade dos intentos divinos. Por isso, mais à frente (João 8:32), Jesus podia anunciar: “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará.

Com todo este posicionamento, Jesus demonstra à multidão que, ao contrário do que era crença geral, o Messias seria reconhecido não por um aparecimento repentino e inesperado, não seria reconhecido pela sua procedência mas por ser o enviado de Deus e portador do Espírito que liberta toda a alma cativa e traz consolação e refrigério ao contrito de coração. Ele era verdadeiramente o Messias. Ele é o nosso guia e salvador. A Ele toda a glória”!

C. Ourique, 19.Julho.2022

O DESAFIO DOS IRMÃOS DE JESUS

O Desafio dos Irmãos de Jesus

João 7:1-9

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E depois disto, Jesus andava pela Galileia e já não queria andar pela Judeia, pois os Judeus procuravam matá-Lo. E estava próxima a festa dos Judeus, a dos tabernáculos. (João 7:1-2)

Este capítulo 7 de João integra o chamado “Período de Conflito”, em que a oposição entre o ministério de Jesus e as autoridades religiosas assume um carácter extremamente forte, de que é testemunha a decisão de essas mesmas autoridades O quererem silenciar por todos os meios possíveis.

É também neste período que se vão definindo entre o povo a aceitação e a rejeição da Sua mensagem. Isso reflecte-se no facto de o Seu ensino estar carregado de desafios a uma tomada pessoal de decisão, de uma ambiguidade de interpretação do que anunciava e de afirmações que deixam a assistência sem resposta.

Integram este período dois grandes milagres: a cura do cego de nascença (cap. 9) e a ressurreição de Lázaro (cap. 11). Veremos mais em pormenor cada uma dessas situações.

O início deste período localiza Jesus na Galileia (v. 1 – Depois disto, Jesus andava pela Galileia…), junto da família e num ambiente que não lhe era abertamente hostil. Pela leitura dos vv. 4 e 5, ficamos até com a impressão de que o ambiente geral seria de indiferença (porque nem mesmo os Seus irmãos criam n’Ele.)

Toda esta secção do evangelho de João ocorre por ocasião da Festa dos Tabernáculos (v. 2 – E estava próxima a festa dos Judeus, a dos Tabernáculos.). A Festa dos Tabernáculos era uma das festas mais importantes do calendário judaico e atraía multidões a Jerusalém (Levítico 23:33-43). Ocorria no Outono, no final das colheitas e fora instituída para relembrar aos Judeus o tempo de peregrinação no deserto vivido pelos seus antepassados durante a epopeia do êxodo, sob a liderança de Moisés. Para não se esquecerem das provações que os antepassados experimentaram nesse período, os Israelitas eram convidados a, durante esses dias de festa, viverem em tendas, com o seu carácter transitório. A Festa dos Tabernáculos apresentava um significado profundo, pois relembrava aos participantes quão transitória e precária era a vida humana. Recordava-lhes que, à semelhança dos Israelitas saídos de uma terra que não era a sua pátria, a nossa vida neste mundo, que não é também a nossa pátria, é uma caminhada para uma situação na qual podemos dizer: “Durante todo o meu percurso fui dirigido por Deus, a Quem me sujeitei, obedecendo-Lhe!”

Mas a Festa dos Tabernáculos tinha uma outra relevância para os Israelitas. Como sociedade eminentemente agrícola que era, os Israelitas estavam dependentes do que a terra produzia. Assim, ocorrendo no Outono, após as colheitas, a Festa recordava-lhes o sustento que em última instância provinha da beneficência de Deus, uma vez que fora Jeová que lhes prometera uma terra onde habitar e prosperar. Era assim uma festa com um duplo significado, carregada de motivos da maior alegria.

Sendo uma época em que Jerusalém estava repleta de gente das mais diversas origens, não admira que os irmãos de Jesus O desafiassem a deslocar-se até à capital para que, conforme as suas palavras, “os Seus discípulos vissem as obras que Ele fazia.) (v. 3).

Parece-nos haver um claro tom de desafio nesta sugestão, até porque, como João informa, “nem mesmo os Seus irmãos criam n’Ele.” (v. 5)

Para quem tem a certeza, como Jesus tinha, de ter sido enviado por Deus e de possuir uma mensagem de transformação era tentador responder afirmativamente a um tal desafio.

E esta é uma primeira lição para todo o obreiro de Deus, para todo o proclamador do evangelho. Tendo a certeza do poder e do valor da mensagem do evangelho, o anunciador do mesmo pode considerar que deve aproveitar o desafio que lhe façam de ir à grande cidade, à grande festa que tanta gente atrai. Que oportunidade magnífica, poderá ele pensar!

Mas a decisão e a atitude de Jesus foram noutra direcção e a Sua resposta pode surpreender o mais incauto. Jesus responde, no v. 6, “que ainda não era chegado o Seu tempo.” E baseado nessa realidade declara que não se deslocará à cidade, conforme lemos no v. 8 (…eu não subo ainda a esta festa, porque ainda o meu tempo não está cumprido.) Ora, lendo a continuação do relato joanino, verificamos que mais tarde Jesus acaba por ir à festa, mas de forma oculta. Vai incógnito, sem chamar a atenção para si mesmo (v. 10).

A uma primeira leitura descuidada, tudo isso parece estranho e a atitude de Jesus surge como inconsistente e contraditória. Mas lendo com mais atenção, verificamos que não é assim.

Jesus sabia que, em resultado das Suas intervenções anteriores, suscitara muita controvérsia e animosidade por parte das autoridades religiosas, tanto através dos sinais operados como da mensagem que punha em causa o ensino oficial rabínico. Muito provavelmente não desconhecia que houvesse quem o quisesse matar, conforme nos revela João (v. 1).

Ora, tendo vindo com uma missão especial, de que tinha pleno conhecimento, Jesus sabia que tinha de cumprir até ao fim o Seu ministério, sem se desviar do plano que Deus estabelecera para Si. Então, teria de agir em cada circunstância segundo os ditames desse plano e não segundo a Sua própria vontade. Disso é testemunha tanto a oração agónica no Jardim do Getsémani (faça-se a Tua vontade e não a minha – Mateus 26:39), como as diversas declarações de que viera na vontade do Pai e de que não buscava a Sua glória, mas a do Pai (v. 18).

Assim, ciente do Seu lugar no plano de Deus, tinha de receber o aval do Pai quanto à Sua deslocação a Jerusalém. Se a resposta fosse negativa, permaneceria na Galileia. Se fosse positiva, iria até à festa. É, então, nesse sentido que temos de ler e de interpretar a Sua resposta aos irmãos de que não era chegado o Seu tempo. Note-se que esta expressão surge por duas vezes: no versículo 6 e no versículo 8. Este termo “tempo”, tradução do Grego kairós, refere-se não à data da Sua morte, mas sim a um momento específico da corrente temporal (cronológica). Segundo o plano de redenção a que estava sujeito, Jesus sabia que ele implicava a Sua morte de que, logicamente, não poderia escapar. Não se tratava, portanto, de querer fugir à Sua execução durante ou depois da festa, mas de saber se a Sua deslocação a Jerusalém nessa ocasião era o momento adequado, se era um kairós sintonizado com o plano e a vontade de Deus. Era-lhe, portanto, importante orar ao Pai em busca da orientação e decisão divinas. Que cada um de nós busque primeiro a direcção de Deus e não se deixe levar pelo engodo de uma situação aparentemente propícia e adequada. Fazendo o que Jesus fez, poupar-nos-emos muitos amargos de boca.

O que é certo é que Jesus, depois de consultado o Pai e depois de ter recebido a Sua resposta e aprovação, desloca-se, repita-se, não no tempo pessoal, não no tempo dos Seus irmãos, mas no tempo indicado por Deus.

O versículo 10 indica-nos como Jesus se deslocou a Jerusalém – em oculto. Foi incógnito, sem alarde, sem bandeiras, sem o rufar de tambores, sem aclamações. Tudo isso iria ocorrer, sensivelmente daí a seis meses, aquando da Sua entrada triunfal na capital da nação. Em ambos os casos, no tempo de Deus mas neste a Sua presença assumiria um outro carácter.

Este aspecto de estar incógnito não diminui nem o valor nem a proclamação do evangelho. Há momentos em que o evangelho é anunciado longe dos holofotes e dos grandes ajuntamentos. O momento da sua proclamação está sujeito a uma única exigência: ser no tempo, no kairós de Deus.

Recordando o episódio de Elias (1 Reis 19:8-12), Deus nem sempre está num grande e forte vento, nem sempre está no terramoto, nem sempre está no fogo. Não poucas vezes, Deus está na voz mansa e delicada. Tenhamos ouvidos para ouvi-la.

Soli Deo gloria!

SAC, 12.Julho.2022