O Oficial de Cafarnaum

O Oficial de Cafarnaum
João 4:43-54

Jorge Pinheiro
Segunda vez foi Jesus a Caná da Galileia, onde da água fizera vinho. E havia ali um régulo cujo filho estava enfermo em Cafarnaum. Ouvindo este que Jesus vinha da Judeia para a Galileia, foi ter com ele e rogou-lhe que descesse e curasse o seu filho, porque já estava à morte. (João 4:46-47)

Temos aqui mais uma história com todos os ingredientes de uma boa história. Nela encontramos dor, sofrimento, angústia, expectativa e um final feliz.
Este texto fala de um homem que se dirige a Jesus, que se encontrava em Caná da Galileia, a quem roga que vá com ele até Cafarnaum e aí lhe cure o filho que estava doente às portas da morte. Jesus atende apenas a metade do pedido do homem: não se desloca a Cafarnaum mas garante-lhe que quando regressar a casa encontrará o filho completamente restabelecido. E assim acontece de facto. Ainda antes de chegar a casa, recebe a notícia de que a febre que atormentava o filho desaparecera e se encontrava agora curado.
Como sucede com todas as histórias, temos de perguntar: que ensinamentos extraímos desta? E em que medida ela se encaixa na intenção declarada de João quando escreveu este evangelho?
Se a lermos com atenção, descobrimos uma série de informações que, complementadas com outros dados, nomeadamente geográficos, nos permitem chegar a algumas conclusões e lições interessantes.
Este episódio vem no seguimento do encontro de Jesus com a samaritana. O versículo 43 diz que Jesus permaneceu em Sicar durante dois dias, findos os quais parte para a Galileia, onde é bem recebido pelos Galileus, conhecedores do que Ele fizera em Jerusalém durante a Páscoa, nomeadamente o derrube das mesas dos cambistas no átrio do templo, os sinais ali realizados (2:13-25) e presumivelmente as suas argumentações no templo e a entrevista com Nicodemos (3:1-15).
Ficamos também a saber que na Galileia este episódio vai encontrar Jesus em Caná. Não sabemos a razão da Sua presença ali, se era passageira ou se ali fixara a Sua residência, mesmo que temporária. Podemos especular que os Seus familiares residiriam ali, nomeadamente sua mãe, uma vez que por ocasião do milagre de Caná, ela se encontrava presente. Também, pela referência que o versículo 43 faz do que acontecera em Caná, podemos presumir que o milagre ainda era recordado pelo impacte que provocara.
O que sabemos é que em Caná Jesus é procurado por um homem vindo de Cafarnaum (v. 46). A nossa versão trata-o por régulo, que traduz a ideia de ser alguém de sangue real ou um rei, uma vez que palavra “régulo” significa “pequeno rei.” No entanto, no original o termo usado transmite mais a ideia de ser um cortesão, um funcionário do rei ou, como diríamos em linguagem actual, um oficial administrativo ou governativo. Seja como for, tratava-se de alguém ligado à área do poder, provido de alguma autoridade civil e política.
Em relação a estas duas localidades, elas distavam entre si cerca de 30 a 40 kms e enquanto Cafarnaum se situava num vale, nas margens do mar da Galileia, Caná era uma cidade montanhosa, sendo assim sinuoso e acidentado o percurso entre ambas. Naquele tempo era uma distância e um percurso consideráveis.
Ora, foi esta distância que o homem percorreu na sua busca de cura para o filho que jazia às portas da morte (v. 47). Podemos imaginar a dor e a angústia desesperante deste homem que procura Jesus na qualidade de pai, pois é assim que ele se apresenta. Nos momentos de maior angústia, que abrem a porta ao desespero, o ser humano procura em todo o lado alívio para a sua dor e assume-se mais na sua qualidade intrínseca de ser humano porque sabe que, mesmo detentor das mais altas honrarias, continua a ser uma pessoa humana limitada e impotente perante aquilo que ultrapassa o seu poder de agente de autoridade.
É interessante notar que o versículo 47 utiliza a expressão “rogou-lhe que descesse.” É verdade que é uma referência ao carácter orográfico entre as duas povoações, mas podemos ver aqui um simbolismo e uma realidade espirituais. O funcionário foi do vale à montanha em busca de ajuda e de facto, em termos espirituais, nós que vivemos no vale temos de subir ao alto em busca de socorro, porque é ali que o encontraremos, conforme nos recorda o salmista:
“Elevo os olhos para os montes. De onde me virá o socorro? O meu socorro vem do Senhor que fez os céus e a terra” (Salmo 121:1-2). E também o profeta Isaías (57:15) que diz que o Senhor Deus habita num alto e sublime lugar. Deus ainda está na Sua alta e sublime habitação e a Ele recorreremos sempre em tempos de angústia e em tempos de bonança porque o Seu refrigério é permanente e constante.
A resposta de Jesus talvez tenha surpreendido o funcionário, porque começa por afirmar “se não virdes sinais e milagres não crereis.” Há aqui dois pontos interessantes. Primeiro, a referência a e milagres e não a sinais ou milagres, o que nos indica que embora movendo-se no mesmo universo apontarão para duas atitudes distintas. Já vimos que João utiliza a palavra “sinais,” querendo com isso dizer-nos que a nossa atenção deve estar mais focada não no portento da coisa extraordinária, mas no seu significado e no autor de quem a originou. Já quando falamos mais em milagre e menos em sinal, o nosso foco de interesse está mais virado para o acontecido, levando-nos a esquecer que o seu autor é que merece todo o louvor e atenção. Que sempre que buscarmos a intervenção miraculosa de Deus, o nosso coração esteja de olhos fixos n’Ele, louvando-O e engrandecendo-O.
O segundo ponto é que os verbos estão no plural: “se não virdes” e “não crereis”. Jesus não estaria a dirigir-se explicitamente ao homem mas sim aos que O rodeavam e nesse grupo podemos incluir-nos e aceitar essa Sua afirmação como uma advertência para nos fixarmos no que é importante.
O que é certo é que Jesus acede ao pedido do homem de lhe curar o filho, mas não cede ao seu desejo de descer com ele até Cafarnaum.
A verdade é que o menino enfermo ficou sarado, conforme disso dá testemunho o versículo 51. Estamos então na presença de um milagre e de um sinal, o segundo no relato que João faz do ministério de Jesus. Enquanto o primeiro – a transformação da água em vinho – revela o poder de Jesus em termos de transformar a qualidade e a natureza íntima das coisas, este segundo mostra que para Ele, a distância não é impedimento à manifestação do Seu poder. Por isso, ainda hoje, mesmo sentado à direita da majestade divina, podemos recorrer a Ele porque a distância física entre Ele e nós não Lhe tolhe o poder. E porquê? Porque estando Ele na dimensão do Absoluto, as limitações do nosso universo relativo nada são para Ele.
De acordo com o versículo 50, o funcionário não se deixou vencer pela dúvida que a distância lhe poderia suscitar, mas creu no conteúdo da afirmação de Jesus, aceitando-a como uma manifestação factual e não como uma declaração de intenções. Será que quando, a pedido de alguém, oramos por um milagre na vida dessa pessoa e declaramos que ele ocorreu, fazemo-lo como manifestação factual ou como uma declaração de intenções?
A fé do homem não foi abalada nem pela distância nem pelo tempo que levaria a percorrê-la e a testemunhar presencialmente o milagre anunciado. De facto, só no dia seguinte chegou ele a Cafarnaum. Foi uma espera no mínimo de 24 horas. O versículo 52 dá conta disso, quando os seus empregados o informam de que o menino ficara curado na véspera. Não sabemos se ele partiu no dia do milagre, em cujo caso teria iniciado a viagem a partir das 14h00 ou se, pelo contrário, teria partido no dia seguinte, o que lhe permitiria chegar ao seu destino ainda com luz do dia, evitando assim os imprevistos que numa viagem realizada com pouca luz sempre se produzem.
E esta não deixa de ser uma lição para nós. Estamos nós decididos a esperar o tempo necessário e a percorrer a distância exigível para testemunhar um milagre em que anteriormente cremos sem o termos visto? Com a agravante de embora o pedido do milagre ter sido formulado por nós e de nos termos sujeitado às canseiras de ir em busca da solução não termos sido os primeiros a testemunhar a sua concretização.
Em toda esta história há naturalmente uma pergunta pertinente que se nos impõe: por que razão Jesus não atendeu ao pedido de se deslocar a Cafarnaum? Muitas serão as respostas e todas elas não deixam de ser aceitáveis. Muito provavelmente, a razão será o somatório de todas essas respostas. Vejamos algumas:

1. Jesus estaria cansado ou teria reservado aquele período para alguma outra acção do Seu ministério. Embora pouco provável, porque Jesus nunca colocou os Seus interesses acima do serviço aos outros, não deixa de ser plausível porque uma deslocação a Cafarnaum e o regresso a Caná Lhe roubariam tempo que Ele tivesse destinado a outras acções.
2. Quis demonstrar que a distância não era impeditiva para Ele.
3. Quis mostrar, principalmente aos que O seguiriam após a Sua morte e ascensão, que não é necessária a Sua presença física para o milagre ocorrer, porque Ele está sempre presente em espírito entre os Seus.
4. Quis mostrar que para Deus não há distâncias, porque Deus é um Deus de perto mas também um Deus de longe (Jeremias 23:23).
5. Quis provar a fé do solicitante, o que é uma lição também para nós: quando Lhe rogamos alguma coisa, estamos dispostos a crer contra toda a expectativa, angústia ou outra circunstância física ou temporal?
6. Quis mostrar ao funcionário que uma palavra de autoridade ou a palavra de um agente de autoridade tem poder em si e por si mesma e não necessita da presença física do seu autor. Afinal, o funcionário era um agente de autoridade e as ordens que dele emanavam tinham poder em si e por si e nem sempre ou quase nunca exigiam a sua presença. Essa verdade foi compreendida pelo centurião que rogou pelo seu servo doente: “Dá-me uma ordem, Jesus, que eu também sou homem de autoridade e uma ordem minha é cumprida.” (Lucas 7:1-10). Estaremos nós dispostos a aceitar que o poder que nos foi delegado tem poder em si e por si e que em toda a sua aplicação tem de redundar não em benefício próprio mas em bênção do outro e glória de Deus?
7. Jesus quis deixar claro que “A Deus o que é de Deus e a César o que é de César.” Ao não aceder ao pedido de se deslocar a Cafarnaum, Jesus estaria a dizer-lhe que o Reino de Deus não pode, não tem de estar sujeito aos interesses do reino de César. O Reino de Deus abençoa também o senhorio de César mas não lhe está nem pode estar sujeito.

Repare-se também que o funcionário roga a Jesus que desça e lhe cure o filho (v. 47). No entanto, curiosamente, o evangelista regista que a resposta de Jesus não foi “Vai, o teu filho está curado”, mas “Vai, o teu filho vive” (v. 50). Poder-se-ia dizer que é a mesma coisa, que as duas expressões são sinónimas. Mas será assim? Não podemos aceitar que há uma intenção clara na utilização do termo “viver” e não “curar”? Se analisarmos as descrições das curas físicas efectuadas por Jesus, verificamos que na maioria dos casos o verbo utilizado está relacionado com o acto de curar, como na cura do paralítico de Betesda (João 5:6), “Queres ficar são?”, como no caso da cura do leproso em Mateus 8:3: “Sê limpo” ou como no caso da cura da mulher hemorrágica (Marcos 5:34) em que Jesus declara taxativamente: “Sê curada.” E isso para não falar da pergunta que faz aos fariseus: “É lícito curar os enfermos?” (Mateus 12:10) ou a ordem dada aos discípulos: “Curai os enfermos” (Mateus 8:3).
Mas nesta cura do filho do funcionário, Jesus diz: “Vai, o teu filho vive” e não “vai, o teu filho está curado.” Ou seja, a palavra de Jesus, o qual tem poder para curar, não fala aqui de cura mas de vida! Como que a querer dizer-nos que Ele nos veio dar vida e que a vida que Ele dá supera todas as nossas circunstâncias e limitações. Como que a querer dizer que o que Ele nos comunica não é uma mera restituição da saúde, que não é só e apenas uma simples resposta a um problema circunstancial na nossa existência, mas a outorga de uma vida de qualidade alicerçada na fé activa na Sua palavra que dá vida.

Estabelecendo um paralelo entre estes três grandes encontros dos primeiros quatro capítulos de João, podemos chegar a algumas conclusões interessantes e importantes:

• Nicodemos era da Judeia, a mulher de Samaria, o funcionário da Galileia, o que nos indica toda a nação de Israel.
• Nicodemos era um religioso, a samaritana uma plebeia e o funcionário um membro da classe político-governativa, o que nos indica todos os estratos do tecido social.
• Com Nicodemos, a conversa é de carácter teológico, logo é ideológica, enquanto com a samaritana e com o funcionário estamos na presença de milagres (um de transformação, o outro de cura), o que aponta para uma acção prática. O que nos indica que o evangelho tem de ser prático mas com uma boa base doutrinal e tem de ser doutrinário com uma manifestação prática, quer tanto pode atingir directamente o visado como reflectir-se indirectamente em quem tem uma relação com o visado.

Estes três episódios revelam-nos um evangelho integral que está ao alcance de todo o tipo de pessoas, acima das barreiras artificiais que tendemos a levantar face ao nosso semelhante.
Soli Deo gloria!

C. Ourique, 24.Maio.2022