O POETA CHEGOU À PATRIA PROMETIDA

O POETA CHEGOU À PATRIA PROMETIDA

JTP30
“O meu exílio está entre a terra que voluntariamente se perde e a esperança de uma Pátria prometida” (João Tomaz Parreira, Este Rosto do exílio, edição do Departamento de Literatura da Assembleia de Deus de Aveiro, p. 5)
 Pode considerar-se este texto como uma homenagem póstuma, embora eu lhes tenha aversão. Prefiro as homenagens em vida e sei que o querido amigo João Tomaz, como ele também me tratava nos emails que íamos trocando, os recebeu sem que isso beliscasse a sua humildade. No último enviou-me precisamente o texto “Lutero: ‘Que o Senhor te despoje do homem que eras’” e faz parte do repositório de muitos outros que nos remeteu e que enriqueceram este projeto digital. Para lá de outras considerações referia que o enviaria para a revista Novas de Alegria, “se Deus quiser”. Deus quinda assim quis e aí será publicado.
Publico esta minha homenagem neste site, porque foi um colaborador desde a primeira hora. O João Tomaz Parreira era assim, sempre disponível para apoiar e colaborar em projetos que visavam a promoção da cultura bíblica. Muitas vezes lhe disse “obrigado”. Sei que alguns deles foram escritos em momentos menos fáceis ou mais difíceis. Mas sempre com o mesmo rigor e excelência literária, com uma profundidade rara no meio evangélicos, diga-se.
Tive hoje, quarta-feira, dia dezassete, o privilégio de fazer uma leitura bíblica acompanhada de uma breve reflexão no tempo de capela do MEIBAD – Monte Esperança Instituo Bíblico. Durante a véspera e ainda na manhã do próprio dia lutei com a escolha do texto. O meu coração e a minha mente detiveram-se no capítulo 15 da primeira carta de Paulo aos Coríntios, o incomparável capítulo da ressurreição, a esperança da ressurreição de cada filho de Deus em Jesus Cristo. A morte foi vencida, o último inimigo foi derrotado, em Jesus Cristo temos a certeza da vida eterna. A Sua ressurreição é a garantia da nossa ressurreição. Esta é a maior de todas as declarações, o ponto culminante da nossa fé.
Poucos minutos antes do tempo de capela o meu telemóvel tocou e do outro lado, com voz embargada deram-me a notícia inesperada de que o meu querido amigo e irmão na fé, João Tomaz Parreira, tinha sido recolhido para as moradas que Jesus foi preparar para que onde Ele está nós possamos estar. Percebi então a forma particular como antecipadamente Deus lidou com a tristeza que me invadiu. Foi com sentida emoção que iniciei a apresentação do tema. O João Tomaz Parreira é um amigo do coração.
Não escondo que estou triste. Sei que não fomos criados para a morte, e esta sempre me arranha por dentro. A separação dói-me. Mas a esperança ilumina o nosso horizonte. Em breve encontrar-nos-emos. O João pertencia ao céu como todos os que em Jesus recebem essa cidadania. O João nunca se calou. A sua poesia e os seus artigos continuarão a falar da sua fé e da sua esperança. O seu verbo inspirado colocou-o ao serviço do seu Senhor.
Conheci pessoalmente o João Tomaz Parreira nos preparativos para o congresso Juvenil no Porto, fazendo parte do grupo de jovens a nível nacional que apresentaram uma proposta de renovação e restruturação destes encontros da juventude assembleiana.
Foi pela mão do João que fiz parte da Antologia da Nova Poesia Evangélica, e sempre encontrei da sua parte uma total disponibilidade para participar em diversas conferências, e colaborar com artigos em várias revistas das quais destaco o Novas de Alegria do qual era colaborador permanente tendo começado a colaborar na década de 60 (número de fevereiro de 1964, na seção Jovem, com um artigo com o título “A Tela do Calvário”), no Portal Evangélico do qual guardo uma saudosa memória e, mais recentemente, no site de Apologética. Participou ainda com a sua escrita na obra Línguas de Fogo – História da Assembleia de Deus em Lisboa, 1999.
A ASPEC lançou durante alguns anos um ciclo de conferências sob a designação Aqui e Agora século XXI. Numa dessas conferências no auditório do Padrão dos Descobrimento o João Tomaz Parreira abordou o tema da vida e obra de Vergílio Ferreira. Entre os presentes estava uma especialista no tema e que no tempo de perguntas ao conferencista registou a sua admiração pela elevação da reflexão apresentada. O João Tomaz era assim, profundo, rigoroso, exigente, perseguindo com denodo a excelência. O seu trabalho poético e os textos que ficam connosco exalam esse perfume. Vou sentir falta dos seus poemas que enriqueciam as redes sociais, muitos deles partilhei-os na minha página. Alguns últimos deixaram-me a impressão de que via para além do imediato e pressentia o tempo da partida, cantava as moradas eternas.
UM ANTI-REQUIEM NO HOSPITAL
Deitado num convés de lençóis ondulados
Os barcos ao lado ostentam o próximo
Remanso dos adormecidos
A certa altura o tecto é uma ilusão de óptica
Torna-se um limite que os olhos perfuram
A certa altura de uma certa altura
Apagam-nos a claridade, é a hora
De atravessar as águas da noite
Como um bálsamo de Gileade
No silêncio hospitalar.
06/10/2018
© João Tomaz Parreira
RESPOSTA QUE O POETA ENCONTROU ÀS SUAS QUESTÕES
Quando eu estiver mais cansado e a doença
Me der a tristeza das coisas belas, quando tiver
Apenas palavras para enxugar
Nos meus olhos as lágrimas, lerei
Os meus Salmos favoritos e os montes
Serão lagos de água clara no azul
Todas as montanhas são para subir
Lerei o trecho favorito
Da oração sacerdotal de Jesus Cristo
Onde deixou uma ponte entre nós e o Pai
E sentirei nos glóbulos doentes o valor
Da Graça bastante do meu Deus.
02/10/2018
© João Tomaz Parreira
UM DIA QUE NÃO PODE ESTAR MUITO LONGE
Um dia que não pode estar muito longe
Escaparemos por essa janela azul
Não somos Alice no país das maravilhas, mas
esse espelho é transparente e de lá Alguém
Nos vê e espera com toda a música
Que existe no silencioso corpo dos seus anjos
Um dia, quando começar a haver meia-noite
Como disse o Poeta, um dia que já ontem
Começou único no calendário de Deus.
14/06/2018
© João Tomaz Parreira
O João Tomaz Parreira é um nome maior das letras evangélicas. Guardo com carinho os livros de poesia Este Rosto do Exílio (1973), Pedra Debruçada no Céu (1975), Pássaros – aprendendo sempre e outros poemas (1993), e o ensaio teológico O Quarto Evangelho – Aproximação ao Prólogo (1988). Como poeta publicou ainda Contagem de Estrelas, 1996; Os Sapatos de Auschwitz, 2008; Encomenda a Stavinsky, 2011, e Esperar que a Voz Seja Suave, 2014. Atrevo-me a dizer que nascido em outro ambiente em que a cultura fosse mais considerada e valorizada, o JTP teria tido uma outra projeção. A sua poesia abria-nos os horizontes, levava-nos mais longe, despertava a nossa sensibilidade para outras paragens e outros sentidos. De verso para verso era como o dobrar de uma esquina em que os nossos sentidos eram surpreendidos e arrebatados.
Numa nota biográfica do primeiro a que faço referência pode ler-se: “Nasceu a 4 de abril de 1947, na cidade de Lisboa. Aluno da Escola Dominical da Assembleia de Deus, naquela cidade, desde 1954, mudou o rumo de sua vida adolescente, entregando-se a Cristo, nas Campanhas do Dr. Doctoryan em 1963. Nessa data foi residir em Aveiro, onde fixou a sua vida, sendo actualmente membro da Igreja Assembleia de Deus local.”
Penso que seria uma contribuição inestimável para os leitores de poesia e dos artigos sobre temas bíblicos e da cultura, que alguém reunisse num volume a poesia do João Tomaz Parreira, e noutro os vários textos em que a grande maioria terá sido publicada pela revista Novas de Alegria. É apenas um desejo em forma de sugestão!
A homenagem dei-a em vida, muitas e muitas vezes. Pessoalmente a maior parte delas. Foram muitas as vezes que lhe agradeci pela dádiva generosa do dom generoso com que Deus o havia agraciado. O João Tomaz Parreira cumpriu o seu desígnio com que Paulo termina esse capítulo 15 da primeira epístola aos Coríntios: “Façam sempre com entusiasmo aquilo que o Senhor quer, porque o esforço que fazem por ele nunca será inútil.”
Samuel R. Pinheiro