O BAPTISMO DE JOÃO – Mateus 21:23-27

O Baptismo de João

Jorge Pinheiro 7

Dr. Jorge Pinheiro

 

Mateus 21:23-27

Perguntou Jesus: O baptismo de João de onde era? Do céu ou dos homens?
Na sequência do episódio em que ordena que a figueira seque por não ter figos. Jesus dirige-se ao templo onde, como era Seu hábito, se põe a ensinar, provocando uma reacção de antagonismo por parte dos responsáveis religiosos que Lhe perguntam com que autoridade exercia o Seu ministério. A isto Jesus responde com uma pergunta e exige-lhes que Lhe digam qual a origem do baptismo de João. Numa atitude de cautela, para não serem apanhados em falso com uma resposta que não contemplasse a verdade, assumem a sua ignorância quanto à origem desse baptismo. Ante isso, Jesus replica que, não tendo recebido uma resposta positiva, não se vê obrigado a revelar-lhes com que autoridade praticava o Seu ministério.

Este é o exemplo típico de um dilema que Jesus enfrentou durante o Seu ministério. Num dilema, temos de escolher entre duas resposta antagónicas e contraditórias ou insatisfatórias para a resolução do problema apresentado. Ou seja, em termos práticos qualquer das respostas que possamos dar está errada. A verdade é que, ao longo da Sua vida, Jesus enfrentou diversos dilemas, sendo talvez o mais conhecido a questão do tributo (Mateus 22:15-21). Quando Lhe perguntaram se é lícito pagar o tributo a César, depois de pedir que Lhe mostrassem uma moeda, Jesus respondeu com uma frase famosa e que muitas vezes tem sido citada fora do contexto: “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”. Poderíamos citar outra situação em que Jesus enfrenta um dilema. Encontramo-la na tentação (Mateus 4:1-11), em que pelo menos duas das três tentações podem ser consideradas dilemáticas. Para além de outras que, a um estudo mais aprofundado poderemos encontrar nos evangelhos, pensamos que o mais emblemático e importante dilema que Jesus enfrentou ocorreu quando estava crucificado: “Se és Filho de Deus, desce da cruz” (Mateus 27:40). Poderia ter descido da cruz? Poderia e essa decisão revelaria ser não apenas o Filho de Deus e o Messias há tanto tempo aguardado. Mas Jesus permaneceu na cruz, cumprindo até ao fim o Seu papel de vítima expiatória e vicária. E garantindo não local mas universalmente, não momentânea mas eternamente que é o Salvador e o Rei dos reis e Senhor dos senhores.

Embora por norma não haja resposta para um dilema e todos quantos o enfrentam fiquem enredados na sua teia, a verdade é que Jesus sempre que confrontado com um deu uma resposta assertiva sem se deixar prender na armadilha. Porque entrar na lógica do dilema é entrar num círculo vicioso de que só se pode sair se “pensarmos fora da caixa”, aplicando o que os especialistas designam por “pensamento lateral”. O pensamento lateral estimula uma nova perspectiva e é isso que o ensino de Jesus nos aponta – perante os dilemas da vida apresentados ou não pelos sistemas que nos governam, há sempre uma nova perspectiva ao nosso dispor e que se obtém com a recomendação de Paulo em Romanos 12:1-2: não nos conformando com este mundo, mas transformando-nos pela renovação do nosso entendimento. E isso é possível porque segundo Paulo, temos a mente de Cristo (1 Coríntios 2:16). Só temos de deixar que a mente de Cristo vá ocupando paulatina e totalmente todo o nosso entendimento. Durante todo o processo, não haverá dilema que não possamos vencer.

Neste episódio, Jesus não enfrenta nenhum dilema mas é Ele quem confronta os seus adversários com um. E ao contrário dos dilemas que teve de enfrentar e aos quais respondeu positivamente, este deixa os seus oponentes sem possibilidade de resposta, porque em qualquer resposta que dessem seriam sempre achados culpados de inconsistência e toda a sua hipocrisia e falsidade seriam desmascaradas. Eles próprios o reconhecem porque se respondessem que o baptismo vinha do céu, seriam acusados de não crerem, eles que eram os profissionais religiosos e defensores da verdade celeste. Se respondessem que o baptismo era de origem humana, veriam a sua posição de privilégio ameaçada porque todo o povo considerava que João era um profeta, logo com uma mensagem e um ministério validados por Deus. Receando as consequências de qualquer das respostas optam por esconder-se atrás da ignorância. O que também não milita em seu favor porque ou não se preocupam com uma questão de primordial importância (o baptismo que apela ao arrependimento e a uma maior comunhão com Deus) ou estão mais preocupados com aquilo que é passageiro – a vanglória do poder humano. E assim a sua própria resposta os condena.

Que João Baptista era profeta a Escritura confirma porque, segundo as palavras de Jesus (Mateus 11:14), foi o Elias profetizado e que surgiria antes do grande e terrível dia do Senhor, conforme anunciara Malaquias 4:5. De resto, João Baptista, interrogado sobre quem era, limitou-se a identificar-se como a voz que clama no deserto, preparando o caminho ao Senhor (João 1:23), em cumprimento da profecia de Isaías 40:3: Voz do que clama no deserto: Preparai o caminho do Senhor; endireitai no ermo vereda a nosso Deus.

É verdade que João surge como uma figura estranha e singular que foge aos modelos tradicionais. Vestido de forma simples e natural, com uma alimentação mais que frugal, escolhendo como palco da sua actuação não o cenário das grandes cidades, mas um local deserto e inóspito que exige aos que o queiram ouvir a terem de deixar o conforto da cidade e aventurar-se num lugar tão pouco hospitaleiro, a sua mensagem e prática manifestam-se com um cunho que foge às exigências normais da religiosidade tradicional. Além de anunciar uma mensagem de arrependimento porque o dia do juízo se aproxima e a vinda do Messias prometido está próxima, João Baptista faz acompanhar a declaração de decisão de arrependimento de um sinal ou prática sensível: um banho ritual. Ou seja, não basta a confissão vocal em que apenas a boca e a voz estão envolvidos, mas a decisão prática de experimentar em todo o corpo essa mesma decisão através da lavagem simbólica nas águas do Jordão.

O banho ou lavagem ritual não era coisa desconhecida entre os judeus, mas ele estava mais destinado aos sacerdotes que tinham de se purificar antes de ministrarem no templo. É verdade que todo o judeu tinha de se purificar antes de oferecer um sacrifício, mas com João Baptista, o baptismo extensivo a todo o que se arrepende abre a todos a possibilidade de também se assumirem como sacerdotes do Deus a quem prometeram servir. Esta ideia central do baptismo de João continua presente no baptismo cristão, o que significa que todo quanto é baptizado em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, se compromete a reconhecer que abandona a sua vida velha de pecado consciente e se entrega de corpo e alma à acção do Espírito de Deus que o conduzirá à prática de uma nova vida de que Cristo é o centro e a quem serve como Seu sacerdote porque, como já sabemos, somos o templo do Espírito Santo.

Ao tempo de Jesus, havia um grupo, os Essénios, que voluntariamente voltavam as costas à cidade e se juntavam em comunidade em lugares desertos e em que os banhos rituais eram praticados com assiduidade. Com toda a probabilidade João terá convivido com eles ou terá sido por eles influenciado, uma vez que, conforme Lucas 1:23, esteve nos desertos até ao dia em que havia de se mostrar a Israel. Por outro lado, a sua zona de pregação e baptismo situava-se num local onde a história prova ter existido uma comunidade essénia ou, pelo menos, com as características desse grupo. Os Essénios cuja prática faz lembrar um pouco os monges que se retiram do chamado século para viver em reclusão ou em local ermo, defendiam a necessidade de uma reaproximação de Deus, através do arrependimento das acções e atitudes que impediam uma vida santa. E a marca visível desse arrependimento e reaproximação eram exactamente os banhos rituais. Mas fosse ou não essénio, João Baptista surge não apenas como o precursor do Messias mas como o anunciador de uma prática e de uma decisão essenciais para que a vontade de Deus se cumpra na vida do crente e se torne visível e efectiva – a exigência do arrependimento. Vemos que essa foi a primeira mensagem de Jesus ao iniciar o Seu ministério: Desde então começou Jesus a pregar e a dizer: “Arrependei-vos, porque é chegado o reino dos céus.” (Mateus 4:17), essa foi a primeira mensagem no dia de Pentecostes. À pergunta da assistência “Que faremos, varões irmãos?”, Pedro responde com toda a ousadia e convicção: Arrependei-vos e cada um de vós seja baptizado em nome de Jesus Cristo para perdão dos pecados; e recebereis o dom do Espírito Santo (Actos 2:37-38). Essa tem de ser também a mensagem da igreja hoje quando anuncia o evangelho: “Arrependei-vos e aceitai Cristo como o único Mediador entre Deus e os homens”. Essa tem de ser a mensagem central para correcção de algum desvio em que entretanto qualquer crente tenha incorrido: “Arrepende-te e regressa ao caminho da santidade.” Essa tem de ser a prática que cada um de nós tem de viver diariamente: aproximarmo-nos arrependidos a Deus, sempre que entramos na Sua presença, gratos porque Ele a ninguém lança fora desde que se apresente a Ele com um coração contrito e arrependido.

Sem dúvida alguma a resposta certa ao dilema de Jesus era que o baptismo de João vem de Deus. E ao responder assim, a pergunta deixa de ser um dilema e passa a ser a confissão de uma verdade que nos abre a porta ao privilégio de sermos chamados filhos de Deus.
A Deus toda a glória!

OS SETE MILAGRES

Os Sete Milagres

Jorge Pinheiro 8Dr. Jorge Pinheiro

 
E Jesus, passando adiante dali, viu assentado na alfândega um homem chamado Mateus e disse-lhe: Segue-me. E ele, levantando-se, o seguiu. E aconteceu que, estando ele em casa sentado à mesa, chegaram muitos publicanos e pecadores e sentaram-se juntamente com Jesus e seus discípulos. E os fariseus, vendo isto, disseram aos seus discípulos: Porque come o vosso Mestre com os publicanos e pecadores? Jesus, porém, ouvindo, disse-lhes: Não necessitam de médico os sãos mas sim os doentes. Ide, porém, e aprendei o que significa: Misericórdia quero e não sacrifício. Porque eu não vim a chamar os justos, mas os pecadores ao arrependimento.

(Mateus 9:9-13)

 

Este é um capítulo que narra uma série de milagres executados por Jesus, a maioria de cura divina.

Não contando com o número indefinido de curas, registadas no versículo 35, podemos concluir que, neste capítulo, estão mencionados sete milagres individuais. Não valorizando nem atribuindo qualquer significado simbólico ao facto de serem sete, há que concluir que num texto tão breve os milagres são o seu tema dominante. E dizemos dominante porque o capítulo não se limita à referência e descrição de milagres, mas inclui ensino e polémica (vv. 12-17; 3-6).

É natural que um milagre suscite admiração e espanto e se torne motivo de discussão e, logicamente, no seu seguimento, de polémica e incredulidade.

Embora haja muitas definições de milagre, potenciadas pelas diversas palavras que o Novo Testamento utiliza para o designar, podemos definir milagre como um acto que desafia e rompe as leis naturais conhecidas à época da sua ocorrência, sejam elas explicadas ou não científica ou empiricamente.

É verdade que, em termos teológicos, esta definição de milagre é pobre e curta, mas de momento ela é suficiente, tanto mais que ajuda a perceber as reacções que os diversos milagres descritos suscitaram.

Há um traço comum em todos estes milagres, inclusive nos de um número indeterminado do versículo 35 – todos eles envolveram pessoas ou, dito de outro modo, em todos eles há pessoas beneficiadas com a acção e o resultado dos milagres. Ao contrário de outras ocasiões no ministério de Jesus em que os milagres, embora impressionando e afectando pessoas, tiveram como alvo elementos da natureza – é o caso da multiplicação dos pães e da tempestade acalmada.

No entanto, mesmo nestes, houve pessoas que, embora indirectamente, são afectadas pelos resultados dos milagres referidos.

Neste capítulo, a maioria dos milagres é de cura. Este simples facto indica que quando o crente roga ou necessita de um milagre, este não se circunscreve apenas à cura física. Sem forçar o texto, podemos afirmar que nos tempos de Jesus, devido ao facto de a medicina não estar tão desenvolvida quanto hoje, um doente ou enfermo estaria completamente dependente de um milagre para o seu restabelecimento físico. Paralelamente e sem desvirtuar o significado e natureza bíblico-teológica do milagre, podemos dizer que, em qualquer época, quando a ciência é impotente para resolver um problema, o crente em Deus tem no Criador o seu último recurso.

Podemos classificar do seguinte modo estes sete milagres:

a) cinco de cura – o paralítico (vv. 1-8); a mulher com hemorragia (vv. 20-22); os dois cegos (vv. 27-32); o mudo endemoninhado (vv. 32-34)
b) um de ressurreição – a filha de Jairo (vv. 18-19; 23-26)

Até aqui, temos seis milagres. E o sétimo qual será? Não pode ser o número indeterminado do versículo 32 por não sabermos quantos foram curados e porque, à partida, por causa disso, os excluímos desta enumeração.

Só nos resta o episódio envolvendo Mateus (vv. 6-13).

É verdade que não se trata de um milagre de cura física, mas isso não impede que o consideremos também um milagre e um milagre de transformação. Transformação de carácter, de modo de vida, de alteração de propósito de vida, de adopção na família de Deus. De facto, Jesus chama Mateus, convidando-o a deixar uma vida obscura, apagada, centrada no imediato, no terreno, muito provavelmente impregnada do engano e da injustiça. Em troca, Jesus oferece-lhe a entrada numa relação directa com aquele que tem as chaves da vida e da morte, com aquele que está acima das contingências humanas, com aquele que não apenas aponta o caminho de comunhão plena com Deus e a Sua vontade, mas que é o próprio caminho.

Trata-se, pois, de um milagre de mudança de carácter e de perspectiva de vida. Quantas vezes nos centramos nas contingências da vida, cuja resolução é justificada e aceitável e nos esquecemos de que acima de tudo, Deus, sem deixar de se interessar pela nossa contingência, está mais interessado em receber-nos em comunhão plena?

Busquemos a resolução dos problemas da nossa contingência, se for esse o caso. Não há mal nesse desejo e procura. Mas não olvidemos nem secundarizemos o nível mais importante – o nosso relacionamento com Deus, baseado e alicerçado na renovação do nosso carácter.

Curiosamente, neste 7 casos, apenas Mateus é mencionado pelo nome. Em relação aos outros, não sabemos como se chamavam. Não podemos afirmar que haja uma intencionalidade da parte do evangelista, mas se repararmos que o autor deste evangelho é o mesmo Mateus chamado por Jesus, podemos considerar esse registo não apenas como uma “assinatura”, mas também como indicação de que o episódio da sua chamada, início da sua transformação como pessoa, marcou-o profundamente. Que o mesmo é dizer que quando temos um encontro com Jesus, esse é um episódio que não somente nos marca como é fulcral no nosso viver, a ponto de querermos que o máximo de pessoas fique a par da nossa experiência de transformação em Cristo.

Neste conjunto de milagres, verificamos que eles atingem áreas fundamentais da nossa condição de seres humanos: o paralítico passa a poder locomover-se; os cegos recuperam a visão; o mudo endemoninhado volta a usar o dom inefável da fala e vê-se liberto da opressão espiritual que o diminuía enquanto ser humano; a filha de Jairo retorna à vida, numa segunda oportunidade de viver. Deus não só é um Deus de segunda oportunidade como intervém nas áreas mais sensíveis da nossa existência. Só isso já seria bastante, mas Jesus vai mais longe no caso da mulher com o fluxo de sangue. Não só lhe restabelece o equilíbrio orgânico, estancando uma hemorragia de doze anos, como lhe franqueia a porta da comunhão no Templo e a liberta de toda a vergonha e humilhação.

Uma hemorragia persistente é uma doença que deixa a pessoa depressiva porque se sente envergonhada e rejeitada. Hoje, há possibilidade de ocultar os sinais exteriores evidentes de um episódio hemorrágico persistente, com o recurso a pensos e tampões. No tempo de Jesus, essa era uma solução quase inviável e sem retorno.

Acresce que, no caso da mulher, a lei considerava-a impura enquanto a hemorragia persistisse e obrigava-a a um período de nojo que se prolongava para lá do momento da interrupção da hemorragia. É o que encontramos em Levítico 15:25 (A mulher, quando manar o fluxo do seu sangue por muitos dias, fora do tempo da sua separação, ou quando tiver fluxo de sangue por mais tempo do que a sua separação, todos os dias do fluxo da sua imundície será imunda como nos dias da sua separação). Pelo código religioso da época, isso implicava que, na sua condição de impura, a mulher não podia ir ao Templo nem toar em ninguém. Para além da vergonha sentida pela sua condição, a mulher via-lhe rejeitada a possibilidade de uma comunhão plena com a comunidade a que pertencia, que o mesmo é dizer que tal situação era sinónimo de exclusão e rejeição.

Acresce ainda que este milagre ocorre quando Jesus é chamado para satisfazer o pedido de Jairo, um dos responsáveis religiosos. Não é Jesus que se dirige propositadamente à mulher, mas é a mulher que se aproxima de Jesus, em quem não apenas vê a solução mas o único que a pode libertar da situação em que se encontrava.

O que nos indica que Jesus não está tão ocupado com os outros que não possa atender a um pedido inesperado e dramático. Porque, mesmo com a multidão a apertá-Lo, Jesus sabia que a mulher Lhe tocara porque, conforme diz Lucas (8:45-46), conheceu que de si saíra virtude.

O que também nos indica que, num momento de desespero, como era o caso de Jairo, embora atendendo a outras situações, Jesus não se esquece do nosso pedido de angústia nem da angústia dos nossos pedidos.

E se cremos que Ele é o mesmo ontem, hoje e eternamente (Hebreus 13:8), então recorramos sempre a Ele, sabendo que o Seu braço não está encolhido (Isaías 59:1) a ponto de não nos poder socorrer.
SAC, 20.04.2021

OS DOIS SEGREDOS

Os Dois Segredos

Jorge 2022-1Dr. Jorge Pinheiro

 

E tendo nascido Jesus em Belém de Judeia, no tempo do rei Herodes, eis que uns magos vieram do oriente a Jerusalém, dizendo:

– Onde está aquele que é nascido rei dos Judeus? Porque vimos a sua estrela no oriente e viemos adorá-lo.

E o rei Herodes, ouvindo isto, perturbou-se e toda Jerusalém com ele. E congregados todos os príncipes do povo, perguntou-lhes onde havia de nascer o Cristo. E eles disseram:

– Em Belém da Judeia, porque assim está escrito pelo profeta: “E tu, Belém, terra de Judá, de modo nenhum és a menor entre as capitais de Judá, porque de ti sairá o Guia que há-de apascentar o meu povo de Israel.”

Então, Herodes, chamando secretamente os magos, inquiriu exactamente deles acerca do tempo em que a estrela lhes aparecera. E, enviando-os a Belém, disse:

– Ide e perguntai diligentemente pelo menino e, quando o achardes, participai-mo para que também eu vá e o adore.

E, tendo eles ouvido o rei, partiram. E eis que a estrela que tinham visto no oriente ia adiante deles, até que, chegando, se deteve sobre o lugar onde estava o menino. E vendo eles a estrela, alegraram-se muito com grande alegria. E, entrando na casa, acharam o menino com Maria sua mãe e, prostrando-se, o adoraram. E, abrindo os seus tesouros, lhe ofertaram dádivas: ouro, incenso e mirra.

E sendo por divina revelação avisados em sonhos para que não voltassem para junto de Herodes, partiram para a sua terra por outro caminho.
Mateus 2:1-12
Este texto refere dois dos grandes mistérios/segredos do Natal, os magos e a chamada estrela de Belém, ambos inter-relacionados. Não há magos sem estrela e não há estrela sem magos.

Deixando de lado a questão de saber se este relato da Natividade é histórico ou meramente literário-simbólico, centremos a nossa atenção primeiro na estrela e, depois, nos magos. Se considerarmos que é histórico, então teremos de concluir que houve de facto uns magos guiados por uma estrela que os guiou até à terra da Judeia. Se considerarmos que é literário-simbólico, o evangelho segundo Mateus não deixa de ser fiável no tocante à Natividade, uma vez que, tendo por base um facto histórico, interpreta-o à luz do seu simbolismo e descreve-o com um timbre literário. Na realidade, há uma como que preocupação de Mateus em interpretar a trajectória de Jesus desde o Seu nascimento, à luz da Revelação anterior transmitida pelos profetas. E a prova disso são as diversas citações que ele faz da Escritura, afirmando com isso que aquela personagem actua no cumprimento do que dela já estava profetizado. Naturalmente que nesta perspectiva toda a descrição virá recheada de simbolismos que a audiência a que este evangelho se destinava não teria dificuldade em identificar e interpretar. Pondo de lado os magos e a estrela, que podemos considerar uma unidade conceptual, tudo o resto tem base histórica, devidamente comprovada: as cidades (Belém e Jerusalém), a terra (Israel), o poder político-religioso (Herodes, sacerdotes e escribas), o rigor profético (Miqueias 5:2), os guardiões da Revelação (sacerdotes e escribas). Inclusive, até, a marca de oportunismo político de Herodes, o Grande, que a História bem atesta.

Comecemos pela estrela de Belém. Ainda hoje, o mistério permanece e não se pode afirmar com garantia e certeza do que se tratava. Por isso, temos de nos contentar com as diversas hipóteses, restando-nos a opção de escolher a que mais nos agrada ou vai de encontro às nossas convicções preconcebidas ou não. Sem nos preocuparmos em pormenorizar essas diversas opções, podemos reduzi-las a quatro: um fenómeno sobrenatural, um cometa, uma supernova ou uma conjunção de astros celestes. Cada uma delas tem os seus defensores desde a Antiguidade aos nossos dias. Se todas as explicações naturais falharem, há sempre o recurso a uma intervenção sobrenatural, uma vez que o sobrenatural tudo explica e, por vezes, nada explica, antes complica. Das outras três, descartemos o cometa, porque era considerado um sinal maléfico, o que não condiz com o carácter benfazejo do nascimento do menino. Das outras duas, a que acaba por ter mais peso e é a minha preferida, é a da conjunção de planetas, no caso vertente, a de Júpiter e Saturno na constelação de Peixes, que ocorrera antes da morte de Herodes, o Grande em 4 a.C. e que se repetiria por outras duas vezes, uma delas a que se terá juntado a estrela Régulo. A interpretação astrológica (os Magos, como veremos, eram astrólogos) está em consonância com a afirmação da certeza dos Sábios do Oriente: “Onde está o que é nascido rei dos Judeus, porque vimos a sua estrela?”

Passemos aos Magos. A tradição fê-los reis, deu-lhes nome e considera-os em número de três, muito provavelmente por causa dos presentes oferecidos ao Menino: ouro, incenso e mirra. Há até uma lenda piedosa que fala de um quarto mago que se terá perdido dos companheiros e, vagueando durante anos pelo Oriente, acaba por se encontrar com Cristo a caminho do Gólgota. Mas atendo-nos ao texto, verificamos que todas essas afirmações são fruto da Tradição ou da imaginação piedosa. Na verdade, o texto não nos diz que eram reis, nem três e é omisso quanto ao seu nome. Dele, inferimos que eram sábios astrólogos-astrónomos, que vieram do Oriente, que ofertaram os produtos atrás citados, que viram um fenómeno celeste no Oriente interpretado segundo os seus conhecimentos. Também ficamos a saber que, ao contrário das representações de alguns presépios, quando se encontraram com o Menino não foi na manjedoura, mas numa casa e provavelmente seria um bebé cuja idade não ultrapassaria os dois anos, uma vez que Herodes manda matar as crianças de dois anos para baixo. Ficamos também a saber que a “estrela” lhes aparece duas vezes: uma no Oriente e outra na região de Belém da Judeia, o que dá força à hipótese da conjunção de astros que, sendo a de Júpiter e Saturno, ocorreu pelo menos duas vezes. Sendo Júpiter indicador do deus supremo e Saturno considerado o imutável, reunidos na constelação de Peixes, considerada a constelação do deus da sabedoria e do povo judeu, seria fácil a um astrólogo chegar à mesma conclusão dos Magos: na terra dos Judeus nasceu um rei sábio e imutável. É verdade que eles apenas referem “ao que é nascido rei dos Judeus”, mas sendo à época normal considerar os reis como divinos e estando a sabedoria ligada a Deus ou aos deuses, o “sábio e imutável” torna-se implícito a este rei.

Os Magos provavelmente seriam naturais da Pérsia e sacerdotes da religião de Zoroastro, o que não deixa de ser especulação. O que não é especulação é o facto de eles serem astrólogos-astrónomos e de se terem servido dos seus conhecimentos para chegarem à conclusão de que nascera o rei dos Judeus. O facto de serem astrólogos-astrónomos não nos deve surpreender pois à época não se estabelecia diferença entre os dois conhecimentos. Apenas a partir da revolução científica na Europa, por volta do séc. XVIII, é que a astronomia se autonomizou em relação à astrologia. Basta pensar que Copérnico e Képler (sécs. XVI e XVII, respectivamente), considerados pais da astronomia científica moderna eram eles também astrólogos. À época dos magos, o estudo científico dos astros, dos seus movimentos e inter-relações (registo astronómico) andava de mãos dados com as superstições do destino de pessoas e coisas ditado pelas posições dos astros no horizonte celeste (registo astrológico).

Estas são as conclusões a que podemos chegar após uma breve leitura e análise do texto de Mateus. Estando estes dois elementos da Natividade envoltos em mistério, fácil é cairmos na tentação de nos preocuparmos com a sua resolução e de nos perdermos em especulações, esquecendo-nos daquilo que é muito mais importante que determinar a origem dos magos e a natureza da estrela. Na realidade, embora envoltos em mistério e com toda a probabilidade em simbolismo, este episódio encerra lições que essas, sim, nos devem interessar e às quais devemos prestar toda a atenção, fazendo bem em aplicá-las ao nosso viver.

A primeira lição a aprender é que, na busca da verdade, é essencial colocarmos o registo evangélico no centro da nossa busca e extrair dele aquilo que de facto é fundamental e não acessório, seguro e não especulativo, perene e não transitório. No tocante à descoberta da Verdade, o nosso espírito tem de se deixar mergulhar na Palavra da Revelação porque é ela que nos esquadrinha o mais íntimo do nosso ser e nos dirige nos caminhos da verdade. De resto vemos isso no percurso dos magos. O seu conhecimento levou-os ao destino final, mas desembocaram num beco sem saída porque embora no local certo, foram à procura da resposta final na pessoa errada. O que nos diz que Deus nos fala na linguagem que entendemos e que dominamos. A linguagem, dos magos era a astronomia e foi nessa linguagem que Deus lhes falou e os guiou ao destino certo. Mas o seu conhecimento humano precisou da revelação divina para chegar àquele que era o anseio do seu saber e o destino final da sua caminhada. De igual modo, em aplicação do que a epístola aos Hebreus declara de que Deus fala muitas vezes e de muitas maneiras, Deus fala connosco segundo a linguagem do nosso conhecimento individual, desde que o coloquemos ao serviço daquele que tem a palavra final. E quantas vezes Deus não nos tem falado na linguagem do nosso saber? Que à semelhança dos magos coloquemos o nosso saber e o nosso conhecimento nesta caminhada ao encontro do Senhor da vida, o Rei eterno e imutável. Mas seguros também de que onde o nosso conhecimento falha, aí começa a intervenção da revelação. O que nos indica que conhecimento e revelação não são incompatíveis, mas complementares e que aquele sem esta leva sempre a um beco sem saída.

À semelhança dos magos, por vezes o nosso conhecimento pode levar-nos ao lugar errado. No caso dos Magos, levou-os ao centro do que podemos considerar a sede das teorias da conspiração. Os Magos abeiraram-se de Herodes, o Grande que, manhosamente, os procurou enfeitiçar com palavras piedosas: “Procurai diligentemente o menino para que eu também vá e o adore”. Ou seja, os Magos pocuraram no poder político a resposta para as suas indagações. E mal vai o Cristianismo quando tem de depender do poder político, seja ele qual for, para que a sua mensagem seja validada e ratificada. O rei do Cristianismo não pode ser outro senão aquele que é o cumprimento das Escrituras, não pode ser outro senão aquele que tem o respaldo da Revelação, não pode ser outro senão aquele que detém as chaves da sabedoria divina perene e permanente. O seu nome é Jesus! E embora ouvindo uma mensagem herodiana adocicada e na aparência de uma piedade louvável, os magos não perceberam que era uma mensagem enganadora porque por trás dela residia uma conspiração para matar o recém-nascido rei que Herodes catalogou de seu rival. Por isso, podemos afirmar que os Magos estavam perante uma teoria da conspiração. Toda a teoria da conspiração é criminosa e assassina e mal vai o Cristianismo e mal vão os Cristãos quando se deixam embalar por teorias da conspiração por mais doces que sejam, por mais piedosas que na aparência possam ser. De novo, os Magos necessitaram de uma intervenção divina para lhes revelar as verdadeiras intenções de Herodes. Avisados por divina revelação foram para a sua terra por outro caminho. Que à semelhança dos Magos, os Cristãos do nosso tempo possam estar atentos à verdadeira revelação divina no desmascarar dos falsos Messias modernos que, com as suas palavras doces e pretensamente piedosas, querem levar os filhos de Deus ao engano. Tenhamos, pois, os nossos ouvidos atentos ao que Deus revela e leiamos a Sua Palavra não segundo os decretos do coração humano mas segundo o espírito meigo e salvador de quem deu a Sua vida por nós, nunca esquecendo o que Ele disse: “O meu reino não é deste mundo. Se fosse deste mundo, os meus fiéis guerreariam por ele.” O reino de Deus não se impõe pela força, mas pela convicção dos corações através da acção do Espírito Santo.

Uma outra lição que aprendemos com os magos é que eles não se limitaram a ir ao encontro do rei nascido de mãos vazias e estribados no seu conhecimento e saber. Chegando-se à casa onde se encontrava o rei menino, adoraram-no e ofertaram-lhe dádivas. Podemos ver um simbolismo nessas oferendas. Sem menosprezo por outras interpretações, podemos considerar o ouro como reconhecimento da Sua realeza, o incenso, como confirmação do Seu sacerdócio e a mirra como confissão da Sua posição de profeta e prenúncio da Sua morte vicária em favor de toda a humanidade. Cada uma dessas oferendas valiosas reconhecia um aspecto do carácter, da missão e do valor do rei-menino junto de quem colocavam não apenas o produto das suas cogitações, mas também toda a sua pessoa, numa atitude de serviço e reverência. Que nós também nos aproximemos daquele que é rei, sacerdote, profeta e Salvador não de mãos vazias mas com o tributo da nossa adoração e a rendição da nossa posição de seres humanos.

Curioso também é verificar que estes magos não sendo provavelmente judeus, seriam por isso gentios, gente de outra nação, de outra etnia. E neste facto, temos uma outra lição a aprender – aquele que consideramos nosso Rei é o soberano não de uma classe especial ou de uma etnia eleita, mas de toda a humanidade, pelo que, como cristãos, está-nos vedado enveredar pelos caminhos do racismo, da xenofobia ou da segregação com base em alguma diferença, seja ela de género ou de posição sócio-económica ou cultural. Por isso, Paulo podia clamar: “Nele não há judeu, não há gentio, não há masculino nem feminino, não há servo nem livre”. Todos têm entrada livre no Reino de Deus. Apenas temos de nos curvar perante aquele que é Rei deste Reino e ofertar-lhe em primeiro lugar a nossa vida e a nossa devoção.

Ligada aos magos está uma estrela. Muito provavelmente Mateus teria presente o texto de Números 24:17, também conhecido como a Profecia da Estrela: “Uma estrela procederá de Jacob e um ceptro subirá de Israel”. A ser assim, isso explicaria a inclusão da estrela no seu relato natalício. Seja como for, uma estrela guiou os magos e ela levou-os sem falhas ao destino que era o seu. Ela foi como que o seu farol a indicar-lhes o caminho. E ainda que por momentos oculta, no momento da decisão final voltou a aparecer-lhes, desta vez parando sobre o local da sua busca. Que à semelhança dos magos tenhamos os olhos fixos na estrela que guia os nossos passos, sabendo que mesmo quando não a vemos ou por impossibilidade pessoal ou porque por algum outro motivo ela mesma se ocultou, ela continua no céu da nossa vida a guiar-nos e irá aparecer de forma segura para nos mostrar já não o caminho, mas o lugar de repouso e de encontro. Dos vários títulos atribuídos a Jesus, um deles é o que encontramos no livro de consolação de João, o Apocalipse, a Estrela da manhã, conforme vemos em Apocalipse 22:16: “Eu sou a raiz e a geração de David, a resplandecente estrela da manhã.” Ele é a nossa estrela da manhã. Não uma estrela qualquer, mas, note-se, a resplandecente Estrela da Manhã. O seu brilho é o mais intenso que possamos imaginar e Ele guia os nossos passos, o nosso caminhar vacilante ou ousado, em tempos de fartura ou de penúria, em tempos de refrigério ou em tempos de angústia. E é curioso que é num livro de consolação, o Apocalipse, que os homens transformaram num livro de terror, que encontramos este título magnífico – o nosso rei é a nossa estrela da manhã. O seu brilho é próprio, não é reflectido, é intenso, brilhando na escuridão das nossas incertezas. Com Ele, nasceu um novo dia, que, como diz o hino, será um dia de justiça, um dia de verdade, um dia em que haverá na Terra a paz, em que será vencida a morte pela vida e a escravidão enfim acabará. Este é o nosso rei. A ele queremos servir.

Soli Deo gloria

SAC, 9.Dez.2020

OS DOIS SENHORES

Os Dois Senhores

Dr. Jorge Pinheiro

2021dez20 Jorge Pinheiro _ peq
Texto: Mateus 6:19-34.
O Sermão no Monte está estruturado por agrupamentos de assuntos.

Neste capítulo, encontramos sete temas diferentes, embora inter-relacionados. Nesta secção, detectamos quatro temas distintos, interligados, a saber:

vv. 19-31 – o tesouro no céu.
vv. 22-23 – o olho puro.
v. 24 – os dois senhores.
vv. 25-34 – a solicitude da vida.

1. O tesouro no céu (vv. 19-21)

Não está errado ter um tesouro ou trabalhar para ele – o versículo 20 declara: mas ajuntai tesouros no céu. O problema está não no tesouro em si mas na sua localização e natureza. Estes versículos contrastam a Terra e o Céu.

Não nos limitemos a considerar “céu” como sinónimo do domínio do espiritual, morada de Deus, vida depois da morte: Terra aponta para o relativo, o imanente, o passageiro; Céu aponta para o absoluto, o transcendente, o permanente.

O nosso tesouro – o que mais apreciamos – deve estar situado e depositado no domínio do Absoluto, o qual não está sujeito ao desgaste do Relativo.

Na Terra, todo o tesouro está sujeito a desgaste por causas naturais – traça e ferrugem – ou sociais – os ladrões que minam e roubam.

Onde está o nosso tesouro está o nosso coração. O que significa que o nosso coração tem de estar num tesouro imperecível. Por isso, devemos dizer “NÃO” a toda a tentativa de transformar os tesouros perenes em tesouros perecíveis. O Evangelho não gira à volta de riquezas materiais.

Este texto fala então de valores e do seu fundamento, não da realização de boas obras como passaporte para obter as graças de Deus.

2. A candeia dos olhos ou os olhos puros (vv. 22-23)

A candeia ilumina. O que ilumina o nosso corpo são os nossos olhos. Quanto mais intensa for a candeia, mais claras se tornam as coisas.

O nosso olhar tem de ver o mais claramente possível. Aqui, olhos referem-se não apenas ao nosso órgão da visão mas aos meios que nos permitem relacionar com o exterior. Para uns, os olhos são os ouvidos, para outros é o raciocínio, a reflexão. Caso contrário, os cegos estariam excluídos das bênçãos das bem-aventuranças.

É costume dizer que colhemos o que semeamos mas não menos é verdade que semeamos o que colhemos. Neste tema, Jesus retoma a lição e significado do tema do sal e da luz (Mateus 5:14), embora numa outra perspectiva.

3. Os dois senhores (v. 24)

Aqui, Jesus coloca em oposição duas realidades antagónicas: Deus e mamon. Mamon significa apenas dinheiro, riqueza ou tesouro. Este tema está intimamente relacionado com o primeiro.

Mamon não é um demónio, mas podemos transformá-lo em demónio, se permitirmos que ele ocupe o lugar que pertence a Deus.

Não podemos servir dois senhores. A nossa fidelidade tem de ser para com aquele de quem dependemos. Se não dependemos de Deus, então transformamo-nos em senhores de Deus. O mesmo em relação às riquezas.

Já vimos que onde estiver o nosso tesouro, aí estará o nosso coração. Já vimos também que não está errado termos tesouros. Mas temos de ser seus senhores e não seus servos.

Quando a Igreja se preocupa só com o dinheiro, deixou de servir Deus. Paulo diz que o amor ao dinheiro é a raiz de todo o mal.

Jesus parte de uma realidade comum – impossibilidade de servir dois senhores – para uma realidade essencial: impossibilidade de emparceirar Deus com outras entidades, por muito importantes que elas possam ser e por muito relevante que o seu papel possa ser nas nossas vidas.

4. Ansiedade com as solicitudes da vida (vv. 25-32)

Vivemos num mundo com o qual nos relacionamos e, por causa disso, entramos numa situação de dependência, de resolução de necessidades que vão surgindo e que precisam de ser supridas. São necessidades tanto básicas como complexas, muitas delas dependentes do sistema de organização da sociedade em que vivemos.

Se Deus cuida das básicas, também cuida das complexas.

Como Igreja, não podemos (nem devemos) descurar nenhuma dessas necessidades. As nossas necessidades individuais e colectivas variam em grau de intensidade e de importância, podendo variar de indivíduo para indivíduo. E algumas só podem ser satisfeitas quando outras já estiverem resolvidas. Vejamos algumas:

Necessidades básicas: alimentação, vestuário, habitação, possibilidades de rendimento.
Necessidades emotivas: auto-estima, amizades, carinho, compreensão.
Necessidades intelectuais: aprender, manifestar e explorar capacidades cognitivas ou artísticas.
Necessidades sociais: relacionamentos com indivíduos, empresas e sociedades simples ou complexas.
Necessidades espirituais: realização dos nossos anseios pelo transcendente, pelo divino.

As necessidades, pelo seu peso e importância, podem esmagar-nos ou querer esmagar-nos, mas Jesus apela à confiança em Deus – vv. 31-32.

Isso só se consegue se a nossa relação com Deus for a de pai para filho – v. 32 – vosso Pai.
5. Conclusão

Se a nossa confiança estiver em Deus, nem podemos (ou devemos) ignorar a situação nem devemos entrar em pânico – Deus vela por nós. Mas para isso, devemos buscar primeiro o reino de Deus e a sua justiça ou rectidão. E todas as outras coisas nos serão acrescentadas.

SAC, 9.Março.2021

A ENTRADA TRIUNFAL

A Entrada Triunfal
Mateus 21:1-17

2021dez02 JorgePinheiroDr. Jorge Pinheiro

Este capítulo de Mateus refere-se ao período do ministério de Jesus a que se convencionou chamar a Semana da Paixão de Cristo. Ou seja, dá início ao relato dos acontecimentos que irão desembocar na prisão, julgamento, morte e ressurreição de Jesus.

Este facto é importante porque nos encaminhamos rapidamente para o clímax da vida de Jesus, para o momento fundamental da vinda do Salvador a este mundo – a glorificação de Deus na redenção da humanidade através da obra vicária e expiatória de Jesus Cristo.

Sem menosprezo por tudo quanto Jesus fez e disse até este momento, podemos afirmar que sem os acontecimentos que os evangelistas vão narrar a partir deste episódio, a passagem de Jesus por este mundo nunca O elevariam à posição que Ele alcançou na cruz e que foi ratificada na Sua ascensão aos céus.

Como Cristãos, esta é a fase mais importante e significativa da nossa relação com Deus e aquela que nos permite confessar com toda a certeza e garantia que nos tornámos filhos de Deus.

Este capítulo refere seis episódios ocorridos em apenas dois dias da estada de Jesus em Jerusalém:

 no primeiro dia, a entrada triunfal de Jesus na cidade e a purificação do templo;
 no segundo dia, a figueira que secou a uma ordem de Jesus, a discussão sobre a natureza do baptismo de João Baptista e duas parábolas, a dos dois filhos e a dos lavradores maus.

A sequência dos quatro primeiros eventos é confirmada pelos outros dois evangelhos sinópticos, embora Lucas omita o episódio da figueira.

Diz o evangelho que Jesus entrou em Jerusalém montado num jumentinho, dando assim cumprimento ao que fora anunciado pelo profeta Zacarias: Alegra-te, ó filha de Sião, exulta, ó filha de Jerusalém. Eis que o teu rei virá a ti, justo e salvador, pobre e montado sobre um jumento, sobre um asninho, filho de jumenta. (Zacarias 9:9).

É preciso entender que na cultura judaica da época, o jumento e a mula eram considerados montadas nobres que os reis e os ricos cavalgavam. Para tanto, basta consultar as seguintes passagens do Antigo Testamento:

Débora e Barac dirigem-se aos poderosos de Israel: Vós, os que cavalgais sobre jumentas brancas, que vos assentais em juízo… (Juízes 5:10);
Abraão foi num jumento de Berseba ao monte Moriá: Então se levantou Abraão pela manhã de madrugada e albardou o seu jumento… (Génesis 22:3);
Dois juízes de Israel, gente poderosa, eram donos de jumentos: E tinha este [Jair] trinta filhos, que cavalgavam sobre trinta jumentos…; E tinha este [Abdom] quarenta filhos e trinta filhos de filhos, que cavalgavam sobre setenta jumentos… (Juízes 10:4; 12:14);
Balaão ia montado numa jumenta: Viu, pois, a jumenta o anjo do Senhor, que estava no caminho com a sua espada desembainhada… (Números 22:23);
Parte da riqueza de Job incluía mil jumentos: E assim abençoou o Senhor o último estado de Job, mais do que o primeiro, porque teve catorze mil ovelhas e sei mil camelos… e mil jumentas… (Job 42:12).

Assim, quando Jesus entra na cidade santa de Jerusalém, vai numa montada digna de uma categoria real, o que indica a sua elevada posição. Atendendo a que partiu d’Ele a ideia de ir montado num jumento, leia-se um meio de transporte régio, isso significa que estava a enviar uma mensagem a quem o recebesse – o rei aproxima-se da cidade.

Por isso, não admira que tenha sido recebido com gritos de hosana (Mateus 21;9; Marcos 11:9) e aclamado como rei pela multidão, conforme Lucas regista (Lucas 19:38).

Recordemos que em Aramaico, hosana significa “peço-te a salvação.” Jesus foi recebido com pedidos e aclamações de salvação, sendo assim reconhecido como aquele que pode conceder a salvação. Jesus é de facto o rei salvador.

Jerusalém não era uma cidade qualquer. Nela situava-se o templo, o ponto central da devoção judaica, a razão de ser da sua existência, um lugar sacratíssimo por natureza. Por estas razões, Jerusalém era considerada a cidade santa por excelência. Disso dá conta o Salmo 137:5-6:

Se me esquecer de ti, ó Jerusalém, esqueça-se a minha dextra da sua destreza, apegue-se-me a língua ao paladar se me não lembrar de ti, se não preferir Jerusalém à minha maior alegria.

Por essa razão, na sua visão apocalíptica, João vê a descer do céu a grande cidade morada de Deus, que designa por santa Jerusalém (Apocalipse 21:10).

A cidade de Jerusalém era já conhecida nos tempos de Abraão (Génesis 14:18) como cidade de Salém, cujo rei, Melquisedeque, era sacerdote do Deus Altíssimo e que, para o autor de Hebreus, representava uma figura de Cristo (Hebreus 7).

Apesar de os Israelitas estarem já instalados em Canaã, a terra prometida a Abraão, a cidade de Jerusalém permaneceu nas mãos de amorreus e jebuseus até ser conquistada por David (2 Samuel 5:9), razão pela qual passa a ser conhecida também pela designação de “cidade de David.” Mais tarde, este rei transforma-a na capital do reino, ordenando que nela ficasse instalada a Arca da Aliança.

Após a morte de David, Salomão levanta o templo que se tornará não apenas o centro de adoração da nação, mas também local obrigatório de peregrinação.

Mas apesar de todos esses atributos de santidade, apesar de nela estar a entrar “O rei que vem em nome do Senhor” (Lucas 19:38), numa aclamação esfusiante de alegria e de confiança, é nela que o Salvador é morto, condenado pelo sistema religioso ortodoxo, por aqueles que tinham a obrigação de que estavam incumbidos de zelar pela preservação e difusão da revelação divina e condenado talvez por alguns dos que à Sua chegada à cidade O aclamavam.

Antevendo o fim que a cidade Lhe destinava, ao chegar a Jerusalém Jesus chora sobre ela: Ah! Se tu conhecesses também ao menos neste teu dia o que à tua paz pertence,” conforme Lucas regista (Lucas 19:42).

Nos evangelhos, vemos que Jesus chorou pelo menos duas vezes: uma, por ocasião da morte do Seu amigo Lázaro (João 11:35) e neste episódio da Sua chegada à cidade santa. Muito provavelmente, de forma segura, terá chorado em outras duas ocasiões: quando nasceu, porque todo o bebé chora ao nascer, sinal de que está vivo e quando orava no Getsémani. A angústia que Ele experimentou naquele momento (Mateus 26:37) levou-O a confessar “A minha alma está cheia de tristeza até à morte” (Mateus 26:38). Lucas regista que a angústia era tal que o “Seu suor se transformou em grandes gotas de sangue” (Lucas 22:44).

Após a Sua entrada triunfal, Jesus dirige-se ao templo, onde já estivera antes pelo menos uma vez, por ocasião da Festa dos Tabernáculos e onde faz um dos mais fantásticos e poderosos pronunciamentos: Se alguém tem sede, venha a mim e beba (João 7:37).

O templo era uma estrutura muito complexa. À volta do santuário em si, estendia-se de forma hierárquica uma série de átrios ou pátios. Por ordem decrescente de importância e a partir do santuário, o átrio dos sacerdotes, o átrio dos homens ou de Israel, o átrio das mulheres e o átrio dos gentios.

O santuário estava dividido e duas secções: o Lugar Santo e o Lugar Santíssimo, separados por uma grossa dupla cortina que se rasgaria de alto a baixo por ocasião da morte de Jesus. No Lugar Santo, encontrava-se o altar do incenso, o candelabro de sete braços ou Menorá, sempre aceso, e a mesa dos pães da proposição renovados todas as semanas. Quanto ao Lugar Santíssimo, era uma câmara vazia ao tempo de Jesus mas nela deveria estar a Arca da Aliança entretanto perdida. Nele entrava o sumo sacerdote uma vez por ano, no Dia da Expiação, ou Yom Kippur, o dia mais sagrado para os Judeus, em que era oferecido um sacrifício pelos pecados de todo o povo, confessados ou omitidos.

Todo o conjunto era uma estrutura que podemos classificar com um cunho profundamente hierárquico e concêntrico.

Quando o evangelho diz que “Jesus entrou no templo de Deus e expulsou todos os que vendiam e compravam no templo e derribou as mesas dos cambistas” (Mateus 21:12), temos de entender que “templo” aqui se refere não ao santuário duplo propriamente dito, mas ao local onde o edifício se erguia. Muito provavelmente, o local onde esta cena ocorreu terá sido o átrio dos gentios mais propício a uma actividade comercial de compra de animais para o sacrifício e de transacção cambial.

De facto, ali era o local onde os devotos judeus compravam os animais que iam sacrificar e onde se trocavam as diversas moedas em curso no resto do Império Romano pela moeda corrente no templo, o xéquel.

Não custa imaginar que, tratando-se de uma transacção comercial, o lucro estivesse presente, beneficiando quem vendia. Como também não custa admitir a existência de um aproveitamento por parte da classe sacerdotal, que exercia o seu poder sobre tudo quanto se passava no templo. Desde sempre a indústria religiosa deu bastante lucro. Esse não é um fenómeno novo e ainda hoje está presente.

Mas mesmo sendo um local de transacção comercial e cambial, aquele átrio não deixava de ser um local sagrado, por fazer parte de toda a estrutura do templo.

Por esse motivo, Jesus indignou-se e justificou com a Escritura o Seu acto de derrube das mesas dos cambistas, exclamando: Está escrito: a minha casa será chamada casa de oração. Mas vós a tendes convertido em covil de ladrões. (Mateus 21:13). Ao agir assim, Jesus teve sem dúvida em mente Isaías 56:7 e principalmente Jeremias 7:11: “É, pois, esta casa que se chama pelo meu nome, uma caverna de salteadores aos vossos olhos? Eis que eu, eu mesmo, vi isso, diz o Senhor.”

Antes de se retirar para Betânia para repousar e depois de limpar o local, Jesus ainda teve ocasião para se disponibilizar a curar enfermos (v. 14) e para provocar uma reacção de agrado de meninos que O aclamavam, e de indignação por parte dos principais dos sacerdotes.

As acções de purificação respaldadas pela Escritura suscitam sempre a aclamação dos simples e dos puros e a indignação dos poderosos que vêem nelas uma ameaça às suas posições de privilégio.

Não tenhamos dúvidas: toda a acção de purificação terá de ter sempre o respaldo da Escritura e ela nunca virá pela instrumentalidade de quem está preocupado em última instância em defender os seus interesses pessoais.

Ora, à semelhança do povo israelita que tinha uma cidade santa, centro e razão da sua existência, assim também cada um de nós tem a sua cidade santa. Para uns, será o seu país, a sua cidade de origem ou de habitação, o seu bairro ou a sua rua. Para outros poderá não ser nenhum equipamento urbano mas talvez seja uma propriedade, um bem adquirido ou uma realização pessoal. Para outros ainda, será a família, um grupo de amigos ou uma colectividade que lhes seja querida.

Mas seja qual for a natureza e característica da nossa cidade santa, que mesmo profana é santa para nós, temos todos uma cidade que consideramos santa.

Uma lição que extraímos deste episódio da chegada de Jesus à cidade santa dos Judeus é que “o que vem em nome do Senhor” quer entrar na nossa cidade. Disso é reflexo o texto apocalíptico de João: Eis que estou à porta e bato… (Apocalipse 3:20).

Que Ele está a bater à porta da nossa cidade não há dúvida alguma. Que Ele quer entrar na nossa cidade, essa é uma certeza inabalável.

Que Ele entre na nossa cidade! Que O possamos aclamar com hosanas e com o reconhecimento de que o rei está a chegar. Que da nossa cidade Ele não possa dizer que ela não conhece o que à sua paz pertence, mas que nossa seja a herança da Sua promessa: Deixo-vos a paz, a minha paz vos dou. (João 14:27). Não a paz dos cemitérios, não a paz adiada para as moradas celestes, não a paz da fuga para a frente, mas a paz que excede todo o entendimento, aqui e agora (Filipenses 4:7).

De igual modo, à semelhança da estrutura do templo em Jerusalém, todos nós temos um templo. Ou melhor ainda, todos nós somos um templo, conforme diz Paulo: Nós somos o templo de Deus e o Espírito Santo habita em nós. (1 Coríntios 3:16). A verdade é que todo o ser humano é um templo dedicado ao deus da sua devoção e tudo nesse templo, que o mesmo é dizer, em toda a vida tudo gira em torno do deus a que esse templo está dedicado.

Tal como a estrutura do templo de Jerusalém se ordenava em círculos concêntricos hierarquizados, assim nós, qual templo de Deus, temos a nossa vida ordenada em círculos concêntricos hierarquizados. É possível que a ordem dessa concentricidade não seja rigorosamente igual em todos nós, mas que ela se manifesta na existência de cada um, disso não haja dúvidas.

E à semelhança do templo, em que mesmo o círculo mais distante do centro, ou seja, o átrio dos gentios em relação ao Lugar Santíssimo, continuava a ser terreno sagrado e casa do Senhor Deus, assim também no nosso templo que somos nós, o círculo mais afastado do nosso centro e que muitas vezes se confunde (ou confundimos) com o profano, continua a ser terreno sagrado, casa de Deus, templo do Senhor.

Ou seja, não há sector não há área, não há círculo de interesse em que nos movimentemos que esteja longe ou separado da influência da presença de quem habita no nosso Lugar Santíssimo, desde que nos consideremos e sejamos templo do Senhor.

Se somos templo do Senhor, a Sua presença não pode estar arredada de nenhuma área de actividade em que estivermos envolvidos.

Quando porventura conspurcamos ou temos por independente alguma área do nosso templo, não nos espantemos se a seu tempo o nosso rei intervier, derribando as mesas que deixámos que cambistas estranhos ao templo as erigissem e se apossassem de um átrio que de direito pertence ao Senhor.

A Deus toda a glória.

SAC, 28.Setembro.2021

O Pedido de Tiago e João

O Pedido de Tiago e João

Mateus 20:17-28

Jorge PinheiroDr. Jorge Pinheiro
Para lá de Mateus, este episódio encontra-se também em Marcos 10:32-45 e Lucas 18:31-34. Em conjunto, apresentam aspectos e pormenores diferentes entre si e, por isso, são relatos que exigem uma harmonização. Como base, utilizaremos o registo de Mateus.

v. 17: E subindo Jesus a Jerusalém.

Jesus encontrava-se na Pereia (Mateus 19:12) e dirigia-se para Jerusalém via Jericó.

Se quisermos ver algum simbolismo neste trajecto, podemos dizer que Jesus seguia da cidade da guerra (Jericó) para a cidade da paz (Jerusalém). Basta recordar que Jericó está ligado a um episódio de guerra, conquista e destruição e que o termo Jerusalém pode ser traduzido como “cidade da paz”. Esse é o caminho que Ele nos convida a trilhar. A cidade da guerra foi conquistada pela força das armas mas a cidade da paz foi conquistada pelo sofrimento e pela entrega. Não há paz se não estivermos dispostos a experimentar o sofrimento e uma entrega pessoal.
v. 17: chamou de parte os discípulos e no caminho disse:

Jesus não se limitou a enviar os discípulos sozinhos: “Ele chamou-os a si.”
Jesus não guardou para si as suas intenções: “Disse.”
Jesus não ficou na retaguarda, resguardado “no caminho”. Ele não só acompanhou os discípulos, estando no meio deles, como toda a Sua acção não foi passiva mas activa. “No caminho” – ele caminhou.

E que lhes disse Ele?

v. 18: Eis que vamos para Jerusalém.

Note-se o para. Não iam a mas para. Não iam de passagem mas para ficar. Iam com um propósito. A nossa caminhada rumo à paz tem de ter um propósito e o propósito de lá ficar, dispostos a tudo de ordem pessoal para que a paz permaneça. Se queremos ser soldados, temos de ser soldados da paz, um pouco à semelhança dos actuais bombeiros que a si próprios se designam por “soldados da paz” e que apagam fogos, resgatam vidas, carregam os velhos, protegem os desprotegidos, recuperam bens perdidos, evitam ou minoram catástrofes, seguindo o seu lema “Vida por Vida”. Da minha parte, homenagem e louvor aos bombeiros.

E que iam fazer a Jerusalém?
vv. 18-19: O Filho do homem será entregue aos príncipes dos sacerdotes e aos escribas e condená-lo-ão à morte e o entregarão aos gentios para que dele escarneçam, o açoitem e crucifiquem e ao terceiro dia ressuscitará.

Jesus revela aos discípulos o que se vai passar. Torna-os participantes ou pelo menos conhecedores das Suas intenções. O clímax, o ponto máximo da vida de Jesus aproxima-se e Ele quer que os Seus não fiquem na ignorância.

Que exemplo para os líderes actuais. Quantos deles não agem em segredo, não envolvendo os liderados numa tarefa que se pretende comum e escondem a totalidade ou parte dos planos de acção? E quantos não apelam ao sacrifício, ao esforço e à entrega dos seus liderados e se excluem de toda essa entrega que se pretende e tem de ser comum?

Esta é a terceira vez em Mateus que Jesus revela que irá passar por aquilo que é conhecido como a Sua Paixão – a Sua condenação, morte e ressurreição:

• Mateus 16:21 – no seguimento da confissão de Pedro, reconhecendo a messianidade de Jesus;
• Mateus 17:22-23 – após a cura do epiléptico;
• Mateus 20:18-19 – antecedendo o pedido de Tiago e João.

Há uma quarta ocasião, em Marcos 9:31, que antecede a discussão de quem seria o maior no reino de Deus.

No versículo 18, vemos que Jesus declara sem rodeios que, uma vez entregue aos responsáveis religiosos, será por estes condenado à morte. Quando a religiosidade se sobrepõe à espiritualidade, a verdade torna-se incómoda e o caminho a seguir é eliminá-la sem hesitações. Este é um processo que se repete vez após vez em todos os quadrantes da vida em sociedade e que tragicamente não está ausente em muitas hostes ditas cristãs. Que o Senhor nos guarde e nos ajude para que a nossa teologia pessoal ou grupal não se sobreponha à limpidez cristalina da revelação do Evangelho.

É que, cuidando estarmos a ser guardiões da verdade, podemos acabar por ser um tropeço para todos os que, com um coração quebrantado e arrependido, conforme exige a Escritura, querem apresentar-se doentes como estão Àquele que os pode curar e restaurar. Em vez de os deixarmos entrar para serem tratados e curados, exigimos a apresentação de uma credencial assinada por uma qualquer entidade, por norma abstracta, controladora do acesso ao Evangelho.

O versículo 19 menciona os gentios. Aqui, referem-se à autoridade romana. Ao tempo, qualquer condenação à morte tinha de ser ratificada pelas instâncias judiciais romanas. Ao longo da História, este é um debate que continua em aberto: quem matou Cristo? Judeus ou Romanos? Há quem queira encontrar um terceiro executor: Deus. E enchem páginas de teologia, demonstrando que foi Deus quem matou Jesus, abandonando-O à Sua sorte porque, encarnando o pecado, Jesus levou Deus a não ter outro remédio senão afastar d’Ele a Sua presença. Que evangelho macabro, sinistro e malvado esse.

Se dizemos que Jesus morreu por nós, então só nos resta concluir que foi o nosso pecado que O matou. E se foi o nosso pecado que O matou, não podemos deixar de O amar e de nos esforçar, até mais não podermos, por não pecar, procurando a cada momento identificar a nossa vida com o modelo de ser humano perfeito que Ele preparou para nós.

O anúncio de Jesus está sem dúvida carregado de drama, de tragédia, de tristeza, de desespero e de impotência. Se isso vai acontecer, nada há que possamos fazer para o impedir e a única saída viável e natural parece ser o desespero.

Mas – e a grande notícia e consolo que o Cristianismo oferece – o processo não acaba ali – Ele ressuscitará. E se é verdade que, conforme predisse, foi entregue aos religiosos, foi condenado por estes à morte e foi escarnecido, açoitado e crucificado pelos gentios e morreu segundo as leis da Natureza, se tudo isso, repitamo-lo, é verdade porque aconteceu, também não é menos verdadeira a Sua ressurreição. Jesus ressurgiu, está vivo, intercede por nós e voltará segunda vez, não como um D. Sebastião mítico, mas como Rei dos reis e Senhor dos senhores.

Após esta declaração, Lucas (Lucas 18:34) afirma que os discípulos não captaram o seu significado e alcance. Realmente, é estranho porque, conforme já vimos, esta não era a primeira vez que Jesus anunciava os Seus sofrimentos. Talvez porque essa afirmação contradissesse a ideia que eles tinham da majestade do Messias. Ou talvez porque lhes parecesse impossível ou improvável que a rejeição de Jesus por parte do sistema chegasse a esse ponto, apesar de serem testemunhas de que a mensagem de Jesus incomodava muita gente e ia ao arrepio do que os outros mestres ensinavam e praticavam.

Desconhecemos a razão dessa incompreensão dos discípulos. Mas ela acaba por nos ser familiar e contemporânea. Quantos de nós, embalados por uma interpretação tradicional das Escrituras, tornada quase um dogma, temos dificuldade em conciliar determinadas passagens da Revelação com aquilo que tomamos como adquirido, com aquilo que consideramos a única interpretação possível?

O versículo 20 introduz uma divergência com o relato de Marcos (Marcos 10:35). Mateus diz que o pedido é feito pela mãe de Tiago e João, enquanto Marcos afirma que o pedido foi feito pelos dois irmãos.

São possíveis duas respostas:

• A mãe dos irmãos encontrava-se no grupo (versão de Mateus).
• Os dois irmãos verbalizaram um pedido ou desejo expresso da mãe (versão de Marcos).

No entanto, apesar desta discrepância, ambos os relatos são concordes quanto ao conteúdo e matéria do pedido. E o pedido consiste em que Jesus concedesse aos dois a possibilidade de um se sentar à direita e o outro à esquerda de Jesus quando este ocupasse o trono do Seu reino (v. 21).

Muito provavelmente, ainda lhes ecoava a garantia dada por Jesus de que os discípulos se assentariam sobre doze tronos para julgarem as doze tribos de Israel (Mateus 19:28).

Pelo pedido, e ainda mais pela resposta de Jesus, não é descabido concluir que os discípulos, ou pelo menos estes dois, ainda não tinham percebido as características especiais do Reino de Cristo, que não se regia segundo as normas de um qualquer reino humano.

Esta conclusão detecta-se no início da resposta de Jesus: Não sabeis o que pedis (v. 22). No resto da resposta, Jesus sonda os pensamentos dos dois irmãos, forçando-os a declarar em que moldes viam o Reino de Cristo, uma vez que Jesus prossegue: Podeis beber o cálice que eu hei-de beber e ser baptizados com o baptismo com que sou baptizado?

Na aparência, a resposta dos dois leva a supor que eles teriam entendido a essência do Reino. Quanto a mim a resposta não é mais do que um adiamento, de um compasso de espera.

O cálice aponta para o que nos pode acontecer nesta vida, no nosso encontro com as circunstâncias. Pode representar tanto o que de bom nos acontece (Salmo 16:5 – O Senhor é a porção da minha herança e do meu cálice; Salmo 23:5 – …unges a minha cabeça com óleo, o meu cálice transborda; Salmo 116:13 – Tomarei o cálice da salvação; Jeremias 16:7 – …nem lhes darão a beber do copo de consolação) como o que de mau nos atinge (Salmo 75:8 – Na mão do Senhor há um cálice, cujo vinho ferve, cheio de mistura e dá a beber dele; Apocalipse 14:10 – Também o tal beberá do vinho da ira de Deus que se deitou, não misturado, no cálice da Sua ira.)

Como Cristãos, quando se fala em cálice, recordamos de imediato a oração no Getsémani: Passe de mim este cálice. (Mateus 26:39), em que o cálice está associado ao sofrimento experimentado por Cristo.

Na segunda metade da resposta, Jesus refere o baptismo: Podeis ser baptizados com o baptismo com que sou baptizado? O baptismo aponta para uma dissolução pessoal e voluntária num meio que nos é hostil e até fatal. Etimologicamente, significa “mergulhar” e mergulhar bem fundo. Nesta resposta de dupla interrogação, estão implícitos o sofrimento (o cálice) e a morte (o baptismo).

A resposta dos dois não se fez esperar: Disseran-Lhe eles: Podemos. (v. 22). A história futura confirma que, conscientes ou não das implicações da resposta, estavam a ser sinceros. Tiago foi o primeiro apóstolo a conhecer o martírio – foi morto à espada por Herodes Agripa (Actos 12:1), enquanto João viveu o exílio na inóspita ilha de Patmos, onde teve a visão do Apocalipse.

Podemos dizer, como Robert Little, que “Tiago morreu como mártir e que João viveu como um mártir”. Recordemos que mártir significa testemunha.

Relembremos que Tiago e João pertenciam a um grupo mais estrito dos Doze em que se incluía Pedro, testemunha do momento alto da vida de Jesus – a Sua transfiguração; recordemos também que no jardim do Getsémani Jesus os tomou à parte, tendo eles testemunhado a tristeza e a angústia do Mestre e que João era chamado “O discípulo amado”, muito próximo de Jesus, em cujo peito se reclinava.

Talvez por todos estes episódios os dois irmãos se julgassem credores ou merecedores de uma benesse especial de Cristo e, por isso, se tenham atrevido a formular tal pedido.

Sentar-se à direita e à esquerda da majestade implica o reconhecimento de segunda autoridade do reino. O que os dois irmãos estavam a pedir era nem mais nem menos que uma posição de autoridade sobre todos os outros agentes de autoridade, apenas inferior à autoridade suprema. Recorde-se que Jesus está sentado à mão direita do poder de Deus (Lucas 22:69).

Jesus confirma (v. 23) que os dois beberiam o cálice e seriam baptizados com o Seu mesmo baptismo (Marcos 10:39). Isso de facto cumpriu-se como já vimos. No entanto, sentar-se à direita e à esquerda, isso estava fora de questão (Mateus 20:23). É assim que este texto deve ser entendido e não como se a Jesus faltasse o poder para o conceder. Foi como se Jesus dissesse: “Essa atribuição não depende dos vossos esforços nem é uma recompensa pela vossa dedicação.”

De facto, no reino de Deus há dois agentes intervenientes: Deus e o Homem. É o que vemos em João 3:16 que também nos diz que o que Deus tinha a fazer já fez (os verbos de que Deus é sujeito estão todos no passado) e que naquilo que é da competência de Deus o Homem não pode intervir. Em sequência, o Homem tem o seu papel a desempenhar no avanço do Reino, que é a sua entrega e dedicação. A atribuição do galardão é da competência exclusiva de Deus.

E esta resposta de Jesus fala à nossa condição e deixa pistas preciosas. Por O seguirmos voluntária e comprometidamente aceitamos ter de passar pela dor, pelo sofrimento, pela angústia, se essa for a porção que Ele nos tem destinada, sabendo que Deus, como justo juiz, nos dará o galardão que nos tem reservado. Caso contrário, se tivermos olhos para o galardão que nós próprios nos atribuímos, estaremos a agir como mercenários, cujo interesse é egoísta e não a busca da maior glória de Deus, conforme Jesus já ensinou: Buscai primeiro o reino de Deus e a sua justiça e todas estas coisas vos serão acrescentadas. (Mateus 6:33).

A reacção dos outros discípulos (v. 24) não podia ser senão de indignação. De indignação não porque considerassem errada a motivação dos dois irmãos mas porque eles se lhes anteciparam no pedido que eles próprios não recusariam solicitar.

Como é tão contemporânea essa atitude. A tentação e a atracção pelo poder são um mal a que poucos conseguem resistir. A História está cheia de exemplos de homens que transformaram a acção do Reino de Deus num mero jogo de interesses, em que o oportunismo campeia e em que a subjugação do outro, recorrendo ao medo e às maldições, é moeda corrente que ganha mais validade com a pompa de títulos e a elocução de pretensas profecias justificativas.

Nos versículos 25-28, Jesus deixa bem clara a natureza do Reino de Deus na sua relação com o poder.

Entre os reinos deste mundo, a ambição maior é o exercício do poder baseado na subjugação dos súbditos. Todos os meios e armas são lícitos para se alcançar essa subjugação que é a deterioração de uma submissão genuína e voluntária. Duas dessas armas são o medo e o servilismo. Em conjunto, transformam os súbditos numa massa alienada, acrítica e supersticiosa.

No Reino de Deus, as coisas não funcionam assim. Tal o líder, assim os liderados. O nosso Rei assumiu a nossa natureza, identificou-se com as nossas fraquezas, sentiu as nossas insuficiências, experimentou as nossas angústias. Riu-se connosco. Chorou connosco. Despiu-se de qualquer título, não impôs a Sua realeza, mas caminhou pelas mesmas pedras que os nossos pés calcorrearam.

Quem entre vós quiser fazer-se grande seja vosso serviçal. (v. 26)

Só pode ser grande aquele que não dispensa quem está no mais fundo do vale mais escuro e o traz para a luz, mostrando-lhe que há um que vê em cada um o potencial para que a glória de Deus encha a terra como as águas cobrem o mar.

A Deus toda a glória.

O Mancebo Rico

O Mancebo Rico
Mateus 19:16-30

Jorge Pinheiro 7Dr. Jorge Pinheiro

Este texto, cujas passagens paralelas se encontram em Marcos 10:17-31 e Lucas 18:18-30, narra o encontro entre Jesus e um mancebo rico que pretende saber o que fazer para, segundo as suas palavras em Mateus, “conseguir a vida eterna” ou “herdar a vida eterna”, conforme as descrições de Marcos (10:17) e Lucas (18:18). Na Sua resposta, Jesus indica-lhe que deve guardar os mandamentos, recomenda-lhe que se desfaça dos seus bens em favor dos necessitados e ordena-lhe que O siga (vv. 17,21). Esta resposta que não agrada ao mancebo e em especial o comentário de Jesus que aponta a incompatibilidade do amor ao dinheiro e a entrada no gozo da vida eterna deixam os discípulos de Jesus perplexos ante as exigências que o Mestre coloca.

Na realidade, neste texto podemos detectar duas secções: uma, a indagação do mancebo e outra, a perplexidade dos discípulos.

E a pergunta que se impõe, como de resto sempre se impõe quando lemos um texto da Escritura é: que lições podemos extrair destes incidentes que tenham relevância para a nossa vida diária e existencial? Essa, de resto, deve ser uma pergunta constantemente presente sempre que lemos um texto da Escritura. Só assim ela se torna viva e actuante.

Da leitura dos três relatos, podemos concluir que se tratava de um mancebo. É verdade que Marcos o retrata como um homem e Lucas como príncipe, enquanto Mateus especifica que se tratava de um mancebo. Por estas qualificações, não erramos se afirmarmos que era jovem e muito provavelmente com algum poder na sociedade. Também dele sabemos que era rico (Mateus 19:22) ou muito rico (Lucas 18:23) e piedoso (Mateus 19:20).

Na Sua resposta, “Guarda os mandamentos” (v. 18), Jesus refere, por esta ordem, os seguintes mandamentos do Decálogo (vv. 18-19):

 não matarás – 6º mandamento;
 não cometerás adultério – 7º mandamento;
 não furtarás – 8º mandamento;
 não dirás falso testemunho – 9º mandamento;
 honra teu pai e tua mãe – 5º mandamento.

Todos estes mandamentos eram do conhecimento de todo o judeu, principalmente dos mais piedosos e poder ser encontrados em Êxodo 20:1-17 e Deuteronómio 5:6-21, sendo alguns repetidos em Levítico 19:3-16.

A par destes, Jesus acrescenta um outro que é muito do conhecimento e do agrado dos Cristãos: “Amarás o próximo como a ti mesmo”. Curiosamente, este mandamento é repetido por Jesus em Mateus 22:39 quando interrogado acerca do grande mandamento. Esta máxima é também referida por Paulo em Romanos 13:9 e Gálatas 5:14 e por Tiago (2:8).

Talvez por esta insistência do Novo Testamento, muitos terão pensado que Jesus seria o autor desta frase, condensando e resumindo nela todo o carácter e intenção da Lei, tornando-a um mandamento para os Seus seguidores. Mas verdade é que Jesus não é o autor desta máxima ou mandamento. Na realidade, Jesus limita-se a citar o que já fora declarado na Lei – Levítico 19:18. No máximo, d’Ele se poderia dizer que Jesus alça esta declaração à categoria de mandamento. Mas nem isso podemos afirmar porque este texto acompanha toda uma série de outros mandamentos. Basta ler o contexto para se perceber que era nessa categoria que os Judeus conhecedores o aceitavam.

Concluímos, então, que, na sua resposta ao mancebo, Jesus não ”inventa”, não apresenta nenhuma nova doutrina, não revela uma novidade até então desconhecida. Esse mandamento – porque era de facto um mandamento – encontrava-se na Lei e tinha a mesma força, poder e autoridade que qualquer outro dos mandamentos. Infringi-lo seria incorrer nas punições previstas na Lei.

Jesus alinha então este mandamento com todos os outros que anteriormente cita (vv. 18-19). E a verdade é que o mancebo confessa ou reconhece que se trata de um mandamento, uma vez que responde: “Tudo isso tenho guardado desde a minha mocidade” (v. 20).

Todos sabemos que os mandamentos dados por Deus a Moisés no monte Sinai e inscritos em duas tábuas de pedras são em número de dez. Por isso se chamam Decálogo – dez mandamentos. Por norma, os estudiosos costumam dividir esses 10 mandamentos em duas secções:

- do 1º ao 4º mandamento referentes à posição do crente face a Deus;
- do 5º ao 10º mandamento referentes ao relacionamento do crente para com o seu semelhante.

De facto, nos quatro primeiros tudo gira em torno da divindade – Deus é único, não aceita a idolatria ou Sua representação, exige respeito pela Sua natureza, estabelece um tempo obrigatório de adoração. Quanto aos restantes, verificamos que o seu incumprimento ofende directamente a pessoa humana tanto no que ela é, no que tem, nos seus compromissos assumidos e na sua integridade.

Na resposta de Jesus, salta à vista que Ele não refere nenhum dos 4 primeiros mandamentos. Todos os que menciona referem-se não à relação vertical com Deus mas à relação horizontal com o nosso semelhante.

Será que os quatro primeiros são menos importantes ou que era nessa qualidade que Jesus os considerava? Naturalmente que não, porque a adoração e o respeito pela divindade eram as marcas distintivas de toda a mentalidade e vivência judaicas e estavam no centro de toda a mensagem e ministério de Jesus. Acresce que o simples nome de Israel lembrava constantemente ao Judeu que pertencia a um povo que levava em si a marca de Deus, o seu Elohim.

Qual a razão de Jesus ter mencionado apenas mandamentos relacionados com o próximo? Diversas serão as razões, mas podemos apontar duas:

Em primeiro lugar, todo o sistema religioso e principalmente o judaico e, por extensão, o cristão gira em torno desses dois eixos atrás referidos:
- o vertical – relação com a divindade;
- o horizontal – relação com a humanidade.

É fácil a relação vertical porque apenas Deus e o sujeito, ou seja, o crente, estão envolvidos, o que faz com que seja fácil mostrar junto dos semelhantes que a nossa relação com Deus é sem mácula. Basta encher a boca com o nome de Deus, basta decorar alguns mandamentos (não todos, porque isso dá muito trabalho) para que os outros vejam que reconhecemos a Escritura como base de fé, basta estar presente no dia da celebração e oferecer sacrifícios, se tal for ou não necessário (e quando não é necessário, oferece-se porque reforça o carácter de piedade), basta mostrar que se contribui para a obra de Deus, de preferência de um modo patente ou inferido para que os outros saibam que se contribui. Ou seja, basta apresentar de si próprio uma imagem de religioso piedoso, cumpridor dos preceitos estabelecidos.

Já a relação horizontal é mais complicada e exige mais de nós. Alguns, para a cumprir, vêem o próximo em si mesmos e, em consequência, aplicam a si mesmos o que deve ser aplicado ao outro e assim pensam estarem a cumprir essa relação. Para esses, tudo gira em torno de si próprios, das suas necessidades e anseios, porque eles são o próximo de si mesmos. Um pouco em jeito dos monarcas absolutos para quem l’État c’est moi, o Estado sou eu, frase atribuída ao Rei-Sol de França, Luís XIV, epítome do rei absoluto, e que ainda hoje tem muitos imitadores nos mais diversos campos, o religioso inclusive.

O problema com os que assim procedem é que tratam Deus como um palhaço e o seu semelhante como uma alimária. A religião dos tais é de pura hipocrisia, totalmente falha de uma gota sequer de espiritualidade.

Que Deus nos guarde e nos ajude a vigiar para que a nossa atitude perante Ele seja de coração aberto, no reconhecimento da nossa incapacidade e necessidade, para que os nossos olhos e ouvidos sejam lestos a colocar o nosso semelhante em primeiro lugar.

Perante este quadro, é fácil então negligenciarmos o próximo e centrarmo-nos apenas no nosso umbigo porque só temos olhos para a nossa necessidade pessoal e, esquecidos de que estamos neste mundo para sermos testemunhas vivas do amor de Deus, vivemos como exilados da pátria celeste, não vendo a hora de lá chegar. E vivemos por antecipação com uma vida cinzenta, aparentemente feliz mas na realidade destroçados pelas amarguras desta existência, porque “o mundo está no maligno.”

A segunda razão da resposta de Jesus prende-se com a religiosidade e respectiva prática do mancebo. Tudo indica que transformara toda a sua religiosidade numa prática formal dos preceitos da Lei. Em última análise, podemos concluir sem receio de errar que a sua religiosidade era mais moral que espiritual. Ou seja, respeitava os mores, os costumes que a Lei estabelecia. É verdade que uma espiritualidade verdadeira e pura gera sempre uma moral respeitada que se identifica com uma ética profunda, mas o inverso não é necessariamente verdade. Ou seja, dito de uma forma mais simples, a pessoa, o crente, pode ser religiosa e não ser espiritual, enquanto o crente espiritual manifesta a sua religiosidade sincera e consistente. De igual modo, o crente espiritual manifesta sempre uma ética irrepreensível, enquanto o moralista não é necessariamente um crente espiritual. O que significa que o crente deve caracterizar-se por ser primeiro espiritual. Sendo-o, torna-se obrigatória e consequentemente um praticante ético.

O que é ser um crente espiritual? De entre as muitas abordagens e definições, para facilitar a compreensão, podemos dizer, repetindo Jesus, que espiritual é o crente que ama a Deus acima de todas as coisas e o próximo como a si mesmo, numa atitude de auto-renúncia em que coloca o outro (Deus e o próximo) em primeiro,

Desta verdade faz eco São Paulo quando estabelece um confronto a carne e o espírito e designa por carnais os que não são espirituais.

Ora, quando um crente substitui a espiritualidade pela moralidade está longe de cumprir a Lei de Deus e não pode assim ser reconhecido como espiritual.

E foi isso que Jesus disse ao mancebo. E foi essa falha que detectou no mancebo. O mancebo era uma pessoa de elevada craveira moral mas de baixa estatura espiritual. Por isso, Jesus disse-lhe que lhe faltava uma coisa (Marcos 10:21). E que coisa era essa que lhe faltava? Faltava-lhe a renúncia, ou melhor, a auto-renúncia.

É o que vemos em Mateus 19:21: Se quiseres ser perfeito, vai, vende tudo… e segue-me. O mancebo, enquanto judeu, era filho de Abraão e esta resposta de Jesus era-lhe familiar porque lhe recordaria sem dúvida a ordem de Deus a Abraão: Anda na minha presença e sê perfeito. (Génesis 17:1). Deus não precisa de muitas palavras para dizer tudo quanto nos é necessário. Quanta teologia encontramos nessa simples e curta frase! Duas coisas Deus nos exige: andar na Sua presença e ser perfeito, sendo que “ser perfeito” é o resultado de “andar na Sua presença.” E como é grande a tentação de invertermos essa ordem. Só seremos perfeitos se andarmos na Sua presença. Se não andarmos na Sua presença, nunca seremos perfeitos. E andaremos na Sua presença se O amarmos acima de todas as coisas e o próximo como a nós mesmos.

Mais uma vez, Jesus não inventa nada e limita-se a trazer à lembrança a necessidade de operacionalizarmos o que já foi dito e revelado.

Abraão recebeu essa ordem depois de deixar tudo para trás. Em Ur, era rico, era abastado, era príncipe e, como tal, era poderoso. O mancebo preenchia todas essas qualidades abraâmicas mas faltava-lhe una coisa: abandonar Ur. E a sua Ur eram as suas riquezas, era aquilo que lhe dava auto-sustento, era aquilo que lhe garantia estatuto. Como é difícil ao moralista abandonar a sua Ur!

O versículo 22 revela isso sem qualquer margem para dúvidas: Retirou-se triste, porque possuía muitas propriedades. Ou seja, apesar de toda a sua religiosidade e de toda a sua moralidade, faltava-lhe a capacidade de auto-renúncia, de estar com o coração aberto à necessidade do outro, disposto a suprir-lhas com tudo quanto era seu.

Ante a reacção do mancebo, Jesus extrai a conclusão lógica que deixa os discípulos mergulhados na estupefacção: É difícil um rico entrar no Reino dos Céus. (v. 23).

Como curiosidade, note-se que no original grego o versículo 23 refere “o reino dos céus” (), enquanto no versículo 24, que repete a ideia anterior mas com outro fraseado, o termo usado é “reino de Deus” (). Isto indica-nos que em Mateus as duas expressões são sinónimas e referem-se à mesma realidade, ao contrário do que alguns comentadores pretendem, estabelecendo uma diferença entre ambas as designações. Elas referem-se ao mesmo conceito.

Se no versículo 23 a ideia que fica é da dificuldade, já no 24, é de impossibilidade. De facto, é impossível um camelo passar pelo fundo de uma agulha, a menos que o camelo fosse quase microscópico ou a agulha fosse a de um gigante de uma altura quilométrica.

Sendo as suas afirmações equivalentes, podemos afirmar que a dificuldade de um rico entrar no reino dos céus não é diferente da sua impossibilidade.

Alguns, achando exagerada a afirmação do versículo 24, pretendem suavizá-la, afirmando que “camelo” se refere não a um animal mas a uma linha grossa, uma vez que, no Grego, a diferença entre “camelo” e “linha grossa” ou “cabo” é de uma simples letra.

Outros, aceitando que “camelo” se refere a um animal, centram a atenção na “agulha” e pretendem que esta se refere a uma porta muito estreita supostamente existente nas muralhas da cidade e conhecida por agulha.

Ora, a primeira posição é contrariada pela linguística e a segunda pela história. Só nos resta aceitar que Jesus disse exactamente o que o versículo declara, tanto mais que há um provérbio semelhante no Talmude, em que “camelo” é substituído por “elefante.”

Mas então, dirão, estamos na presença de um exagero. Sim, de facto é uma linguagem de exagero ou, em termos técnicos, diríamos que esta é uma figura de estilo chamada hipérbole, em que se faz uma afirmação exagerada.

E quem não usa hipérboles no seu discurso, quantas vezes no seu dia a dia? Que o digam os amorosos, os pescadores e os que estão envolvidos numa qualquer campanha eleitoral.

De resto, vamos encontrar uma outra hipérbole no discurso de Jesus. Basta irmos a Mateus 18:24 e 28. Traduzindo esses valores, temos que:

Dez mil talentos correspondem a 60 milhões de dracmas (6 seguido de sete zeros) ou 216 toneladas de prata, uma vez que 1 talento equivale a 6000 dracmas e uma dracma a 3,6 gramas de prata. Sendo uma dracma equivalente a um dinheiro (ou denário) e um dinheiro a um dia de trabalho, temos que 10000 talentos correspondem a 60 milhões de dias de trabalho (ou cerca de 166 mil anos). Esta era a dívida do servo ao rei. Em contrapartida, o servo era credor de 100 dinheiros ou 100 dias de trabalho. O que significa que o que ele devia ao seu rei era 600 mil vezes mais do que aquilo que o seu conservo lhe devia.

Sendo honestos, fácil é reconhecer que nesta parábola Jesus usa uma hipérbole. E que hipérbole!

Fica então esta verdade: o amor ao dinheiro impede a nossa entrada no reino dos céus. E por que razão nos impede?

1º – torna-se um ídolo, relegando assim Deus para um plano inferior;
2º – leva-nos, à semelhança do mancebo rico, a considerar que a riqueza nos dá primazia e direito de aquisição dos bens espirituais: “Que bem farei para herdar a vida eterna?” (v. 16). Em todo o bem que o rico possa fazer, o seu dinheiro está presente, transformando esse acto em transacção comercial;
3º – em última instância, as riquezas tornam-se o nosso Deus porque passamos a depender delas e não d’Aquele que é dono de todo o ouro e de toda a prata;
4º – por via desta troca de prioridades, esquecemo-nos da nossa insuficiência e contingência e tornamo-nos paradoxalmente escravos do nosso dinheiro, com a ilusão de que somos nós quem está no controlo;
5º aceitamos um prato de lentilhas, trocando o que somos pelo que temos, esquecendo que trocamos o permanente pelo passageiro. E ecoam-nos as palavras de Jesus: “Não ajunteis tesouros na terra, onde a traça e a ferrugem tudo consomem” (Mateus 6 :19-20).

E é em sequência que devemos entender a afirmação de Jesus no versículo 29:

“Todo o que tiver deixado
casas
ou irmãos ou irmãs
ou pai ou mãe
ou mulher
ou filhos
ou terras
por amor do meu nome, receberá cem vezes tanto e herdará a vida eterna.”

“Que farei para herdar a vida eterna?” (Marcos 10:17; Lucas 18:18) era a pergunta do mancebo. A resposta de Jesus não podia ser mais clara: para herdar a vida é necessária, é indispensável, é obrigatória a auto-renúncia. E auto-renúncia que pode implicar ou envolver o que nos é mais caro:

- a nossa família – que nos liga à nossa origem, simbolizada pelos pais; que nos liga à nossa identidade e ao nosso presente, simbolizados pelos irmãos; que nos liga ao nosso futuro, simbolizado pelos filhos; que nos liga à nossa intimidade, simbolizada pela esposa;
- mas também a nossa casa e as nossas terras que nos apontam o nosso espaço, o nosso refúgio, o nosso sossego e as nossas realizações pessoais.

Este é o preço que nos é exigido para herdarmos a vida eterna e que se obtém da nossa parte por um acto voluntário de auto-renúncia.

Ora, esta auto-renúncia não se obtém nem está dependente do nosso dinheiro, que está dependente e ligado ao ter, ao transitório, mas está relacionada com a vontade, com a essência daquilo que mais profundamente nos caracteriza – a nossa aceitação de amar Deus acima de todas as coisas e o próximo como a nós mesmos.

Por essa razão, a bênção suprema que é a posse da vida eterna e as bênçãos maiores ou menores que experimentamos nesta caminhada de amarmos Deus e o próximo não estão dependentes do muito ou pouco que possamos ter em dinheiro ou em bens materiais.

A posse de riquezas é sempre contingente e não se traduz necessariamente em sinal de bênção divina. É verdade que na Sua soberania, Deus pode abençoar-nos com bens materiais e quando isso acontece devemos estar-Lhe gratos, sabendo que com muito ou com pouco, Deus estará sempre connosco a guiar-nos no nosso percurso e nas nossas escolhas.

Pela reacção dos discípulos, verificamos que eles ficaram aturdidos com a elevada fasquia que Jesus estabeleceu.

Muito provavelmente, à semelhança de muitos Cristãos dos nossos dias levados ao engano pelas sereias e arautos de um evangelho materialista, mercantilista e plutocrata, ou seja, em que o dinheiro é rei e mola real do evangelho e prova da bênção de Deus, os discípulos também pensariam que um rico piedoso, cumpridor dos preceitos da Lei é prova das bênçãos de Deus, tanto mais que não faltavam textos que prometiam ser-se colocado por cabeça e não por cauda (Deuteronómio 28:13).

Por isso, exclamam com um nó na garganta (v. 27): “Eis que deixámos tudo e te seguimos. Que receberemos?”

Eles tinham andado com Jesus, tinham recebido os Seus ensinamentos, tinham testemunhado os Seus milagres e mesmo assim foi necessário que Jesus lhes recordasse duas verdades fundamentais:

1. A nossa relação com Deus não é de natureza comercial; e
2. O amor ao dinheiro é a subordinação do Deus criador aos interesses mesquinhos do que é passageiro.

Quantas vezes o Cristão cede à tentação de esquecer a verdade pura e cristalina do evangelho, substituindo a sua mensagem pelos devaneios e fantasias da nossa imaginação!

Que nós, os que nos confessamos seguidores de Cristo, tenhamos presente os Seus ensinamentos e a Sua promessa de que aquilo que nos espera nesta vida e na vindoura ultrapassa em muito tudo quanto possamos imaginar ou desejar ou que o dinheiro nos possa dar.
A Deus toda a glória!

As Três Histórias

As Três Histórias

Jorge Pinheiro 6Dr. Jorge Pinheiro

 

 
Porque Herodes tinha prendido João e tinha-o manietado e encerrado no cárcere por causa de Herodias, mulher de seu irmão Filipe. E mandou degolar João no cárcere. (Mateus 14:3,10).
E tendo mandado que a multidão se assentasse sobre a erva, tomou os cinco pães e os dois peixes e, erguendo os olhos ao céu, os abençoou e, partindo os pães, deu-os aos discípulos e os discípulos à multidão (Mateus 14:19).
E respondendo Pedro, disse-lhe: “Senhor, se és Tu, manda-me ir ter contigo por cima das águas.” E Ele disse: “Vem.” E Pedro, descendo do barco, andou sobre as águas para ir ter com Jesus (Mateus 14:28).
Introdução

Com este capítulo, chegamos a meio da narrativa do evangelho segundo Mateus. E chegamos a meio não apenas da narrativa em si mas de toda a trama histórica narrada. A partir daqui, a história encaminha-se para o seu fim num ritmo cada vez mais acelerado e intenso.

É verdade que nos capítulos da segunda metade ainda vamos encontrar parábolas, mas os milagres portentosos são em número reduzido e a narrativa culmina com o que podemos designar de milagre supremo – a ressurreição de Cristo, o triunfo da vida sobre a morte, a vitória do bem sobre o mal, a garantia de que o plano de Deus para a humanidade geral e o ser humano particular se cumprirá até ao último pormenor.

Este capítulo 14 como que encerra toda uma sequência de episódios que revelam um novo olhar sobre o desígnio de Deus para a humanidade, revelando o modo como Deus sempre quis que fosse encarado e vivido pela coroa da Sua criação. Na verdade, partindo da Lei escrita e revelada, Jesus conduz os Seus ouvintes na descoberta da substância e do espírito dessa mesma Lei como que a destapando e revelando o carácter de Quem concedeu essa lei aos homens.

Todo este percurso e discurso de Jesus suscita incompreensão, estupefacção e finalmente perseguição. A partir dele, o autor como que vai encerrando cada capítulo de ensino, de controvérsia, de milagres da primeira parte do seu evangelho e encerra todo o seu período de ensino, mostrando Jesus num recolhimento com os Seus discípulos, de que é prova o Sermão Profético (Mateus 24, 25), o último grande sermão de Jesus. Depois, encaminha-se no Seu jeito sereno para um momento de recolhimento pessoal junto do Pai, em preparação para o maior drama de toda a história humana – a Sua crucifixão e morte, que culminará na ressurreição.

Mas centremo-nos no capítulo 14 e nas lições que dele podemos extrair. Ele é composto por três episódios em que o carácter de narrativa histórica é dominante. Nele, acabamos por encontrar três estórias que não se limitam a uma mera narrativa de factos mas em que podemos descobrir ensinamento profundo. Esses episódios são:

1. A morte de João Baptista.
2. A primeira multiplicação de pães.
3. Jesus andando sobre as águas.

E há uma primeira lição a extrair do conjunto destas três histórias. À semelhança dos que nelas intervêm, cada um de nós tem também uma história individual, ou melhor, um conjunto de histórias parcelares que, no seu conjunto, formam um todo, a nossa história pessoal. E em cada uma dessas histórias parcelares da nossa história pessoal, há lições que podemos extrair que, de acordo com a nossa aprendizagem, podem influenciar toda a sequência futura. Ou, dizendo de outra forma, em cada episódio da nossa vida, Deus fala-nos e revela-nos as Suas intenções. Em momento nenhum se aplica com tanta justeza e pertinência o que Jesus dizia: “Quem tem ouvidos para ouvir ouça!”

Estejamos, então, atentos ao que Deus nos quer dizer em cada episódio vivido na e da nossa vida.
1. A Morte de João Baptista

Por vezes, numa história detemo-nos mais na caracterização de certos elementos da narrativa, que tanto podem ser personagens vivas, humanas ou não, como elementos decorativos e olvidamos o cerne da história, a sua verdade nuclear, aquela que no fundo mais interessa explorar, entender e reter.

No caso da morte de João Baptista, somos tentados a querer saber quem é este Herodes, como se chamava a dançarina e somos capazes de citar em sequência pormenorizada a execução do Baptista, porque é um elemento que nos horroriza. E por sabermos reproduzir a história, convencemo-nos de que nada mais há a acrescentar e de que a conhecemos ao ínfimo pormenor. Mas esse é um conhecimento epidérmico. Se queremos avançar, não podemos ficar apenas com as verdades superficiais. Não podemos contentar-nos com as verdades da superfície das coisas. É que essas verdades são apenas a pele de todo um corpo doutrinário e didáctico que lhe subjaz. E como é rico esse corpo! Nunca nos cansemos de meditar nas histórias da Escritura, sabendo que elas escondem tesouros inesgotáveis. Cabe a cada um deixar-se guiar pelo Espírito Santo que, segundo a garantia de Deus, nos guiará em toda a verdade.

Há algumas verdades que detectamos no episódio da morte de João Baptista, umas mais agradáveis que outras.

A primeira contradiz o falso evangelho que tem vindo a inquinar as igrejas. Esse falso evangelho vende um veneno com rótulo de medicamento. Esse veneno diz que se o crente sofre é porque não tem fé e que a sua vida tem de ser um rol de vitórias contínuas. É verdade que essas afirmações não são falsas em si, mas para serem entendidas têm de ser explicadas ou, se quisermos utilizar uma linguagem mais técnica, têm de estar sujeitas a uma hermenêutica correcta e exigente para que a exegese apresentada não induza ao erro, num despautério despudorado.

É que essas afirmações ditas como chavões de frases feitas assumem-se como mantras mágicos. Ora, as varinhas de condão só existem e funcionam nas histórias de encantar.

Perguntamos:

João Baptista não tinha fé?
Paulo não tinha fé?
Tiago não tinha fé?

E poderíamos continuar, culminando com Jesus que, apesar de tudo quanto disse e fez, sofreu uma morte e um sofrimento horríveis.

Foi por terem fé que todos esses gigantes souberam enfrentar a adversidade, fitando-a não com olhos de carneiro mal morto mas de águia penetrante e de leão possante, dizendo-lhe sem medo que maior é o que está em nós e que nada nos pode separar da convicção que conquistou o nosso ser.

Outra lição que este episódio nos ensina é que os poderosos não escapam ao escrutínio da justeza divina e que se não arrepiarem caminho do seu mau viver acabam transformados em assassinos. E esse é um dos alimentos que o falso evangelho nos quer obrigar a tragar – a sedução pelo poder. Como esse evangelho não tem lugar para o sofrimento, abraça despudoradamente o poder e, com isso, embriagado com as vantagens que o poder oferece, transforma-se em ditador e não hesita em mandar assassinar as vozes discordantes. Embora não literal, esse assassínio funciona como tal.

Em jeito de esclarecimento do pormenor, este Herodes chamava-se Herodes Antipas e era filho de Herodes, o Grande, morto há cerca de 30 anos. Quanto à dançarina, o seu nome era Salomé filha de Herodes Filipe.
2. A primeira multiplicação de pães

Neste episódio, com poucos pães Jesus alimenta uma multidão de, pelo menos, cinco mil pessoas.

Curiosamente, exceptuando o milagre da ressurreição de Cristo, este é o único milagre que nenhum dos quatro evangelhos omite. O outro episódio comum aos quatro é a unção dos pés de Jesus pela mulher pecadora. De acordo com o relato de João, foi na sequência deste milagre que Jesus pronunciou o Seu discurso famoso de ser o pão da vida (João 6:51).

Ninguém ignora o valor do pão e o papel que ele desempenha na dieta alimentar de cada povo. É talvez o alimento de que nunca nos enjoamos de ingerir. No registo popular, pão é sinónimo da própria vida. Quantas vezes um pedinte esmola não dinheiro mas um pão para sobreviver… Pão é também sinónimo dos nossos rendimentos que nos permitem fazer frente às despesas da vida corrente. Não é raro ouvir a expressão: “Esta actividade, este trabalho é o meu ganha-pão.” Neste episódio, podemos dizer, então, que uma das personagens centrais é precisamente o pão, com tudo aquilo que ele representa.

Deixemos de lado a interpretação simbólica que alguns fazem do número de pães e peixes e de pessoas e cestos tanto na primeira como na segunda multiplicação (numa, 5 pães, cinco mil homens e 12 alcofas; na outra, sete pães, quatro mil homens e sete cestos). É verdade que os números falam e muitas vezes têm um valor simbólico e talvez aqui possam ser relevantes, mas parece-me que qualquer extrapolação é pura especulação. Por isso, é preferível ficarmos com aquilo que, com segurança, podemos extrair do tesouro desta arca.

E de novo, em contraste com os bispos do falso evangelho que, arrimados na sua posição de poder, não têm qualquer rebuço em explorar os seus fiéis, sugando-os até ao tutano em nome de uma religiosidade hipócrita e distorcida, Jesus preocupa-se em satisfazer as necessidades dos que O seguem, condoendo-se com a sua condição. E pegando no pouco que Lhe apresentam, multiplica esse pouco quase até ao infinito, satisfazendo e mostrando que quando entregamos nas boas mãos do Mestre o que temos, Ele é capaz de, do pouco, fazer muito.

Ao mesmo tempo, este episódio revela-nos que, quantas vezes, temos nas nossas próprias mãos os recursos necessários para que a acção divina os transforme em bênção para os outros. Não rejeitemos nem menosprezemos aquilo que temos entre mãos como coisa pouca e sem valor, mas decidamo-nos a entregá-lo àquele que com a sua bênção pode fazer muito mais do que pensamos ou imaginamos.

Deus tem dado capacidades a cada um de nós, umas vezes na medida da nossa fé, outras em resultado do nosso engenho e labor. Mas seja qual for a origem da nossa capacidade, ela é o que temos e é com ela que temos de percorrer o caminho da vida.

Há outras lições que podemos extrair deste episódio e que mencionaremos sucintamente:

a. Nem sempre o ambiente do milagre é o mais “santo” (14:15 – ocorreu no deserto).
b. Muitas vezes o milagre acontece numa hora nada convidativa (14:15 – a noite aproximava-se).
c. Nem sempre as vozes de quem, pelo seu trajecto pessoal tem uma relação privilegiada com a revelação divina, é de estímulo (14:15 – o discípulos queriam ver-se livres da responsabilidade de resolver o problema).
d. Embora o milagre seja milagre, isso não significa que a ordem e o planeamento estejam ausentes (14:19 – Jesus ordenou que a multidão se sentasse na erva).
e. O milagre sacia em pleno a nossa necessidade e permite que através de nós outros também possam beneficiar dele (14:20 – o número de alcofas levantadas era superior ao número de pães apresentados).

Muitas mais lições poderíamos extrair mas estas são suficientes para nos aguçar o apetite e levar-nos a mergulhar num texto tão rico como este.

 

3. Jesus anda sobre o mar

Este é um episódio que relata uma impossibilidade física. A verdade é que consideramos impossibilidade física no estado presente do nosso conhecimento actual da natureza do mundo e das capacidades do corpo humano. Se, por hipótese, no futuro a ciência descobrir e provar que o corpo humano tem a capacidade de levitar desde que estejam reunidas as condições necessárias, andar sobre as águas deixará de ser uma incapacidade física. Mas mesmo que, por hipótese, isso se venha a provar possível, este episódio não deixa de ser considerado milagre.

Claro, tudo depende do que entendemos ser a definição de milagre e a sua natureza íntima. Salvo melhor opinião, parece-me que reduzir o milagre ao mero prodígio da realização de uma tarefa inexplicável à época em que ocorre, é uma definição muito pobre. E porquê? Porque uma vez explicado, o suposto milagre deixa de ser milagre. Parece-me que a visão de João é mais rica e mais segura – um milagre é um sinal da presença real de Deus, seja o episódio explicável ou não, replicável ou não. De resto, temos o caso de Moisés: as duas primeiras pragas foram replicadas (Êxodo 7:22; 8:7). Teremos de concluir que essas pragas não foram milagres por terem sido replicadas? Teremos de concluir que, por terem sido replicadas, elas são de qualidade inferior às restantes oito?

Então, isso significa que a nossa atenção não se deve deter o facto de Jesus ter andado sobre as águas, embora isso seja extremamente importante e crucial em todo o ensinamento que extraímos deste episódio.

Na verdade, podemos concluir que o andar sobre as águas foi um meio utilizado por Jesus para chegar a um fim maior.

E o facto de Pedro ter andado sobre as águas prova que o corpo humano tem a capacidade de ser o palco do milagre. Perante a dúvida e o pedido de Pedro, Jesus limita-se a dizer-lhe que ponha o pé a caminho.

A evidência e a certeza diziam a Pedro que caminhar sobre as águas era uma impossibilidade física, mas a sua confiança naquele que ele considerava capaz da realização de qualquer prodígio incitava-o a não olhar para a impossibilidade mas para a certeza da comunhão com aquele que tinha as palavras da vida eterna, como mais tarde irá confessar (Mateus 16:16; João 6:68). Curiosamente, em João esta confissão surge depois do episódio de Jesus a andar sobre as águas.

Apesar de testemunhas do muito que haviam visto Jesus realizar, apesar de terem recebido de Jesus a ordem expressa de atravessarem o mar e de O esperarem na outra margem, apesar da garantia de que o vulto que viam no crepúsculo ainda escuro era Ele, mesmo assim a dúvida e o medo apossaram-se dos discípulos. O que viam não era o Mestre amado mas um fantasma. Quando não encontramos explicação para o que vemos e não compreendemos, transformamo-lo em inexplicável e envolvemo-lo nas roupagens da nossa imaginação. Quão fácil é vermos um fantasma na acção miraculosa e inexplicável do evangelho e deixarmo-nos sucumbir nos braços da dúvida e do medo. Por vezes, nem mesmo a voz suave de quem nos salva nos sossega e exigimos uma prova palpável de quem surge como o impossível.

Convenhamos que Pedro não agiu mal ao pedir a Jesus que lhe desse prova de ser Ele mesmo e não o fruto da sua imaginação e do seu medo. Esse é um gesto a seguir e a imitar. Perante a dúvida, o medo, a angústia, a adversidade, o desconhecido, avançamos baseados numa palavra de autoridade.

E foi o que aconteceu com Pedro. Enquanto se manteve confiante na palavra recebida, avançou ignorando as circunstâncias, olhos fitos em quem era o seu destino. Enquanto se manteve seguro na palavra de ordem, manteve-se vitorioso sobre as águas. Quando deu ouvidos à voz da circunstância, geradora dos seus medos, a sua base de sustentação deixou de ser a palavra e o poder daquele a quem até o mar e o vento obedecem (Mateus 8:27). O resultado não podia ser outro senão ver o chão a fugir-lhe debaixo dos pés.

E a terminar, uma palavra sobre a finalidade do milagre, tanto mais que este episódio que narra um milagre termina com a realização de milagres de cura. Para que serve um milagre? Para que queremos um milagre? A ordem que Jesus deixou aos Seus discípulos não foi: “Eis que faço de vós fazedores de milagres”, mas foi antes: “Eis que faço de vós pescadores e ensinadores de homens. E é apenas quando ensinamos e pescamos que os milagres ocorrem. “Os sinais seguirão aos que crerem” (Marcos 16:17). O milagre é sempre um sinal de que a presença de Deus é real. Se o prodígio não redunda na manifestação da presença de Deus e na glorificação do Altíssimo, então estamos na presença de uma fantochada travestida de evangelho.

Que Deus nos guarde de não crermos que Ele seja capaz de ainda hoje realizar milagres e nos guarde também de Lhe roubarmos a glória e de transformar a proclamação do evangelho numa ópera bufa de mau gosto.

 

O Senhor do Sábado

O Senhor do Sábado
Mateus 12

Jorge Pinheiro 5Dr. Jorge Pinheiro
Este é um capítulo marcado por quatro grandes temas, a saber:

1. Jesus é Senhor do sábado – vv. 1-8
Incidente marcado pelo facto de, num sábado, os discípulos de Jesus terem colhido e comido espigas para saciarem a fome.
2. Cura de um homem com a mão mirrada – vv. 9-21
Podemos situar neste incidente, os primeiros sinais de oposição a Jesus.
3. Cura do endemoninhado cego e mudo – vv. 22-32
A oposição detectada no incidente anterior prossegue com mais força neste, em que surge a famosa declaração do pecado imperdoável – a blasfémia contra o Espírito Santo (vv. 31-32).
4. Polémicas – vv. 33-50
Aqui nesta secção, encontramos três momentos em que a polémica está instalada:
4.a. O fruto das árvores – vv. 33-37 – pelo fruto se conhece a árvore.
4.b. A reinterpretação do milagre de Jonas – vv. 38-45 – face ao pedido de um sinal por parte de alguns escribas e fariseus, Jesus afirma-se superior a Jonas e a Salomão, reforçando o que já havia dito antes, de ser maior que o Templo (v. 6)
4.c. A família de Jesus – vv. 46-50 – Jesus aponta as qualificações necessárias para se ser membro da Sua família.
1. Jesus é Senhor do sábado – vv. 1-8

Em resumo, podemos afirmar que este é um capítulo rico em incidentes, em ensinamentos e em polémicas e marca o início do período de oposição do ministério terreno de Jesus. Passado um primeiro momento de interesse por parte dos Judeus em geral e da Nomenklatura religiosa em particular, face ao ensino e ministério de alguém que se torna no início difícil de ser catalogado, acaba o estado de graça de Jesus e começa a oposição que os religiosos Lhe vão mover, tornando-se cada vez mais intensa.

E tudo porque os discípulos de Jesus, com fome, ao colherem e comerem espigas num sábado infringem o que a tradição baseada nos mandamentos da lei moisaica impunha a todo o membro da comunidade judaica.

É verdade que a Lei de Moisés estipulava a guarda do sábado (Êxodo 20:8-11). Esta é uma ordem geral, mais tarde especificada quanto ao modo de ser cumprida (Êxodo 23:10-13; 31:12-18, por exemplo). Como sucede com as leis, que são apresentadas na generalidade e depois discutidas na especialidade, a observância do sábado levantava sempre e necessidade da sua aplicação às diversas incidências provocadas pelas situações do dia-a-dia e que a própria evolução da sociedade exigia. Assim, a par do estipulado na Lei escrita, foi surgindo toda uma normativa legal e legislada, codificada numa lei oral e tradicional, tanto mais que a observância do sábado era basilar e central em todo o ordenamento religioso judaico. A par da circuncisão, a observância do sábado era uma das marcas identificadoras do judeu piedoso, cumpridor da lei moisaica. Como estudiosos da Lei, os fariseus assumiam-se como seus grandes defensores e guardiães máximos e, por isso, estavam atentos a qualquer tentativa de infracção da norma imposta.

Naturalmente que em tese, em princípio, a observância da Lei e a sua especificação e aplicação a cada situação da vida não estão erradas em si. No entanto, como Marcos 2:27 salienta a propósito do mesmo incidente, “o sábado foi feito por causa do homem e não o homem por causa do sábado.” Ou seja, em todo o ordenamento religioso as necessidades humanas em todos os seus domínios têm de estar presentes e ser levadas em conta, não podendo ser menorizadas.

Com este episódio, Jesus recentra as prioridades do ordenamento religioso. As normas religiosas perdem o sentido quando relegam a necessidade humana para segundo plano. Naturalmente, é muito ténue a fronteira entre os dois elementos centrais do culto a Deus – a exaltação da divindade e o lugar que o ser humano ocupa nessa exaltação – e, por vezes, é difícil encontrar o equilíbrio entre ambas essas exigências. Que o Altíssimo merece toda a preeminência não podendo o Seu lugar ser sonegado, disso não há qualquer dúvida. Mas não menos verdade é que sem a atenção devida dada às necessidades humanas, que é o outro elemento do diálogo com a divindade, o culto torna-se desequilibrado e, por isso, sem sentido.

Um profissional religioso, em caso de dúvida, recorre sempre à aplicação cega e fria da normativa religiosa, receoso de, com a sua omissão, ofender a divindade. Ora, como Jesus enfatizava, Deus é amor e compreende a nossa fraqueza, as nossas limitações, as nossas necessidades. Esse conhecimento por parte de Jesus levava-O (e levou-O) a reconhecer Deus primeiro como Pai e só depois como legislador. E nisto, Jesus divergia profundamente dos fariseus e do seu pensamento, os quais invertiam a sua relação com Deus, a quem viam primeiro como legislador e só depois como Pai de família, encarado como o senhor de muitos escravos.

Jesus salientava que se nos aproximamos de Deus como nosso Pai (que Ele é), vemo-Lo na sua faceta de amor que sentimos e experimentamos e, ao vivenciá-los (a Deus e ao amor de Deus Pai), dispomo-nos a sujeitar-nos a toda a Sua vontade, mesmo que esta eventualmente possa ir contra os nossos desejos e necessidades e fazemo-lo motivados pelo amor de um filho para com o pai e de um pai para com um filho e não pela atitude servil, motivados pelo temor de um servo face a um senhor impiedoso, mais interessado no respeito e cumprimento da lei do que numa relação paternal com um filho a quem Ele ama sem limites.

Por isso, Jesus podia proclamar: “se soubésseis o que significa misericórdia quero e não sacrifício, não condenaríeis os inocentes”. Com esta declaração, Jesus fazia eco das palavras de Oseias 6:6: “Porque eu quero misericórdia e não sacrifício; e o conhecimento de Deus, mais do que holocaustos.” Os dois, Oseias e Jesus, são unânimes quanto ao carácter e natureza de Deus, que se compraz mais em ser conhecido pelos Seus do que pelo cumprimento de toda e qualquer normativa religiosa, porque o conhecimento implica intimidade e compromisso com o objecto conhecido. Curiosamente Oseias significa salvo e Jesus significa Salvador. Caso para dizer que o Salvo e o Salvador estão sintonizados.

Mas podemos ver algo mais nesta declaração, nesta antinomia misericórdia-sacrifício. A palavra misericórdia significa literalmente um coração inclinado à miséria enquanto o termo sacrifício significa “tornar sagrado”. Ou seja, a misericórdia é um atributo da natureza de Deus, enquanto o sacrifício é um acto humano. A misericórdia vem de cima e o sacrifício vem de baixo. Ambos os movimentos devem encontrar-se no amor de Deus onde se fundem harmonicamente. Ora, se o nosso alvo é aproximarmo-nos cada vez mais de Deus, essa aproximação começa quando cultivamos em nós os elementos marcantes da natureza divina. Por isso, quando exercemos misericórdia, estamos implicitamente a confessar que nos identificamos com Deus e com aquilo que Ele quer de nós. Não admira, pois, que uma das bem-aventuranças seja precisamente: “Bem-aventurados os misericordiosos porque eles alcançarão misericórdia.” (Mateus 5:7) E na medida em que exercemos misericórdia, o sacrifício deixa de estar relacionado com coisas exteriores a nós que oferecemos a Deus muitas vezes numa ânsia de aplacar a Sua ira e passamos nós a ser o sacrifício agradável a Deus, conforme a recomendação de Paulo em Romanos 12:1-2, em que somos convidados a “oferecer-nos como sacrifício vivo, santo e agradável a Deus que é o nosso culto racional”.

E foi por compreender e conhecer a verdadeira natureza de Deus e a correcta relação que o mortal que O busca deve manter com Ele que Jesus podia exclamar num grito que ecoa pelos séculos dos séculos: “Pois eu vos digo que está aqui quem é maior do que o Templo.” O Templo significava e simbolizava o centro da adoração judaica, o ponto de encontro entre a divindade e a humanidade. Ao afirmar-se como maior do que o Templo, Jesus não apenas reivindica para si o papel que o Templo representa, mas declara sem rodeios que Ele supera tudo quanto é necessário para que o nosso encontro com Deus seja real e efectivo porque ele se realiza através de quem reúne em si o divino e o humano – o nosso sumo sacerdote, Jesus de Nazaré, o Cristo de Deus.

Curiosamente, neste capítulo Jesus afirma-se não apenas maior do que o templo, mas maior que o profeta Jonas e o rei Salomão (vv. 41 e 42).
2. Cura de um homem com a mão mirrada – vv. 9-21

O segundo episódio aborda uma situação de cura – Jesus restaura a mão mirrada de um homem. Não sabemos se era a mão direita ou esquerda, apenas que se tratava de uma mão e todos sabemos a falta que uma mão funcional nos faz. As mãos funcionais dão-nos liberdade de acção e permitem-nos realizar tarefas das mais simples às mais complicadas. As mãos são um dos meios de que nos servimos para nos ligarmos e nos identificarmos com o meio ambiente que nos envolve, tanto o próximo como o distante, tanto o terreno como o transcendente. A mão funcional agora mirrada fazia falta ao homem e diminuía-o na sua capacidade e integridade.

De novo, neste episódio, o sábado e a sua observância voltam a estar presentes. Pela narrativa, percebemos que Jesus enfrenta uma provocação por parte dos Seus opositores religiosos: “É lícito curar nos sábados?” perguntam eles. Jesus não se esconde, não se esquiva, não ignora a provocação e o desafio. O confronto não O intimida e desta vez torna-se mais contundente na denúncia da incongruência de um pensamento religioso que relega para plano secundário e inferior o ser humano, o agente que presta culto a Deus. A resposta de Jesus é demolidora e impiedosa por assim dizer. Se os seus acusadores socorrerão num sábado um animal ferido ou magoado, quiçá uma ovelha para o sacrifício, com muito mais razão aquele que é maior do que o templo tem autoridade suficiente não para ignorar o sábado mas para exercer misericórdia junto de quem, pela sua diminuição física, se apresenta diminuído e incompleto perante Deus a quem deve adorar na sua plenitude.

E é o que o pensamento religioso no seu pior está disposto a fazer – a considerar inferior a um animal o ser humano, criado à imagem e semelhança de Deus, reflexo da glória divina. Mas Jesus veio ao mundo para restaurar a pessoa caída, veio para refazer no ser humano a glória de Deus, veio para proclamar que a vontade de Deus é que o homem se apresente perante Ele na sua integridade total, aberto a toda a manifestação da glória e do poder divinos. Porque, como coroa da Sua criação (Salmo 8), Deus está interessado em ter comunhão com o único ser de toda a Sua criação capaz de um relacionamento íntimo e duradouro.

E perante este acto de misericórdia de quem é maior que o Templo, como reagem os supostos guardiães do Templo? Com planos para matar quem é o dador da vida e da saúde e que, com a Sua ressurreição, mostrou ser superior à própria morte.
3. Cura do endemoninhado cego e mudo – vv. 22-32

De novo um episódio de cura, desta vez de um homem com uma tríplice condição que o afectava tanto no aspecto físico como psicológico e espiritual. Qualquer das suas condições era dramática e impedia-o não só de comunicar devidamente com o seu semelhante por via da cegueira e da mudez, como lhe coarctava qualquer possibilidade de uma comunhão plena com o seu Deus. Ou seja, era um homem afectado na relação tanto no domínio do físico como do espiritual. E a primeira conclusão a que podemos chegar neste episódio é que o poder de Jesus de Nazaré era suficientemente abrangente e que nenhum domínio escapa à sua acção.

Mas de novo, a liderança religiosa judaica revela toda a sua inimizade para com Jesus e, num crescendo de oposição, atribui a cura de libertação à acção e intervenção das forças demoníacas. E é o que faz a cegueira provocada pelo endurecimento espiritual dos guardiães da revelação dada a Moisés provocado pelo apego a uma interpretação errónea dessa mesma revelação. Em última instância, a cegueira espiritual, travestida de ortodoxia pode levar a uma blasfémia de lesa-divindade. Na verdade, o que deveria levar ao regozijo e ao louvor a Deus pela libertação de um ser humano cativo é substituído pela blasfémia em nome de uma interpretação distorcida da revelação. Sim, porque os líderes religiosos tinham acesso à revelação divina dada através de Moisés.

E é neste episódio que surge uma das mais fortes e pungentes declarações de Jesus. Parafraseando: “Todo o pecado é passível de perdão, excepto aquele em que o Espírito Santo é blasfemado” (vv. 31 e 32). Verdade se diga que o texto não revela linearmente em que consiste essa blasfémia. Apenas ficamos a saber que há um pecado que não tem perdão e qual o objecto desse pecado – a blasfémia contra o Espírito Santo. Muitas têm sido as exegeses sobre esta declaração mas de nenhuma se pode dizer que seja a explicação final. Pelo texto, percebemos que ela surge no contexto de uma blasfémia de lesa-divindade, quando os corações religiosos mas empedernidos na sua cegueira atribuem aos demónios uma obra com o selo da divindade, em última análise identificando Deus com o Seu arqui-inimigo, Satanás. Que Deus nos ajude para, mesmo quando algo vá contra os nossos pressupostos espirituais e religiosos, estarmos abertos para saber discernir o que vem de Deus e o que não vem e termos a humildade suficiente para reconhecer o nosso erro de interpretação quando for esse o caso. Aí, só há um caminho – arrepender-nos da nossa falha, reconhecer que errámos (ou estávamos errados) e confessar a soberania de Deus. E Deus que é amor irá certamente cobrir-nos com o Seu perdão.
4. Polémicas – vv. 33-50

Nesta secção, encontramos três momentos de ensino, confronto e polémica que podemos considerar o corolário dos episódios anteriores em que a oposição dos líderes religiosos a Jesus assume forma de um modo bem vincado.

Num primeiro momento, Jesus separa as águas e estabelece uma divisão clara entre os que, como árvores boas, produzem bons frutos e os que, como árvores ruins produzem maus frutos. Estas palavras fazem ecoar o Salmo 1:3 quando o salmista canta que “o justo é como a árvore plantada junto a ribeiros de águas, a qual dá o seu fruto na estação própria”. Que a árvore que somos nós esteja plantada não num charco de águas fedorentas mas alimentada por aquele que de si mesmo disse ser a água da vida para que o nosso fruto tenha a unção do Espírito Santo.

Num segundo momento, quando Lhe pedem um sinal comprovativo da autoridade com que ministrava, Jesus limita-se a dar o sinal do profeta Jonas que esteve três dias e três noites no ventre do abismo. Numa alusão à Sua morte e ressurreição ao referir o profeta, Jesus não se coíbe de apontar a incredulidade dos seus inquiridores porque enquanto gentios se arrependeram em resposta à pregação de Jonas, os filhos do povo eleito recusam-se a reconhecer que a Sua autoridade vem de Deus, o que Lhe permite declarar ser mais do que Jonas. No seguimento, refere o episódio da rainha de Sabá, uma gentia, que se desloca da sua terra para apreciar em primeira mão a grandeza do rei Salomão. E, no entanto, perante os que Lhe pediam um sinal, estava alguém que é mais do que Salomão. É curioso notar que Jesus reivindica para si a sua superioridade em três domínios – como sacerdote (mais do que o templo) como profeta (mais que Jonas) e como rei (mais que Salomão). Esta é uma confissão de que Ele era o Messias prometido que agregava em si as três funções messiânicas que só eram reconhecidas após a respectiva unção.

Num terceiro momento, confronta a multidão com a necessidade de responder aos requisitos para se ser considerado membro da família do Cristo de Deus – todo aquele que fizer a vontade do Pai esse é irmão, irmã e mãe de Jesus, ou seja, todo aquele que observa e respeita a vontade de Deus está apto a ser considerado membro da família de Jesus. O Cristo de Deus está aberto a ter uma família a cujos membros não se envergonha de chamar irmãos. Que Deus nos abra o entendimento para, num gesto de entrega e submissão à Sua vontade, guardemos no fundo do nosso coração, a Sua Palavra que é guia e luz para o nosso caminho.

“Bem-aventurada aquela que te concebeu e os seios que te amamentaram!”

“Bem-aventurada aquela que te concebeu e os seios que te amamentaram!”

SamuelPinheiro 2017abril11

Palavras de uma mulher dirigidas a Jesus, a respeito da sua mãe Maria.
Jesus de uma forma surpreendente, mas sem deixar de ser cortês e amável, alargou esta declaração e bem-aventurança a todos os que ouvem a palavra de Deus e a guardam: “Antes bem-aventurados os que ouvem a palavra de Deus e a guardam!” (Lucas 11:27,28 – JFA).
Numa outra ocasião alguém avisa Jesus que Sua mãe e Seus irmãos estavam do lado de fora, procurando falar-lhe. Jesus responde com uma pergunta e com uma declaração com o mesmo sentido: “Quem é minha mãe e meus irmãos? E, estendendo a mão para os discípulos, disse: Eis minha mãe e meus irmãos. Porque qualquer que fizer a vontade de meu Pai celeste, esse é meu irmão, irmã e mãe.” (Mateus 12:46-50 – JFA).
Numa das suas últimas conversas com os discípulos Jesus diz-lhes e a nós também: “Vós sois meus amigos, se fazeis o que eu vos mando.” (João 15:14 – JFA). E o que é que Ele manda: “O meu mandamento é este, que vos ameis uns aos outros, assim como eu vos amei.” (Mateus 15:12 – JFA). “Isto vos mando, que vos ameis uns aos outros.” (João 15:17 – JFA).
O mandamento síntese de toda a lei, e a essência da natureza divina na qual fomos formados à Sua imagem e semelhança e da qual nos apartámos em rebeldia que ainda hoje permanece e entra pelos olhos dentro, é o amor.
Não é o amor que nos salva. Mas é Deus que é amor, em Jesus Cristo – Deus entre nós também como Homem, que nos salva mediante a expressão suprema desse amor que é a Sua morte em nosso lugar na cruz. Nenhum outro morreu por nós ou podia sequer morrer. A nossa morte não poderia ser redentora porque todos, sem exceção, pecamos. Só Aquele que nunca pecou e em que o amor é uma constante absoluta e santa, sem qualquer contaminação, nos podia salvar e nos salvou. Em Jesus somos salvos para amar.
Um intérprete da lei interpelou Jesus acerca de qual é o grande mandamento da lei. A esta pertinente questão Jesus respondeu: “Ouve, ó Israel, o Senhor nosso Deus é o único Senhor! Amarás, pois, o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todo o teu entendimento, e de toda a tua força. O segundo é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo.” Diante desta resposta o teólogo que sabia muitíssimo menos do que Jesus, mas sabia o suficiente da lei para perceber que o Mestre estava certo, assumiu: “Muito bem, Mestre, e com verdade disseste que ele é o único, e não há outro senão ele; e que amar a Deus de todo o coração, de todo o entendimento e de toda a força, e amar ao próximo como a si mesmo, excede a todos os holocaustos e sacrifícios.” Na narrativa deste evangelho a conversa acaba de um modo muito significativo mas não totalmente satisfatório. Jesus declara ao religioso: “Não estás longe do reino de Deus.” (Marcos 12:28-34 – JFA). Estava perto, mas não fazia parte. Conhecia a letra da lei, mas não conhecia o coração de Deus. O que faltava era determinante: o amor de Deus manifesto a Seu favor quando Jesus morresse na cruz também a Seu favor. Só Jesus nos pode salvar. Jesus na cruz é o holocausto e o sacrifício perfeitos e definitivos. Somos amados para poder amar de verdade e em verdade! Nada mais é preciso!
Se amamos a Deus desta forma cumpriremos os primeiros três mandamentos da lei: “Não terás outros deuses diante de mim. Não farás para ti imagem de escultura (…). Não as adorarás, nem lhes darás culto (…). Não tomarás o nome do Senhor teu Deus em vão (…).” (Êxodo 20:1-7 – JFA). Se amamos o próximo como a nós mesmos cumpriremos os restantes sete mandamentos: “Lembra-te do dia de sábado, para o santificar (…). Honra a teu e a tua mãe (…). Não matarás. Não adulterarás. Não furtarás. Não dirás falso testemunho contra o teu próximo. Não cobiçarás (…).” (Êxodo 20:8-17 – JFA). Amando a Deus só a Ele adoraremos e louvaremos. Só a Ele teremos como Senhor e como Salvador. E esta é a parte decisiva para entrarmos no Seu reino: recebermos da Sua parte o perdão de todos os nossos pecados, porque todos ficamos aquém da Sua vontade e não temos como em nós próprios de regressar à condição com que fomos criados, e mais do que isso a sermos filhos de Deus. Tudo isso só é possível em e por JESUS CRISTO! Tudo isto para vivermos em amor como o nosso Criador e Pai.

Samuel R. Pinheiro
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