A Mulher Samaritana – II

A Mulher Samaritana – II

João 4:19-30

 Jorge Pinheiro 7

Disse-lhe Jesus: “Mulher, crê-me que a hora vem em que nem neste monte nem em Jerusalém adorareis o Pai. Vós adorais o que não sabeis; nós adoramos o que sabemos, porque a salvação vem dos Judeus. Mas a hora vem e agora é em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade, porque o Pai procura a tais que assim O adorem. (João 4:21-23)

 

Na meditação anterior, detectámos um paralelismo entre o estado civil da samaritana e a situação espiritual do seu povo. Relembremos que a revelação de que ela tivera cinco maridos e de que o homem com quem então vivia surge no seguimento do pedido de água por parte de Jesus, que afirma ter uma água que supera a água do poço, pois sacia eternamente a sede de quem a bebe. É neste contexto que surge a ordem de Jesus de ela ir buscar o seu marido e de se apresentarem os dois perante Ele. Nesta ordem, há um apelo a que a mulher assuma um compromisso com quem mantém uma relação de intimidade.

Não será forçar o texto afirmar que a recepção desta água viva que Jesus oferece implica um compromisso de uma relação íntima com a aceitação dessa mesma água. De facto, do Cristão exige-se um compromisso com as verdades que recebemos de Deus e com a dádiva de Jesus que em nós produz o abandono de uma água caduca que não sacia perpetuamente e que, pelo contrário, exige de nos uma recorrência constante aos mesmos rituais, muitas vezes realizados quando o calor das aflições mais aperta, simbolizada pela hora sexta a que a mulher se dirigia ao poço.

Não deixa de ser curioso que a hora a que a mulher se dirigia ao poço era a sexta. Não era apenas o momento de intenso calor, mas também indicava a metade do dia. De resto, a hora sexta corresponde às doze horas do nosso sistema cronológico que é a hora que separa as duas metades do dia. Acrescente-se também que na numerologia bíblica, seis é o número do homem e que foi nessa hora que Jesus começou a dialogar com a mulher, trazendo-lhe a novidade da oferta de uma comunhão íntima com Deus, com quem exige um compromisso firme.

Que lições podemos extrair destes simbolismos? Na hora do homem, a sexta, surge a revelação de Jesus que nos convida a encerrar um ciclo que mais nada tem para dar e iniciar um novo ciclo em que a vida é inesgotável, permanente e vivificadora.

Falando em água, é curioso que além dela Jesus menciona nos seus discursos o sal e o ar. Estes são três elementos carregados de um profundo significado e valor espiritual. O ar ou vento aponta para Deus, que é espírito. Em grego, espírito é designado por pneuma, que também significa vento. Deus, ao criar o homem, soprou-lhe nas narinas e o homem foi feito alma vivente (Génesis 2:7). Jesus soprou sobre os discípulos, dizendo: ”Recebei o Espírito Santo (João 20:22). No dia de Pentecostes, o Espírito Santo desceu sobre os apóstolos como um vento impetuoso (Actos 2:2). Quanto à água, ela está relacionada com o arrependimento, com a purificação e com a salvação, enquanto o sal surge ligado à transformação, à cura, ao testemunho, à santificação.

Estes três elementos são indispensáveis ao ser humano que não pode viver sem eles. Privado deles, o homem pouco tempo tem de vida. Mas eles têm uma característica comum: nenhum tem carbono na sua composição química. Ora, o homem, para além de viver num planeta carregado de carbono, é todo ele formado com carbono e depende do carbono. Todos os alimentos da roda dos alimentos têm carbono na sua composição. A maioria do vestuário e dos abrigos do homem tem carbono e até a sua pedra mais preciosa, o diamante, é carbono puro. O homem pode abdicar de muitas coisas com carbono, da alimentação ao vestuário, que não morre com a sua ausência. Mas privado destes três elementos sem carbono – ar, água, sal – perto está do seu fim. O que nos diz que em termos espirituais o homem não pode viver sem esses elementos de origem divina – o espírito, a salvação, a santificação!

Mas voltando à samaritana, tal como há um paralelismo entre a sua situação civil e a situação espiritual do seu povo, também há um paralelismo entre os Samaritanos e a nossa geração. É que tal como os Samaritanos tinham cinco santuários a deuses estranhos, a nossa geração divide-se e oscila entre cinco grandes correntes do Cristianismo (são elas a Igreja Copta, a Igreja Católica Romana, a Igreja Ortodoxa, a Igreja Anglicana e as Igrejas Reformadas), cujos aderentes consideram a sua matriz como a única verdadeira, imitando os Samaritanos que adoravam no monte Gerizim em oposição ao templo de Jerusalém. E quantos no mundo cristão não se agarram ao seu monte, declarando que é apenas nele que Deus se manifesta e pode ser adorado? À semelhança da samaritana, esta geração precisa que Jesus lhe venha dizer “Homens, crede-me que a hora vem em que nem neste monte nem em Jerusalém, adorareis o Pai!” À semelhança da samaritana, esta geração precisa que Jesus lhe diga: ”Homens, adorais o que não sabeis, porque a salvação vem da revelação que vos trago, porque eu vos revelo o Pai!” E todos nós, crentes e descrentes, precisamos de saber que “a hora vem e agora é em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade. Porque o Pai procura esses que assim O adorem.”

Ele convida-nos a sermos  verdadeiros adoradores em espírito e em verdade. Queremos sê-lo? Estamos dispostos a reconhecer e a aceitar as exigências que Ele nos propõe? Estamos dispostos a deixar de adorar nos nossos montes caducos, ultrapassados e muitos deles falsos e deixarmo-nos encontrar pelo Pai que nos busca?

Repare-se que Jesus repete por duas vezes esta expressão “adorar o Pai em espírito e em verdade” (4:23, 24).

Note-se que em resposta à argumentação da mulher relativamente ao local de adoração (v. 30), Jesus é muito claro e taxativo: “Vós adorais o que não sabeis… a salvação vem dos Judeus.” Apesar de toda a novidade apresentada por Jesus e que abala todo o edifício teológico da samaritana, Jesus não tem para com ela uma palavra de condenação ou de danação. Ele apenas afirma a verdade. À semelhança da samaritana, precisamos de saber e de aceitar que a verdade vem da revelação de Deus aos patriarcas, aos profetas e aos apóstolos, revelação essa concentrada em pleno em Jesus, o dom de Deus para a humanidade.

Num segundo ponto, Jesus declara que Deus é Pai, o que indica que a relação entre nós e Deus tem de ser de intimidade porque recebemos d’Ele a Sua natureza. Não somos um corpo exógeno ou estranho para Deus. Entre Ele e nós não há anticorpos porque, como Seus filhos, partilhamos com Deus a Sua natureza. E se anticorpos surgirem, o sangue de Cristo elimina-os porque pelas Suas pisaduras fomos sarados.

Uma terceira verdade é que o momento em que podemos e devemos adorar a Deus conforme a revelação de Jesus, já chegou. “Mas a hora vem e agora é.” (v. 23). Jesus abriu o caminho para essa comunhão, iniciou esta nova era, introduzindo-nos num tempo novo quando por ocasião da Sua morte o véu do templo se rasgou.

Uma quarta verdade é que Deus não está dependente de um lugar, não está preso nem aprisionado num santuário feito pela mão de homem algum. Diz o apóstolo Paulo que nós somos o templo do Espírito Santo, o que faz todo o sentido porque se temos a natureza de Deus e se o Espírito de Cristo habita em nós, então nada mais natural que o semelhante procure o semelhante.

O que nos leva a uma quinta verdade: o Pai procura esses que assim O adorem. Deus procura-nos e como podemos escapar Àquele que tudo vê e a cujos olhos nada escapa? Se o Pai busca é porque tem interesse em nós. Para Ele somos preciosos. E que coisa maravilhosa essa quando, olhando para nós mesmos e nos achando tão falhos e tão indignos, ouvimos que Deus nos busca! Como não reagir gozosos, dispostos a tudo fazer, agradecidos porque o Seu amor nos constrange, a Sua benignidade dura para sempre e n’Ele estamos protegidos, escondidos na Sua potente mão? Por isso, a nossa resposta não pode ser outra senão actos de agradecimentos e de amor.

O nosso culto antigo exigia o recurso a bens exteriores – o sacrifício – a que renunciávamos e que quantas vezes não apresentavam a nossa impressão digital e ofertados não poucas vezes como o fruto do medo! Agora, neste culto a que Jesus nos convida a participar, entramos confiantes com uma oferta que provém não do exterior mas do íntimo de nós mesmos, sabendo que ela será aceite pelo nosso Pai que se compraz em chamar-nos Seus filhos.

Recorde-se que a mulher, percebendo o alcance das palavras de Jesus, deixa o cântaro para trás (v. 28), liberta do seu peso, e corre a anunciar esta boa nova. A palavra cântaro é a mesma do episódio de Caná. Ambas estavam ligadas ao culto antigo que exigia todo um cerimonial externo para uma aproximação  a Deus. Que à semelhança da samaritana estejamos dispostos a largar o nosso cântaro que nos prendia a tradições, a legalismos, a um culto ritualista que se erguia como uma barreira à entrada directa na comunhão com Deus.

Finalmente, a grande verdade desta revelação de Jesus – Ele diz que é possível e assim deve ser o nosso culto a Deus: “em espírito e em verdade.”

O nosso culto deve ser verdadeiro em dois sentidos: 1) não ser falso, mas ser real e 2) basear-se na verdade que é Cristo, que o mesmo é dizer que todo o nosso culto tem de estar em sintonia com os ensinamentos de Cristo.

Mas o que significa a expressão “adorar em espírito”?

Antes de tentarmos responder, recordemos que os Judeus utilizavam como sinónimo de adorar uma palavra que se referia a “servir.” Ora, servir implica dar sem esperar nada em troca. Assim, quando adoramos, estamos a ofertar um serviço. Já o Novo Testamento utiliza dois termos para “adorar.” Um conserva o significado de “servir”, enquanto o outro transmite a ideia de “prostrar-se.” Por isso, na adoração o crente tem a tendência a prostrar-se, a inclinar-se perante Deus.

Notemos que a expressão “adorar em espírito” vem no seguimento da declaração de que “Deus é espírito” e é antecedida pelo verbo “importa”, ou seja, “é necessário”, “é imperioso”, “é indispensável.” Há aqui uma relação de causa e efeito; como Deus é espírito, Ele tem de ser adorado em espírito! Ou seja, a nossa adoração, o nosso serviço a Ele tem de ter em si características que façam parte da natureza de um espírito e, neste caso, do espírito de Deus.

Então, se a única adoração agradável a Deus tem de ser “em espírito”, temos não só de conhecer as características do espírito de Deus, de conhecer a natureza íntima de Deus, como incorporar na nossa adoração essas mesmas características, porque o semelhante identifica-se com o semelhante.

Vemos então que se quisermos adorar correctamente Deus, temos de O conhecer e de ter presente que  a adoração é um serviço que Lhe prestamos a Ele e não a nós, que na adoração toda a nossa atenção e intenção têm de estar centradas n’Ele pois é Ele a quem servimos.

Se Deus é espírito, então não está dependente nem limitado por tudo quanto esteja relacionado com o mundo físico, com o mundo do relativo. Assim, Deus não está nem pode estar preso ou dependente de um lugar, de um objecto, do tempo, de uma postura especial ou de qualquer coisa cuja natureza e existência estejam dependentes e ligadas ao mundo físico. Por isso, Jesus dizia (v. 21) “que nem neste monte [Gerizim] nem em Jerusalém devemos adorar o Pai.” Não há, pois, lugares que por si só sejam sagrados porque se sagrado é o local onde Deus está, então toda a criação é sagrada porque toda ela saiu das mãos de Deus. Assim, o mais correcto seria afirmar que sagrado é o local onde Deus na Sua busca de nós nos encontrou e aí O servimos.

O que se diz do espaço, diz-se do tempo, dos objectos, de tudo quanto nos identifica como seres finitos e relativos que somos. Assim, embora te devas esforçar por te apresentar neste encontro com Deus de uma forma considerada digna, o importante é que o encontro se faça, o importante é que Deus ao te buscar te encontre. Deixemo-nos, pois, encontrar porque nesse encontro dá-se a junção de dois seres que, embora distintos, partilham algo em comum. E quando esse algo em comum se encontra, então podemos ter a certeza de que em resultado desse encontro o nosso espírito ficou mais enriquecido, ficou mais purificado. Isso é espiritualidade. Por isso, fomos chamados a ser espirituais e não meros religiosos.

Soli Deo gloria!

C. Ourique, 10.Maio.2022