O Senhor do Sábado

O Senhor do Sábado
Mateus 12

Jorge Pinheiro 5Dr. Jorge Pinheiro
Este é um capítulo marcado por quatro grandes temas, a saber:

1. Jesus é Senhor do sábado – vv. 1-8
Incidente marcado pelo facto de, num sábado, os discípulos de Jesus terem colhido e comido espigas para saciarem a fome.
2. Cura de um homem com a mão mirrada – vv. 9-21
Podemos situar neste incidente, os primeiros sinais de oposição a Jesus.
3. Cura do endemoninhado cego e mudo – vv. 22-32
A oposição detectada no incidente anterior prossegue com mais força neste, em que surge a famosa declaração do pecado imperdoável – a blasfémia contra o Espírito Santo (vv. 31-32).
4. Polémicas – vv. 33-50
Aqui nesta secção, encontramos três momentos em que a polémica está instalada:
4.a. O fruto das árvores – vv. 33-37 – pelo fruto se conhece a árvore.
4.b. A reinterpretação do milagre de Jonas – vv. 38-45 – face ao pedido de um sinal por parte de alguns escribas e fariseus, Jesus afirma-se superior a Jonas e a Salomão, reforçando o que já havia dito antes, de ser maior que o Templo (v. 6)
4.c. A família de Jesus – vv. 46-50 – Jesus aponta as qualificações necessárias para se ser membro da Sua família.
1. Jesus é Senhor do sábado – vv. 1-8

Em resumo, podemos afirmar que este é um capítulo rico em incidentes, em ensinamentos e em polémicas e marca o início do período de oposição do ministério terreno de Jesus. Passado um primeiro momento de interesse por parte dos Judeus em geral e da Nomenklatura religiosa em particular, face ao ensino e ministério de alguém que se torna no início difícil de ser catalogado, acaba o estado de graça de Jesus e começa a oposição que os religiosos Lhe vão mover, tornando-se cada vez mais intensa.

E tudo porque os discípulos de Jesus, com fome, ao colherem e comerem espigas num sábado infringem o que a tradição baseada nos mandamentos da lei moisaica impunha a todo o membro da comunidade judaica.

É verdade que a Lei de Moisés estipulava a guarda do sábado (Êxodo 20:8-11). Esta é uma ordem geral, mais tarde especificada quanto ao modo de ser cumprida (Êxodo 23:10-13; 31:12-18, por exemplo). Como sucede com as leis, que são apresentadas na generalidade e depois discutidas na especialidade, a observância do sábado levantava sempre e necessidade da sua aplicação às diversas incidências provocadas pelas situações do dia-a-dia e que a própria evolução da sociedade exigia. Assim, a par do estipulado na Lei escrita, foi surgindo toda uma normativa legal e legislada, codificada numa lei oral e tradicional, tanto mais que a observância do sábado era basilar e central em todo o ordenamento religioso judaico. A par da circuncisão, a observância do sábado era uma das marcas identificadoras do judeu piedoso, cumpridor da lei moisaica. Como estudiosos da Lei, os fariseus assumiam-se como seus grandes defensores e guardiães máximos e, por isso, estavam atentos a qualquer tentativa de infracção da norma imposta.

Naturalmente que em tese, em princípio, a observância da Lei e a sua especificação e aplicação a cada situação da vida não estão erradas em si. No entanto, como Marcos 2:27 salienta a propósito do mesmo incidente, “o sábado foi feito por causa do homem e não o homem por causa do sábado.” Ou seja, em todo o ordenamento religioso as necessidades humanas em todos os seus domínios têm de estar presentes e ser levadas em conta, não podendo ser menorizadas.

Com este episódio, Jesus recentra as prioridades do ordenamento religioso. As normas religiosas perdem o sentido quando relegam a necessidade humana para segundo plano. Naturalmente, é muito ténue a fronteira entre os dois elementos centrais do culto a Deus – a exaltação da divindade e o lugar que o ser humano ocupa nessa exaltação – e, por vezes, é difícil encontrar o equilíbrio entre ambas essas exigências. Que o Altíssimo merece toda a preeminência não podendo o Seu lugar ser sonegado, disso não há qualquer dúvida. Mas não menos verdade é que sem a atenção devida dada às necessidades humanas, que é o outro elemento do diálogo com a divindade, o culto torna-se desequilibrado e, por isso, sem sentido.

Um profissional religioso, em caso de dúvida, recorre sempre à aplicação cega e fria da normativa religiosa, receoso de, com a sua omissão, ofender a divindade. Ora, como Jesus enfatizava, Deus é amor e compreende a nossa fraqueza, as nossas limitações, as nossas necessidades. Esse conhecimento por parte de Jesus levava-O (e levou-O) a reconhecer Deus primeiro como Pai e só depois como legislador. E nisto, Jesus divergia profundamente dos fariseus e do seu pensamento, os quais invertiam a sua relação com Deus, a quem viam primeiro como legislador e só depois como Pai de família, encarado como o senhor de muitos escravos.

Jesus salientava que se nos aproximamos de Deus como nosso Pai (que Ele é), vemo-Lo na sua faceta de amor que sentimos e experimentamos e, ao vivenciá-los (a Deus e ao amor de Deus Pai), dispomo-nos a sujeitar-nos a toda a Sua vontade, mesmo que esta eventualmente possa ir contra os nossos desejos e necessidades e fazemo-lo motivados pelo amor de um filho para com o pai e de um pai para com um filho e não pela atitude servil, motivados pelo temor de um servo face a um senhor impiedoso, mais interessado no respeito e cumprimento da lei do que numa relação paternal com um filho a quem Ele ama sem limites.

Por isso, Jesus podia proclamar: “se soubésseis o que significa misericórdia quero e não sacrifício, não condenaríeis os inocentes”. Com esta declaração, Jesus fazia eco das palavras de Oseias 6:6: “Porque eu quero misericórdia e não sacrifício; e o conhecimento de Deus, mais do que holocaustos.” Os dois, Oseias e Jesus, são unânimes quanto ao carácter e natureza de Deus, que se compraz mais em ser conhecido pelos Seus do que pelo cumprimento de toda e qualquer normativa religiosa, porque o conhecimento implica intimidade e compromisso com o objecto conhecido. Curiosamente Oseias significa salvo e Jesus significa Salvador. Caso para dizer que o Salvo e o Salvador estão sintonizados.

Mas podemos ver algo mais nesta declaração, nesta antinomia misericórdia-sacrifício. A palavra misericórdia significa literalmente um coração inclinado à miséria enquanto o termo sacrifício significa “tornar sagrado”. Ou seja, a misericórdia é um atributo da natureza de Deus, enquanto o sacrifício é um acto humano. A misericórdia vem de cima e o sacrifício vem de baixo. Ambos os movimentos devem encontrar-se no amor de Deus onde se fundem harmonicamente. Ora, se o nosso alvo é aproximarmo-nos cada vez mais de Deus, essa aproximação começa quando cultivamos em nós os elementos marcantes da natureza divina. Por isso, quando exercemos misericórdia, estamos implicitamente a confessar que nos identificamos com Deus e com aquilo que Ele quer de nós. Não admira, pois, que uma das bem-aventuranças seja precisamente: “Bem-aventurados os misericordiosos porque eles alcançarão misericórdia.” (Mateus 5:7) E na medida em que exercemos misericórdia, o sacrifício deixa de estar relacionado com coisas exteriores a nós que oferecemos a Deus muitas vezes numa ânsia de aplacar a Sua ira e passamos nós a ser o sacrifício agradável a Deus, conforme a recomendação de Paulo em Romanos 12:1-2, em que somos convidados a “oferecer-nos como sacrifício vivo, santo e agradável a Deus que é o nosso culto racional”.

E foi por compreender e conhecer a verdadeira natureza de Deus e a correcta relação que o mortal que O busca deve manter com Ele que Jesus podia exclamar num grito que ecoa pelos séculos dos séculos: “Pois eu vos digo que está aqui quem é maior do que o Templo.” O Templo significava e simbolizava o centro da adoração judaica, o ponto de encontro entre a divindade e a humanidade. Ao afirmar-se como maior do que o Templo, Jesus não apenas reivindica para si o papel que o Templo representa, mas declara sem rodeios que Ele supera tudo quanto é necessário para que o nosso encontro com Deus seja real e efectivo porque ele se realiza através de quem reúne em si o divino e o humano – o nosso sumo sacerdote, Jesus de Nazaré, o Cristo de Deus.

Curiosamente, neste capítulo Jesus afirma-se não apenas maior do que o templo, mas maior que o profeta Jonas e o rei Salomão (vv. 41 e 42).
2. Cura de um homem com a mão mirrada – vv. 9-21

O segundo episódio aborda uma situação de cura – Jesus restaura a mão mirrada de um homem. Não sabemos se era a mão direita ou esquerda, apenas que se tratava de uma mão e todos sabemos a falta que uma mão funcional nos faz. As mãos funcionais dão-nos liberdade de acção e permitem-nos realizar tarefas das mais simples às mais complicadas. As mãos são um dos meios de que nos servimos para nos ligarmos e nos identificarmos com o meio ambiente que nos envolve, tanto o próximo como o distante, tanto o terreno como o transcendente. A mão funcional agora mirrada fazia falta ao homem e diminuía-o na sua capacidade e integridade.

De novo, neste episódio, o sábado e a sua observância voltam a estar presentes. Pela narrativa, percebemos que Jesus enfrenta uma provocação por parte dos Seus opositores religiosos: “É lícito curar nos sábados?” perguntam eles. Jesus não se esconde, não se esquiva, não ignora a provocação e o desafio. O confronto não O intimida e desta vez torna-se mais contundente na denúncia da incongruência de um pensamento religioso que relega para plano secundário e inferior o ser humano, o agente que presta culto a Deus. A resposta de Jesus é demolidora e impiedosa por assim dizer. Se os seus acusadores socorrerão num sábado um animal ferido ou magoado, quiçá uma ovelha para o sacrifício, com muito mais razão aquele que é maior do que o templo tem autoridade suficiente não para ignorar o sábado mas para exercer misericórdia junto de quem, pela sua diminuição física, se apresenta diminuído e incompleto perante Deus a quem deve adorar na sua plenitude.

E é o que o pensamento religioso no seu pior está disposto a fazer – a considerar inferior a um animal o ser humano, criado à imagem e semelhança de Deus, reflexo da glória divina. Mas Jesus veio ao mundo para restaurar a pessoa caída, veio para refazer no ser humano a glória de Deus, veio para proclamar que a vontade de Deus é que o homem se apresente perante Ele na sua integridade total, aberto a toda a manifestação da glória e do poder divinos. Porque, como coroa da Sua criação (Salmo 8), Deus está interessado em ter comunhão com o único ser de toda a Sua criação capaz de um relacionamento íntimo e duradouro.

E perante este acto de misericórdia de quem é maior que o Templo, como reagem os supostos guardiães do Templo? Com planos para matar quem é o dador da vida e da saúde e que, com a Sua ressurreição, mostrou ser superior à própria morte.
3. Cura do endemoninhado cego e mudo – vv. 22-32

De novo um episódio de cura, desta vez de um homem com uma tríplice condição que o afectava tanto no aspecto físico como psicológico e espiritual. Qualquer das suas condições era dramática e impedia-o não só de comunicar devidamente com o seu semelhante por via da cegueira e da mudez, como lhe coarctava qualquer possibilidade de uma comunhão plena com o seu Deus. Ou seja, era um homem afectado na relação tanto no domínio do físico como do espiritual. E a primeira conclusão a que podemos chegar neste episódio é que o poder de Jesus de Nazaré era suficientemente abrangente e que nenhum domínio escapa à sua acção.

Mas de novo, a liderança religiosa judaica revela toda a sua inimizade para com Jesus e, num crescendo de oposição, atribui a cura de libertação à acção e intervenção das forças demoníacas. E é o que faz a cegueira provocada pelo endurecimento espiritual dos guardiães da revelação dada a Moisés provocado pelo apego a uma interpretação errónea dessa mesma revelação. Em última instância, a cegueira espiritual, travestida de ortodoxia pode levar a uma blasfémia de lesa-divindade. Na verdade, o que deveria levar ao regozijo e ao louvor a Deus pela libertação de um ser humano cativo é substituído pela blasfémia em nome de uma interpretação distorcida da revelação. Sim, porque os líderes religiosos tinham acesso à revelação divina dada através de Moisés.

E é neste episódio que surge uma das mais fortes e pungentes declarações de Jesus. Parafraseando: “Todo o pecado é passível de perdão, excepto aquele em que o Espírito Santo é blasfemado” (vv. 31 e 32). Verdade se diga que o texto não revela linearmente em que consiste essa blasfémia. Apenas ficamos a saber que há um pecado que não tem perdão e qual o objecto desse pecado – a blasfémia contra o Espírito Santo. Muitas têm sido as exegeses sobre esta declaração mas de nenhuma se pode dizer que seja a explicação final. Pelo texto, percebemos que ela surge no contexto de uma blasfémia de lesa-divindade, quando os corações religiosos mas empedernidos na sua cegueira atribuem aos demónios uma obra com o selo da divindade, em última análise identificando Deus com o Seu arqui-inimigo, Satanás. Que Deus nos ajude para, mesmo quando algo vá contra os nossos pressupostos espirituais e religiosos, estarmos abertos para saber discernir o que vem de Deus e o que não vem e termos a humildade suficiente para reconhecer o nosso erro de interpretação quando for esse o caso. Aí, só há um caminho – arrepender-nos da nossa falha, reconhecer que errámos (ou estávamos errados) e confessar a soberania de Deus. E Deus que é amor irá certamente cobrir-nos com o Seu perdão.
4. Polémicas – vv. 33-50

Nesta secção, encontramos três momentos de ensino, confronto e polémica que podemos considerar o corolário dos episódios anteriores em que a oposição dos líderes religiosos a Jesus assume forma de um modo bem vincado.

Num primeiro momento, Jesus separa as águas e estabelece uma divisão clara entre os que, como árvores boas, produzem bons frutos e os que, como árvores ruins produzem maus frutos. Estas palavras fazem ecoar o Salmo 1:3 quando o salmista canta que “o justo é como a árvore plantada junto a ribeiros de águas, a qual dá o seu fruto na estação própria”. Que a árvore que somos nós esteja plantada não num charco de águas fedorentas mas alimentada por aquele que de si mesmo disse ser a água da vida para que o nosso fruto tenha a unção do Espírito Santo.

Num segundo momento, quando Lhe pedem um sinal comprovativo da autoridade com que ministrava, Jesus limita-se a dar o sinal do profeta Jonas que esteve três dias e três noites no ventre do abismo. Numa alusão à Sua morte e ressurreição ao referir o profeta, Jesus não se coíbe de apontar a incredulidade dos seus inquiridores porque enquanto gentios se arrependeram em resposta à pregação de Jonas, os filhos do povo eleito recusam-se a reconhecer que a Sua autoridade vem de Deus, o que Lhe permite declarar ser mais do que Jonas. No seguimento, refere o episódio da rainha de Sabá, uma gentia, que se desloca da sua terra para apreciar em primeira mão a grandeza do rei Salomão. E, no entanto, perante os que Lhe pediam um sinal, estava alguém que é mais do que Salomão. É curioso notar que Jesus reivindica para si a sua superioridade em três domínios – como sacerdote (mais do que o templo) como profeta (mais que Jonas) e como rei (mais que Salomão). Esta é uma confissão de que Ele era o Messias prometido que agregava em si as três funções messiânicas que só eram reconhecidas após a respectiva unção.

Num terceiro momento, confronta a multidão com a necessidade de responder aos requisitos para se ser considerado membro da família do Cristo de Deus – todo aquele que fizer a vontade do Pai esse é irmão, irmã e mãe de Jesus, ou seja, todo aquele que observa e respeita a vontade de Deus está apto a ser considerado membro da família de Jesus. O Cristo de Deus está aberto a ter uma família a cujos membros não se envergonha de chamar irmãos. Que Deus nos abra o entendimento para, num gesto de entrega e submissão à Sua vontade, guardemos no fundo do nosso coração, a Sua Palavra que é guia e luz para o nosso caminho.