O DISCURSO INCÓMODO

O Discurso Incómodo

João 5:10-47

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E Jesus lhes respondeu: Meu Pai trabalha até agora e eu trabalho também. (João 5:17)

Na meditação anterior, falámos de um homem paralítico há 38 anos, a quem Jesus curara. Agora, vamos ver as consequências dessa cura e as reacções que provocou em quem presenciou e experimentou o acto miraculoso e nos representantes do sistema religioso que ordenava toda a sociedade de então. Nesta secção do evangelho de João, vemos o confronto entre a doutrina anunciada por Jesus e as normas religiosas impostas ao povo. Também aqui temos o início da oposição declarada entre Jesus e o sistema religioso centrado no templo de Jerusalém e o primeiro grande discurso público de Jesus.

Tudo começa com o rescaldo da cura do paralítico. Embora no início do episódio nada se diga do dia em que ele ocorreu, apenas informando que se deu num período festivo, sabemos pelos versículos 9 e 10 que era um sábado.

Havia duas instituições que caracterizavam o ser Judeu e que a nação respeitava profundamente: a circuncisão e a guarda do sábado. É verdade que havia outras de igual importância, como a Lei moisaica e o templo com os seus sacrifícios, mas aquelas duas estavam coladas à alma judaica, com uma delas – a circuncisão – marcada no próprio corpo do homem judeu.

Ora, sucede que o paralítico, agora curado, é confrontado e repreendido por transportar a sua cama num dia de sábado, com isso infringindo a proibição de trabalhar nesse dia. Em termos práticos e aos ouvidos dos acusadores, o homem está a confessar que encontrou alguém com autoridade acima da instituição do sábado. Ao submeter-se a essa ordem, o ex-paralítico acaba por se tornar cúmplice do suposto infractor e por essa causa merecedor de repreensão. Quanto aos acusadores, estão mais preocupados com o cumprimento dos preceitos religiosos do que com o facto de o homem estar curado ao fim de tantos anos enfermo.

Ficamos na dúvida quanto à intenção da pergunta sobre a identidade de quem lhe ordenara que transportasse a cama (v. 12), mas não é difícil imaginar que não seria mera curiosidade mas visava criticar e condenar a suposta transgressão da não observância do sábado. Disso é reflexo não só o discurso posterior de Jesus como a própria declaração do autor do evangelho: “Por essa causa, os Judeus perseguiram Jesus e procuravam matá-Lo.” (v. 16).

É interessante o conteúdo do versículo 13: “O que fora curado não sabia quem era [o que o curara] porque Jesus se havia retirado, em razão de naquele lugar haver grande multidão.” Notemos aqui dois pontos de extremo interesse e importância. “Jesus havia-se retirado”. Ou seja, Jesus não faz alarde do acto miraculoso que realizou. Ele actua de forma discreta, deixando que as Suas palavras produzam efeito por si mesmas não se comportando como um vendilhão de mezinhas miraculosas, à espera de ser aclamado. Note-se também e saliente-se a expressão “naquele lugar.” Esse lugar é a piscina e nele a multidão era grande e composta por toda a casta de necessitados. Atendendo a que biblicamente as águas representam as nações (Apocalipse 17:15), podemos assumir “aquele lugar” como simbolizando os povos. Ora, foi no meio do povo necessitado que o poder de Deus se manifestou e não no templo, transformado em centro comercial, em casa de venda, explorador das necessidades dos necessitados. Como se o texto nos estivesse a dizer que Deus não se manifesta em edifícios de marca humana que, embora de aspecto divino, acabam por perder a sua sacralidade, mas junto das multidões que, quais ovelhas entrando pela porta da ovelhas, se aglomeram sem esperança, corroídas pelos males que a sua vida de pecado lhes vai deixando na existência.

Na sequência deste episódio de cura, temos o primeiro grande discurso de Jesus, cheio de uma novidade vivificadora e que entra em choque directo com a mentalidade rígida e castradora de um sistema religioso que impõe aos seus seguidores o espartilho do formalismo institucional. A isso, Jesus tem para oferecer uma mensagem de relação e comunhão com Deus, encarado como pai e não como juiz, como restaurador pleno da vida, convidando os mortos a deixarem o seu estado de decomposição e a aceitarem a nova vida que lhes é oferecida.

É interessante a forma como Jesus inicia este Seu importante discurso: “Meu Pai trabalha até agora e eu trabalho também.” (v. 17). Começa com duas expressões estranhas. Trata Deus não como Senhor e dono, não como juiz e distante, mas como Pai, o que indica uma proximidade de intimidade. Depois, declara que ”Deus trabalha até agora”, numa aparente oposição à afirmação de Génesis 2:3, “e abençoou Deus o dia sétimo e o santificou porque nele descansou de toda a Sua obra que Deus criara e fizera.” Era com base neste texto que toda a Lei se apoiava para justificar a sacralidade do sétimo dia, o sábado. Ora, as palavras de Jesus não deixam de surpreender a um ouvido formatado pelas imposições formalistas e rígidas do pensamento religioso, consideradas imutáveis e intocáveis e, por isso, essas palavras foram categorizadas como heréticas

De facto, Jesus nunca nos deixa de surpreender, a tal ponto que, quando consideramos ter a resposta para todos os problemas, Ele chega e baralha-nos a ordem e o conteúdo das perguntas. E habituados que estamos a ter resposta pronta, decorada sem uma reflexão cuidada e baseada no espírito da vida e não na letra formal e fria da lei institucional, sentimo-nos sem chão, dispostos a rejeitar tudo quanto vá contra as nossas certezas.

É o que Jesus faz aqui nesta Sua intervenção: baralha a ordem das perguntas, faz uma releitura da verdade-base e diz sem rodeios: “A revelação tem de ser lida na bênção e na certeza de uma relação com Deus na Sua qualidade de Pai preocupado connosco e interessado no acabamento desta obra-prima que é a vida humana, a quem Ele considera Seu filho.” No Génesis, Deus descansou da obra que fizera e criara, porque tudo estava perfeito, pois em Génesis 1:31, lemos que era tudo muito bom. Mas agora, neste mundo que Ele criou, há criaturas Suas que saíram das Suas mãos, destinadas a uma comunhão íntima com Ele, que estão manchadas, imperfeitas num caos sem retorno. E enquanto nesse caos não houver ordem, beleza e perfeição, Deus não descansa. Ele trabalha até agora porque está interessado em cada um e de cada um de nós aproxima-se não como legislador, não como juiz mas como Pai. E para que O possamos reconhecer e à Sua obra e intenção, enviou-nos Seu Filho Jesus que se nos apresenta idêntico a nós, mas perfeito, dizendo com isso que tal como Jesus é, assim podemos nós também ser.

Ora, todo este discurso surge como blasfemo pelos guardiões do templo erigido por mãos humanas, pelos defensores do formalismo religioso institucionalizado, pelos carrascos da liberdade que querem perpetuar a menoridade do ser humano, impedindo-o de caminhar na nova liberdade que lhe é oferecida.

De facto, é como blasfémia que os Judeus recebem este discurso, porque o versículo 18 revela que a razão de O quererem matar baseava-se no facto de não só quebrar o sábado, como de se assumir como idêntico a Deus.

Há comentadores que afirmam que Jesus não se declara igual a Deus e que essa afirmação resulta de uma interpretação equivocada que os Seus interlocutores fizeram das Suas palavras no versículo 17 e que nós repetimos sem uma devida contextualização. No entanto, se lermos com atenção toda a argumentação subsequente de Jesus, verificamos que a interpretação dos Judeus não está divorciada da verdade. Essa argumentação tem início no versículo 19, onde Jesus começa com uma atitude didáctico-pedagógica, seguindo o método que sempre seguiu: parte do conhecido para o desconhecido, parte de uma realidade física e detectável para uma verdade espiritual e transcendente.

No versículo 19, habitualmente as nossas Bíblias grafam “filho” e “pai” com maiúscula, querendo assim indicar que essas palavras se referem de forma directa, respectivamente a Jesus e a Deus, o que significaria que é logo aqui que Jesus começa a Sua argumentação de se afirmar igual a Deus. Propomos, no entanto, uma outra leitura que se torna mais clara se lermos essas duas palavras com minúscula. Assim, o que Jesus estaria a dizer era que tal como numa relação humana um filho está dependente do pai, de quem tudo aprende, assim é a relação entre Jesus e Deus. E de facto, faz sentido esta releitura; um pai projecta-se no filho, ensina-o, revela-lhe o segredo das coisas e envia-o ao grande mundo onde revelará a todos aquilo que aprendeu com o pai a quem viu fazer tudo quanto agora faz. Esta é uma realidade física que todos conhecemos e que era também do conhecimento dos adversários de Jesus que, a partir deste ponto consensual, avança para a grande verdade espiritual: de igual modo, se Deus Pai ressuscita os mortos e os vivifica, se Deus Pai cura os doentes, então o Filho de Deus limita-se a fazer o mesmo que Deus Pai. E se Jesus cura, vivifica e ressuscita os mortos, então que conclusão podemos extrair?

Todo o discurso de Jesus, desde o versículo 21 até ao 47 segue esta linha de pensamento, pelo que chegando ao fim, podemos afirmar que em tempo algum Jesus desmente a conclusão a que os seus opositores chegaram: Jesus está a declarar-se igual a Deus.

E para dar força às Suas reivindicações, Jesus declara que a Sua confissão se baseia no cumprimento das Escrituras que testificam d’Ele. No versículo 37, lemos: “O Pai que me enviou, Ele mesmo testificou de mim” e no versículo 39 encontramos: “Examinais as Escrituras… que de mim testificam.” E no seguimento, uma conclusão poderosíssima: “E não quereis vir a mim para terdes vida.” (v. 40). N’Ele há vida e por isso podia proclamar: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida.” (João 14:6)

Soli Deo gloria!

SAC, 7.Junho.2022