Surge et ambula – O paralítico de Betesda

Surge et ambula – O paralítico de Betesda
João 5:1-15

2021dez20 Jorge Pinheiro _ peq
Jesus disse-lhe: Levanta-te, toma a tua cama e anda. (João 5:8)
Dicit ei Jesus: Surge, tolle grabatum tuum et ambula. (João 5:8)
Este episódio relata o terceiro milagre registado no evangelho de João. De novo em Jerusalém, Jesus dirige-se durante um sábado a um tanque onde, no meio de uma grande multidão, se dirige a um homem acamado, doente há trinta e oito anos a quem, depois de lhe perguntar se quer ser curado, restaura a saúde. Num segundo encontro, desta vez no templo, ordena-lhe que não peque mais. Quem não gostou do acontecido foram os religiosos que querem saber mais pormenores sobre a ocorrência.
Tradicionalmente, muitos comentadores bíblicos apontam este episódio para referir que Jesus tem poder sobre o infortúnio das pessoas e que para Ele não há mal-estar que atormente o padecente que Ele não possa curar. Para chegar a esta conclusão salientam o número de anos – 38 – em que este homem esteve privado da sua saúde. Sem negar esse facto, iremos ver que este episódio contém outras lições e conclusões que não devemos ignorar nem desprezar.
Acresce que em consequência dessa cura, tem início o choque entre Jesus e o sistema religioso do Seu tempo, que Ele aproveita para, através de diversas intervenções, ir transmitindo o evangelho de que é arauto.
A cena passa-se em Jerusalém, por ocasião de uma festa religiosa cujo nome o texto não menciona pelo que só podemos especular qual seria. De entre as sete principais festas dos Judeus, havia três que se destacavam: a Páscoa, o Pentecostes ou das Colheitas, realizado cinquenta dias depois da Páscoa e a festa dos Tabernáculos, que ocorria no Outono. Esta festa do capítulo 5 poderia ser uma dessas. Pelo versículo 1 ficamos com a ideia que teria ocorrido pouco depois da deslocação de Jesus a Jerusalém, por ocasião da Páscoa. Seja ela qual for, apenas sabemos que tudo ocorreu por ocasião de uma festa religiosa cujo nome desconhecemos.
O que sabemos, porém, é que tudo ocorreu em Jerusalém num tanque chamado de Betesda, situado perto da Porta das Ovelhas, edificada elo sumo sacerdote Eliasib no tempo de Neemias (Neemias 3:1) e por onde entrariam as ovelhas provavelmente destinadas ao sacrifício no Templo, situado a pouca distância.
O nome do tanque era Betesda que significa “Casa da Misericórdia” e era procurado por todo o tipo de doentes porque as suas águas tinham a fama de curar quando agitadas por um anjo.
Diz também o versículo 3 que entre aquela multidão de enfermos havia três grandes enfermidades: cegos, coxos (ou paralíticos) e ressicados ou doentes com ossos sem vida.
Nestas informações que o texto nos fornece cruza-se uma série de elementos com carácter simbólico e espiritual.
Na primeira ida a Jerusalém, Jesus dirige-se ao Templo, ao centro religioso da nação, onde se acolhe a elite sacerdotal. Mas nesta segunda visita, vai junto do povo desprezado passando pela Porta das Ovelhas aquele que é o Cordeiro de Deus.
Na primeira visita, derriba as mesas dos cambistas, mas na segunda está na Casa da Misericórdia aquele que é misericordioso.
O texto diz-nos que o tanque tinha 5 alpendres ou pórticos. O pórtico recorda o Templo, nomeadamente o pórtico de Salomão (João 10:23), pois era nos pórticos que se praticava o ensino oficial. Agora, neste local com 5 pórticos, Jesus surge para ensinar algo de novo, uma nova Lei marcada pela misericórdia de Deus. E tal como o edifício doutrinário dos Judeus se baseava nos 5 livros da Lei, agora este ensino de Jesus processa-se à sombra destes 5 pórticos.
O versículo 3 diz que entre a multidão de enfermos se contavam cegos, coxos e ressicados. Para além de deixar implícito que Jesus se sente bem entre as multidões de necessitados porque lhes traz não apenas uma palavra de ânimo e de consolo mas também a solução para os seus problemas, revela-O pronto à acção.
Do ponto de vista espiritual, um cego não consegue ver as realidades da Escritura santa – mas Jesus é a luz do mundo – quem O segue não andará em trevas.
Um coxo ou paralítico está incapacitado de percorrer com normalidade e desenvoltura o caminho que o leva a viver uma vida plena – mas Jesus é o caminho e quem segue por ele não se perde e pode desfrutar a beleza de toda a paisagem.
Um ressicado, que faz lembrar a visão do vale de ossos secos de Ezequiel 37, é alguém cujos ossos estão secos, sem vida e, portanto, inúteis – mas Jesus é a água e a vida, vivificando todo aquele que por acção própria ou pelas circunstâncias exteriores se encontra sem vida e com uma alma seca.
Sabemos também que o paralítico a quem Jesus se dirige se encontrava naquela situação há 38 anos. Não deixa de ser curiosa esta constante referência a números, que encontramos nos evangelhos: 12 apóstolos, 70 discípulos, 5 maridos, 5 alpendres, 38 anos, 153 grandes peixes e por aí fora.
Quarenta foram os anos passados no deserto durante o êxodo, mas é curioso que Deuteronómio 2:14 refere que de Cades-barnea até ao ribeiro de Zered, se tinham passado 38 anos, em cujo período desaparecera a geração de murmuradores contra Moisés. Cades-barnea foi o local onde os Israelitas se assustaram com o relatório dos espias enviados à Terra de Canaã e em virtude disso murmuraram contra Moisés. Embora estando às portas da Terra Prometida, essa revolta impediu-lhes a entrada e forçou-os a peregrinar no deserto durante 38 anos até o povo entrar por Zered em Canaã sob o comando de Josué.
Haveria então uma relação entre o episódio da rebelião e a situação do paralítico porque, de acordo com João 5:14, a ordem de Jesus de ele não pecar mais sugere que a sua situação de enfermidade se devia ao pecado.
O que é certo é que aqueles 38 anos indicam que toda a vida útil daquele homem fora consumida pela doença, resultante do pecado, impedindo-o de uma vida plena e significativa.
Tantos anos enfermo provocam danos não apenas físicos mas também psicológicos. Repare-se que quando Jesus lhe pergunta “Queres ficar são?”, uma pergunta que parece desnecessária e que quase exige uma pronta resposta positiva, o homem refere as circunstâncias externas que o impedem de ser curado. Há um claro desânimo na sua voz. Um tom de justificação, uma atribuição de culpa a terceiros, uma total dependência da ajuda e da caridade alheia.
Ficamos com a sensação de que Jesus quer do homem uma resposta clara, não uma desculpa, quer a aceitação de que, embora necessitado de ajuda, está disposto a fazer o que está dentro da sua acção para sair daquela situação.
Na resposta de Jesus, podemos encontrar todo o um evangelho. Para já, é um evangelho, ou seja, boas notícias: “Levanta-te, toma a tua cama e anda.” (v. 8). Temos aqui três verbos, todos eles no imperativo, que indica uma ordem. A ordem implica autoridade e poder Só dá uma ordem quem é detentor de autoridade.
Em segundo lugar, todos esses verbos referem uma acção activa e não passiva: levantar, tomar (segurar ou transportar) e andar.
Ora, o evangelho é poder, conforme o ensino de Paulo:”Não me envergonho do evangelho de Cristo, pois é o poder de Deus para salvação de todo aquele que crê.” (Romanos 1:16). Mas o evangelho não se limita ao poder mas apresenta-se como a manifestação de acção. Basta reparar na última instrução dada aos discípulos: “Ide, ensinai, baptizai.” (Mateus 28:19).
Neste episódio, Jesus não apenas mostra a Sua autoridade como ordena que o homem aja, que faça alguma coisa, que não se renda à passividade.
Levanta-te… De imediato vem-nos à lembrança uma outra ordem semelhante “Levanta-te de entre os mortos e Cristo te esclarecerá” (Efésios 5:14). Levantar implica que o homem tinha de abandonar a prostração em que se encontrava, de se assumir na posição erecta, aquela que caracteriza o ser humano normal e com a qual Deus o dotara, em suma, assumir a sua condição de ser humano pleno, não sujeito a qualquer amarra que o diminua.
O Evangelho é a restauração da integridade total do ser humano, a proclamação posta em prática de que Deus quer o homem livre de tudo quanto o impede de, em comunhão com o Salvador, atingir a plenitude daquilo para que foi criado.
A segunda acção era tomar a sua cama. Não bastava que o paralítico se assumisse como homem pleno, em combate contra aquilo que o mantinha prostrado: era-lhe ordenado que assumisse o controlo sobre os instrumentos da sua prostração e infortúnio. Agora, já não era servo daquela cama, mas seu senhor. Ao tomar a sua cama, estava a impor-se à sua infelicidade, a dominar as suas circunstâncias, a confirmar a recuperação do seu estatuto de homem livre e pleno. Como cristãos libertos das amarras do pecado, temos de lhe mostrar que ele agora não tem domínio sobre nós.
A última acção – andar – implica movimento. Repare-se na progressão das acções, no sentido do esforço que cada uma exige. Assim é a nossa caminhada cristã: começamos com uma decisão pessoal de tomar uma atitude, ainda que contra todas as expectativas e circunstâncias; depois, vamos assumindo poder e controlo sobre o que nos dominava e diminuía e finalmente pomo-nos a caminho à descoberta de um mundo novo cujas portas nos são abertas pelo evangelho.
Ao ser-lhe ordenado que andasse, o homem é convidado a abandonar por completo o seu local de prisão, a sua condição de incapacitado e a dirigir-se para um mundo a que não tinha pleno acesso porque a paralisia lho impedia. E cada passo que dava afastava-o cada vez mais do seu lugar e circunstância de infortúnio.
Assim é connosco a partir do momento em que Cristo entra na nossa vida: Ele levanta-nos, faz-nos senhores do nosso infortúnio e leva-nos à descoberta incessante das novas realidades espirituais, com isso afastando-nos cada vez mais da vida velha de aprisionados ao pecado.
Repare-se que o homem pegou na cama onde jazia e transportou-a pela cidade. Sabemos isso pelo versículo 10, quando os religiosos lhe dizem que por ser sábado não podia transportar a cama.
E perguntamos: se dele foi curado, porque leva ele o instrumento do seu infortúnio? Haverá algumas razões. E à partida, não nos esqueçamos de que ele transporta não a sua condição mas o instrumento da sua condição.
Em primeiro lugar, ao não deixar no local a sua cama, nem deixa lixo para trás nem permite que algum outro se aproveite da cama, perpetuando o ciclo da dependência. Assim também, ao sermos salvos, limpemos o local e as circunstâncias onde estivemos. E sempre que passarmos pelos locais ou situações onde vivemos em pecado, podemos dizer: agora sou livre, o meu pecado foi levado para longe!
Em segundo lugar, levando a cama, o homem tem agora sempre presente que já não é seu servo, mas seu senhor e que aquela cama pode servir para outras funções mais dignas.
Finalmente, levando a cama, deu testemunho aos religiosos de quem o curara, testificando ao mesmo tempo que encontrara alguém que era superior a todos os preceitos religiosos e ideológicos que nos possam prender.
De facto, nesse encontro com os religiosos, o homem deu testemunho do que lhe acontecera e à pergunta sobre a razão de transportar a cama num dia de sábado, respondeu: “Aquele que me curou, ele próprio disse: Toma a tua cama e anda” (v. 11).
Sentimos o desejo de aclamar esta declaração do homem e a sua coragem, firmeza e certeza. Mas se lermos com atenção, verificamos que falta qualquer coisa à declaração – faltou-lhe referir que Jesus primeiro lhe dissera “Levanta-te.” No fundo, omitiu o mais importante – sem se levantar, não podia tomar a cama e muito menos caminhar. Que lição para nós! Quantas vezes ficamos tão deslumbrados com a nova situação em que nos encontramos, com as novas possibilidades à nossa disposição que nos esquecemos daquilo que nos permite viver a nova situação, que nos esquecemos d’Aquele em quem tudo começou no que de bom nos aconteceu.
Sejamos-Lhe gratos e em tudo reconheçamos não apenas o que nos fez mas todas as Suas palavras que nos abriram o caminho à vida eterna.
Soli Deo gloria!

C. Ourique, 31.Maio.2022