OS TALENTOS

OS TALENTOS

Jorge Pinheiro

Dr. Jorge Pinheiro

Porque isto é também como um homem que, partindo para fora da terra, chamou os seus servos e entregou-lhes os seus bens. E a um deu cinco talentos e a outro dois e a outro um, a cada segundo a sua capacidade e ausentou-se logo para longe. E, tendo ele partido, o que recebera cinco talentos negociou com eles e granjeou outros cinco talentos. Da mesma sorte, o que recebera dois granjeou também outros dois. Mas o que recebeu um foi e cavou na terra e escondeu o dinheiro do seu senhor. E muito tempo depois, veio o senhor daqueles servos e fez contas com eles. Então aproximou-se o que recebera cinco talentos e trouxe-lhe outros cinco talentos, dizendo: ”Senhor, entregaste-me cinco talentos; eis aqui outros cinco talentos que granjeei com eles.” E o seu senhor lhe disse: “Bem está, servo bom e fiel. Sobre o pouco foste fiel, sobre muito te colocarei; entra no gozo do teu senhor.” E, chegando também o que tinha recebido dois talentos disse: “Senhor, entregaste-me dois talentos; eis que com eles granjeei outros dois talentos.” Disse-lhe o seu senhor: “Bem está, bom e fiel servo. Sobre o pouco foste fiel, sobre muito te colocarei; entra no gozo do teu senhor.” Mas chegando também o que recebera um talento, disse: “Senhor, eu conhecia-te, que és um homem duro, que ceifas onde não semeaste e ajuntas onde não espalhaste. E, atemorizado, escondi na terra o teu talento; aqui tens o que é teu.” Respondendo, porém, o seu senhor, disse-lhe: “Mau e negligente servo; sabes que ceifo onde não semeei e ajunto onde não espalhei. Devias então ter dado o meu dinheiro aos banqueiros e, quando eu viesse, receberia o meu com os juros.” (Mateus 25:14-27)
Jesus ensina através de três métodos:

Milagres; ensino directo em privado ou em público; parábolas. Ao utilizar qualquer destes métodos, Jesus transmite sempre algum ensino.

Em todo o Seu ensino, o tema central foi o reino dos céus ou reino de Deus. O primeiro destes dois termos é utilizado preferencialmente por Mateus, enquanto o segundo pelos restantes evangelistas sendo ambos sinónimos. Vamos encontrar esta ênfase na proclamação do reino de Deus:

1. na Sua primeira proclamação: Arrependei-vos porque é chegado o reino dos céus (Mateus 4:17), repetindo, de resto, a mesma proclamação de João Baptista (Mateus 3:2).

2. nas Beatitudes: Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o reino dos céus (Mateus 5:3).

3. na oração do Pai Nosso: Venha o Teu reino, no versículo 10, em Mateus 6:9-13.

4. nos milagres, quando Lhe chamavam filho de David, reconhecendo implicitamente a Sua realeza (Mateus 20:30)

5. no julgamento perante Pilatos, que Lhe perguntou: És rei dos Judeus? (Mateus 27:11).

6. na crucifixão. Sobre a cruz estava a Sua acusação Este é Jesus rei dos Judeus, a célebre abreviatura INRI (Iesus Nazarenus Rex Iudaeorum – João 19:19).

7. nas parábolas. Todas elas estão relacionadas com o reino. Muitas delas começam com a frase O reino dos céus é semelhante a um tesouro, uma rede, uma pérola, um grão de mostarda, etc. (Mateus 13:44-47)

O texto que lemos é, então, uma parábola e, como tal, fala de alguma característica ou aspecto do reino dos céus. Ou seja, só a podemos interpretar no quadro do reino dos céus.

Há uma parábola semelhante a esta em Lucas 19:11-27 que apresenta algumas diferenças:

Mateus                                                          Lucas
talentos                                                         minas
última parábola                                             penúltima parábola
senhor dos servos                                        homem nobre, um rei
não há referência a inimigos                        manda matar os inimigos
Embora com algumas diferenças formais, podemos dizer que ambas abordam o mesmo tema e em ambas podemos extrair a mesma lição.

As parábolas eram muito comuns na cultura oriental do tempo de Jesus e consistem em histórias ficcionadas, embora com elementos da vida real, que procuram explicar ou realçar uma verdade complexa, apontando para uma aplicação prática. Ou seja, elas retratam um determinado universo com as suas leis e normas e realçam uma verdade central que constitui a lição a extrair dessa história.

Assim, nesta, o universo em que ela decorre é o reino de Deus ou dos céus, segundo a expressão de Mateus e a lição a extrair é a da mordomia dos seus súbditos face aos bens desse reino que lhes são confiados.

Embora não se possa ou não se deva fazer doutrina baseados apenas numa parábola ou nos seus pormenores, podemos extrair delas lições e verdades práticas. E todas as conclusões que delas extraímos têm de se encaixar plenamente no ensino geral de Jesus.

Posto isto, que nos ensina esta parábola? Muitos interpretam-na no sentido de os súbditos do reino dos céus utilizarem os seus talentos ao serviço do reino. Provavelmente são induzidos em erro pela utilização do termo “talento” que interpretam como significando as nossas capacidades humanas, tanto físicas, como espirituais ou culturais. Com todo o respeito pelos que assim pensam, essa é uma interpretação muito pobre e, pior, desvirtuadora da lição central da parábola. É verdade que Deus nos equipou com determinadas capacidades pessoais, a que chamamos talentos, e que devemos colocar ao Seu serviço, mas esta parábola não se refere a esses talentos.

Os talentos da parábola referem-se a uma unidade monetária que equivalia a 6000 denários ou dinheiros. No tempo de Jesus, um denário equivalia ao salário de um dia de trabalho (Mateus 20:9). Isso significa que um talento corresponderia a cerca de 20 anos de salários. Pensemos no que cada um de nós ganha por mês e teremos uma ideia do valor em causa. Ora, o senhor dos servos entrega a um 5, a outro 2 e a um terceiro 1 talento que, traduzidos em anos de trabalho, correspondem respectivamente a 100, 40 e 20 anos de trabalho. Não estamos a falar de uma quantia pequena mas de um autêntico tesouro.

Mas mais. Antes de prosseguirmos, substituamo-nos aos servos porque se somos súbditos do reino dos céus, então os servos desta parábola somos nós e o que ela diz e ensina aplica-se-nos. Não é, pois, por acaso que tratamos Jesus por Senhor porque, de facto, Ele é o senhor deste reino dos céus a que pertencemos. Assim, o que o Senhor coloca nas nossas mãos é algo que Lhe pertence e não a nós. Estamos então a falar não de algo que seja nosso (os nossos talentos pessoais) mas de algo que não nos pertence e de que fomos feitos mordomos.

É verdade que não foi dado mesmo valor a todos. E porquê? A parábola não nos diz a razão mas podemos admitir sem muita margem de erro que cada um recebeu de acordo com a sua capacidade de lidar com os valores recebidos. É o que inferimos do versículo 15: “(e entregou) a cada segundo a sua capacidade.” Mas apesar dessa diferença no valor, todos receberam o que se pode considerar um verdadeiro tesouro, algo de excelso valor. De igual modo, nós recebemos da parte do Senhor um valor consoante a nossa capacidade de lidar com ele.

Vemos também que dois deles fizeram render o tesouro recebido que entregaram ao seu senhor quando este regressou. Em termos comparativos, percentuais, ambos entregaram o mesmo valor, uma vez que duplicaram o tesouro recebido. Ou seja, em ambos os casos, o lucro do senhor foi de cem por cento. Uma vez mais, embora cada um de nós receba segundo a sua capacidade de lidar com o que lhe é entregue, temos a obrigação de o fazer prosperar na sua plenitude. E tudo o que for lucro, por assim dizer, não é nosso mas do Senhor que nos fez mordomos dos Seus bens. O que significa que no reino toda a glória tem de ir para aquele que é o verdadeiro dono dos bens do reino. E o dono dos bens do reino não somos nós mas o Senhor. No reino de Deus não há lugar para bandeiras pessoais ou individuais porque toda a glória tem de ser entregue integralmente ao único que merece toda a glória. De resto é o que Deus diz no Antigo Testamento, A minha glória não a darei a ninguém (Isaías 42:8) e o que Jesus ensina na oração do Pai Nosso: Porque Teu é o reino, o poder e a glória. (Mateus 6:13).

Compreendem agora por que razão, não está correcto interpretar os talentos da parábola como referindo-se aos nossos talentos pessoais. É que, em última análise, estaremos a roubar a glória que pertence a Deus. É que nesta parábola, os talentos referem-se a um tesouro que é do Senhor e não às nossas capacidades individuais, embora estas estejam ao serviço dos bens recebidos. A ênfase é dada ao tesouro que cada servo recebeu.

Os servos que fizeram render os talentos não tinham que se preocupar com galardões, primeiro porque, como servos, a sua função é servir dedicada e abnegadamente o seu senhor e, segundo, porque sabendo que o seu senhor era justo, certamente os iria recompensar quando assim o entendesse. De igual modo connosco. Se somos súbditos do reino dos céus, a nossa função é servir aquele de quem dizemos ser o nosso Senhor, sem preocupações de galardão. O nosso galardão já nos está garantido – é o simples facto de sermos achados dignos de servir este Senhor.

Mas em contraste com os outros dois servos, o terceiro assume uma atitude completamente diferente. Em vez de fazer render o tesouro, em vez de o aplicar, em vez de o pôr em acção, porque o tesouro do senhor tinha em si a capacidade de prosperar, torna-o inactivo, escondendo-o na terra. E fá-lo porquê? Por medo. Porque, conforme ele próprio confessou, porque receava o seu senhor. Ou seja, deixou de servir o senhor dos talentos e colocou-se ao serviço de outro senhor – o medo. Foi como se dissesse que o tesouro que recebera não tinha capacidade para se reproduzir, para influenciar outros. E fá-lo na convicção de que, apesar de tudo continua a considerar como seu senhor o senhor dos talentos quando na realidade não está por se ter deixado vencer pelo medo.

De igual modo, muitos de nós, mesmo tendo recebido (porque recebemos) um valor do Senhor do reino, servimo-Lo (ou melhor, des-servimo-Lo) dominados pelo medo. Ao agir assim, estamos a reconhecer que o medo é mais forte que o próprio Senhor. Quantos de nós não acabam por servir o Senhor não por amor mas por medo? Talvez porque o evangelho que nos foi pregado foi o evangelho do terror, do medo. Repare-se que em 1 João 4:18, lemos: “No amor não há temor, antes o perfeito amor lança fora o temor; porque o temor tem consigo a pena, e o que teme não é perfeito em amor.” O que faz todo o sentido, porque se Deus é amor, então a marca da Sua acção e a característica do reino de Deus é precisamente o amor. No reino de Deus, por trás e na base de toda a nossa acção, deve estar não o medo, o terror, mas o amor. Ao anunciar o evangelho, nunca o anuncie como algo de tenebroso, levando as pessoas a aproximar-se de Deus não porque O amam, mas porque têm medo d’Ele. Porque evangelho significa boas notícias. Como podemos dizer que anunciamos boas notícias quando o que criamos nos nossos ouvintes é o medo de Deus? O medo é arma de domínio e o único Senhor a quem devemos vassalagem não é o medo, mas o Salvador que nos remiu e nos fez entrar no reino de Deus.

Há, então duas atitudes que podemos assumir: ou agimos com amor ou agimos com medo. Ao agir com amor, estamos a servir o Senhor e o Seu reino. Ao agir com medo, estamos a servir ao medo e a excluir-nos da nossa cidadania plena do reino dos céus.

Chegados a este ponto, podemos perguntar com justeza: que tesouro é este que foi entregue aos servos? Que tesouro é este que nos é entregue a nós, servos do reino dos céus? Nunca é de mais realçar que o tesouro não é nosso mas do Senhor. Somos apenas mordomos, servidores desse tesouro que devemos aplicar, pôr em prática, pôr a render, cuidando dele com todas as nossas capacidades individuais.

Que tesouro é este que nos foi entregue? Esta é uma pergunta de fácil resposta. Basta ir aos evangelistas para o descobrir. E embora com uma articulação diversa, podemos dizer que todos afirmam o mesmo, que esse tesouro que nos é entregue é o evangelho de Jesus Cristo. Mateus 28:19 diz: “Ide, ensinai todas as nações … ensinando-as a guardar todas as coisas que eu vos tenho mandado”. Em Marcos 16:15, lemos: “Ide por todo o mundo, pregai o evangelho. Em Actos 1:8, encontramos: “recebereis o poder do Espírito Santo … e ser-me-eis testemunhas … até aos confins da terra”. Ensinai, pregai, testemunhai.

A nossa acção está dependente da palavra, da comunicação daquilo que comummente designamos por evangelho. Mas para conseguir levar a bom termo a tarefa que nos foi confiada, temos de perceber em que consiste este evangelho de que falamos e que temos de ensinar, de pregar, de testemunhar. Mas mais do que perceber, temos de o conhecer, que é o grau mais elevado do saber.

Se analisarmos com cuidado e não temos tempo nesta meditação para entrar em mais pormenor e em mais profundidade nessa análise, verificaremos que em primeiro lugar, o evangelho que Jesus anunciou eram de facto boas notícias e que elas se destinavam a todas as áreas do existir humano.

Jesus não se limitou apenas às preocupações religiosas e teológicas, como foi no caso de Nicodemos (João 3), mas:
teve uma palavra para os problemas sociais, como foi o caso da mulher samaritana (João 4),
apresentou uma solução para os problemas físicos e de saúde como foram os casos dos diversos milagres de cura,
deu uma solução às angústias psicológicas como é o caso dos milagres de ressurreição de Lázaro (João 15) e do filho da viúva de Naim (Lucas 7:11-17).
Jesus esteve também atento às questões sociais como foi o caso do servo do centurião (Lucas 7:1-10),
aos problemas do fisco como mostra o episódio do pagamento do tributo a César (Mateus 17:24-27),
calou os preconceitos raciais como foi o caso da mulher siro-fenícia (Mateus 15:21-28),
estendeu o seu amor aos perseguidos pela sua condição de género, como foi no caso da mulher com o fluxo de sangue (Mateus 9:19-22).

E poderíamos continuar, multiplicando os exemplos, para concluir que Jesus se interessou por todas as áreas da existência humana, o que significa que o evangelho tem uma resposta para cada uma dessas áreas porque todas elas lhe interessam, porque em todas elas o evangelho deve estar presente. O que significa que não devemos limitar o evangelho apenas ao que consideramos a vida religiosa. Se a nossa capacidade não vai mais além, sejamos fiéis nesse pouco. Mas se a nossa capacidade vai mais além, então sejamos fiéis nesse que o Senhor também considera o pouco porque tudo quanto fizermos para Deus será sempre pouco tal a Sua grandeza e tal a necessidade da humanidade caída.

O que significa que, estando no mundo, não podemos fechar os nossos olhos ao que se passa à nossa volta nas mais diversas áreas da existência dos nossos conterrâneos e contemporâneos. Por isso, se vemos alguma injustiça na área social, laboral, moral, judicial ou até governativa, como cristãos temos a obrigação de fazer ouvir a nossa voz, ensinando, pregando, testemunhando não dos nossos talentos pessoais, mas deste tesouro vindo dos céus que é o evangelho de Cristo Jesus. E façamo-lo não por ou com medo, mas com amor, na certeza de que o evangelho é completo e não se limita a prometer um lugar em alguma morada celestial.

Se alguém disser que para chegar a Deus, precisamos de algum intercessor de uma vasta panóplia de intercessores, não nos podemos calar, porque “há um só Deus e um só Mediador entre Deus e os homens, Jesus Cristo” (1 Timóteo 2:5).

Mas também não nos podemos calar quando alguém é discriminado e não é socorrido por ser estrangeiro porque à pergunta “quando te vimos estrangeiro e não te hospedámos?”, o Rei declara que “tudo o que tivermos feito ao estrangeiro a Ele o fizemos” (Mateus 25:35-40)

Se nos disserem que as nossas boas obras nos ganham o perdão de Deus, não nos podemos calar, porque “pela graça sois salvos, mediante a fé e isto não vem de vós, é dom de Deus” (Efésios 2:8).

Mas também não nos podemos calar quando as crianças são maltratadas e abusadas, porque o Rei diz: “Deixai vir a mim os meninos e não os estorveis porque deles é o reino dos céus” (Mateus 19:14).

Se nos disserem que não podemos ter a certeza da salvação e da comunhão directa com Deus, não nos podemos calar, porque “Agora, nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus, que não andam segundo a carne, mas segundo o Espírito” (Romanos 8:1).

Mas também não nos podemos calar quando o pobre é oprimido e explorado, porque o Rei diz que “o que oprime o pobre insulta aquele que o criou” (Provérbios 14:31).

Como não nos podemos calar quando alguém é prejudicado por causa do seu género e da sua etnia, porque o Rei diz que “em Cristo não há judeu nem não-judeu, não há servo nem livre, não há homem nem mulher porque todos somos um em Cristo Jesus” (Gálatas 3:28).

Como não nos podemos calar quando a corrupção ataca a nossa sociedade porque o Rei diz “balança enganosa é abominação para o Senhor” (Provérbios 11:1)

Como não nos podemos calar quando a justiça usa de duplo critério conforme as clientelas, porque o Rei diz que “duas espécies de peso e duas espécies de medida são abominação para o Senhor” (Provérbios 20:10).

Como não nos podemos calar quando o politicamente correcto se sobrepõe tanto ao bom senso quanto ao que é agradável aos olhos de Deus porque se temos de escolher um lado, só podemos escolher o lado do Senhor, porque os que não esconderam os talentos na terra nos deixaram o exemplo: “Mais importa obedecer a Deus que aos homens” (Actos 5:29).

Que cada um de nós que se confessa servo do rei do reino dos céus não esconda na terra os talentos recebidos mas os faça frutificar para que no final possa ouvir: “Bem está, servo bom e fiel, entra no gozo do teu Senhor” (Mateus 25:21).