SER É AMAR

RicardoRosa_2“Ser é amar”. Esta é uma das frases que sintetizam o pensamento de Emmanuel Mounier, filósofo cristão no séc. XX. E em conjunto com esta ideia, Mounier aponta ainda mais algumas máximas que vieram formular o Personalismo.

Em conjunto com a prática do amor, Mounier defende que é quando o Homem se descentraliza de si mesmo, que então ama verdadeiramente o próximo e se abre às necessidades do próximo. A par deste amor e interesse, surge também a comunicação com o próximo. Uma atitude que leva a que o Homem não viva num isolamento egoísta, nem numa auto-diluição.

No entanto, aquilo que Mounier formula como pensamento, é-nos apresentado pelas Escrituras, nomeadamente no livro de Actos dos Apóstolos. Após o discurso pentecostal de Pedro, podemos ler em Actos 2:42-47 a forma primordial filosófica do Personalismo.

O v.42 menciona a participação colectiva dos crentes de Jerusalém no ensino apostólico, na união fraterna, no partir do pão e nas orações. Não só aquela comunidade procurava viver do modo comprometido o ensino que Jesus delegara aos apóstolos, como também se esforçava para viver de modo a transmitir Cristo no seu viver: uma união que ia desde a intimidade da oração e da participação na celebração conjunta ao amor simples. Aplicando a citação de Mounier ao conteúdo relatado por Lucas, a igreja de Jerusalém era uma comunidade em Cristo porque amava.

Era uma comunidade exemplar (com todos os seus defeitos e virtudes), que se abria à necessidade do próximo (v.44), que amava verdadeiramente e com amor cativante (v.47b) e que se descentralizava de si mesma (v.45). Tudo isto decorre não por mérito do ser humano em si, nem por qualquer formulação filosófica fantástica, mas pelo poder de Cristo, manifesto na acção do Espírito Santo, que é pregado e anunciado através do Evangelho.

Mounier não procurava descartar o indivíduo da sua responsabilidade de amar e de ser responsabilizado (ao contrário de Sartre que afirmava que ”o Inferno são os outros”). Ele releva a pessoa, tal como Cristo o faz ao valorizar o valor da vida humana (João 5:1-18), trazendo à Filosofia do séc. XX a raiz cristã do ágape. Mas tudo isto só foi possível a Mounier por que conheceu Cristo e é na Palavra Incarnada que ele bebe a sua estruturação do pensamento.

De facto, Jesus, não tendo qualquer pretensão em ser filósofo criou um cisma no pensamento judaico da época (sem nunca deixar de valorizar as Escrituras e a Lei). É Ele quem resgata da malha ritualista intrincada o valor do amor divino, é Ele quem recupera o verdadeiro sentido de sacrifício com a Cruz do Calvário. É em Cristo que encontramos a valorização máxima da pessoa! Aquele que é uma Pessoa da Trindade, valoriza a criatura enquanto pessoa mais do que enquanto indivíduo . Cristo personaliza o Homem através do Seu sacrifício e comunica com ele com base no Seu Evangelho. Jesus é Deus Feito Homem e vem suprir a necessidade humana de restauração (João 3:16, Romanos 3:23,24), vem valorizar aquilo que o pecado outrora desvirtuara: um relacionamento com o Pai e a importância da vida de cada um de nós.

É Ele que nos resgata da dependência do materialismo e nos faz viver na dependência do que não vemos mas confiamos (Hebreus 11:1), que nos afasta do egoísmo pessoal e nos ajunta em comunidade viva e santa (como a de Actos 2:42-47).

A sociedade idealizada por Mounier é a vivência correcta do Reino. Um local de paz, justiça e alegria no Espírito Santo (Romanos 14:174), habitado por quem vive à imagem e semelhança de Deus (Colossenses 2:6, 1ª João 2:6).

É na Pessoa Incarnada que Mounier bebe influência para personalizar o Homem. Não deixemos nós de beber d’Ele, fonte de água viva, de água viva e busquemos juntar a máxima do filósofo com o mandamento de Jesus: “Se tiverem amor uns aos outros, toda a gente reconhecerá que são meus discípulos” (João 13:35, BPT)

Ricardo Jorge Mendes Rosa

MOBY DICK – A SOBERANIA SOLITÁRIA DO MAL

JTP6“Chamem-me Ismael. (Call me Ishmael)” Assim começa o grande romance “Moby Dick” de Herman Melville (1819-1891), quase em estilo bíblico- vejam-se os inícios dos livros dos profetas e as epístolas, salvaguardadas as distâncias da semântica bíblica.
Um dos mais representativos  da literatura americana e que abriu caminho ao moderno romance naquele continente, “Moby Dick” é literatura imaginativa onde pontifica a soberania de uma alma solitária. Por isto, de modo nenhum foi legítimo a obra ter sido apresentada no nosso país na primeira metade do século passado como um livro para adolescentes, inserido na literatura infanto-juvenil.
Fica aquém da profundidade psicológica desta obra-prima, a sinopse simplista segundo a qual o longo romance é “a história da busca do capitão Ahab para se vingar da baleia que lhe arrancou uma perna”.
Herman Melville logrou conceber uma  personagem  que o primeiro epíteto que a crítica na época, em 1881, lhe conferiu,  foi “uma aberração” e “um louco”. Uma obsessão pelo mar e a caça de cetáceos são antiquíssimas, mesmo em Melville, que escreve no seu romance primeiro “Taipi”: “ Seis meses no mar! Sim, leitor, aqui onde estou, tenho seis meses sem ver terra; navegando atrás da baleia do espermacete sob o sol dilacerante do Trópico”.
As leituras, teológica e outras
No entanto, o capitão Ahab propõe leituras mais profundas, sob um prisma psicológico-filosófico, e sob a lente da teologia e do irrefragável problema do Mal,  se quisermos ir para lá do mundo da aventura,  tomando até a perspectiva bíblica do livro de Jonas. Estes exemplos podem multiplicar-se em outras metáforas, como a subliminar na narrativa do encontro no oceano com outro baleeiro, o “Rachel”. A circunstância de que neste barco há o chôro do capitão Gardimer pelo desaparecimento do filho, que pertencia à tripulação: “Afogou-se ontem à noite com os outros” – dizia o velho marinheiro.
Raquel chorando os filhos… Uma metaforização de uma circunstância bíblica no enredo do romance.
Todavia, uma das leituras é, do meu ponto de vista de um cristão evangélico dado à literatura universal,  a de um anti-herói que pretendeu destruir o Mal, usando-se dele para limpar os oceanos e trazer-lhes paz.
A animalização do Mal. E tal proposta pressupõe uma luta, uma atitude agonista/agónica, que tem a sua formação, se quisermos, no Sermão célebre do padre Mapple, proferido do seu púlpito real e simbólico ao mesmo tempo.
A metáfora tirada da estrutura física do púlpito é por demais importante para ficar em segundo plano no sermão sobre a tempestade no mar de Jonas, a ira divina, ou mesmo as brisas favoráveis para a caça à Moby Dick contra a bondade da  suposta “baleia” que engole Jonas.
O púlpito é, quer na perspectiva melvilleana ou de um templo cristão, católico ou protestante, o locus de onde se dirige a nave da congregação ( das almas), de onde se fere e consola, o lugar de onde se corta cerce as vagas que queiram abater-se sobre a comunidade, com a Palavra divina.
O púlpito era o “posto avançado” contra o Mal. “Desse posto se reconhece a aproximação da ira divina(…) Sim, o mundo é um navio efémero que não conclui a sua viagem; e o púlpito é a proa desse navio”.  As primeiras arremetidas contra o Mal partem desse púlpito, no longo sermão do padre Mapple.
O próprio púlpito, depois da Reforma, toma lugar nas alturas a que deve estar o proferir a Palavra Divina no culto. O púlpito na liturgia reformada, protestante, evangélica, não eleva o pregador mas o Verbo.
Um excerto inicial, da elevação querigmática da Palavra: “Bem-amados companheiros do mar, talinguem o último versículo do capítulo primeiro do Livro de Jonas: “E Deus preparara um grande peixe para engolir Jonas”. Companheiros, este livro que contém somente quatro capítulos, é um dos fios mais pequenos que se entrelaçam para tecer o poderoso cabo das Escrituras. Contudo, como são profundos os abismos da alma que Jonas sonda!”.
Talingar, amarra, cabo, abismos,  termos marítimos que traduzem o cenário onde Jonas se confronta com Deus e Ahab com o Mal. Outros termos abrem caminho a uma exegese religiosa, diria cristã, no que concerne ao pensamento multifacetado, senão intrincado de Melville.
Em todo o caso, para o meio do volumoso romance, o autor discorre sobre os vocábulos “branco”, “brancura”, no sentido racial, mas também no adjectivo da pureza, como contraponto do “mal” branco – a baleia Moby Dick. Neste ponto, batemos numa contradição que ao parecer embelezar o Mal, a alvura, a pureza incompatíveis com o Mal, descobre a insinceridade, a mentira, com que o Mal se apresenta com frequência.
A luta de Ahab  enviesada contra o Mal, a malignidade de Moby Dick – escreve Melville, “um cachalote de rara magnitude malignidade” – radicava no desejo mórbido de vingança. A loucura de Ahab resulta do corpo mutilado e da alma ferida, é como o retrata física e psicologicamente o escritor. É a luta homérica da Odisseia, isto é, uma viagem e uma batalha do homem contra os deuses que abundam, materializados num só, a Moby Dick, na alma de Ahab.
A ubiquidade do Mal. “Moby Dick é não só ubíqua como também imortal”. O romance prova a impossibilidade da luta contra o Mal de um modo desordenado e inconsequente, ao preço do próprio desamor pelo próximo, as lutas individuais contra o Mal são próprias dos Prometeus ou dos Quixotes, se cegas nas suas causas.  O combate contra o Mal tem de estar amparado no Poder da Palavra de Deus, porque é uma pugna religiosa, melhor, é uma luta metareligiosa. Sobretudo tendo em conta o texto bíblico e de linguagem poética de Isaías 45,7.
O capitão Ahab almejava ser um deus grego; um Prometeu que se vingaria destruindo o Mal, no entanto, era um homem apoiado numa perna de pau ou de marfim. É a figura do homem que é tragado pelo Mal que jura obstinadamente combater.
Há mais de quarenta anos li “O Problema do Mal”, de J.S.Whale, e hoje ser-me-á útil um trecho desse livrinho para corolário do problema que vem desde o princípio da Criação: “ A resposta do cristão ao problema do mal está contida, em última análise, na maneira como ele enfrenta o mal na vida, como consequência do que Cristo fez com o mal na Cruz”.

© João Tomaz Parreira