As Três Histórias

As Três Histórias

Jorge Pinheiro 6Dr. Jorge Pinheiro

 

 
Porque Herodes tinha prendido João e tinha-o manietado e encerrado no cárcere por causa de Herodias, mulher de seu irmão Filipe. E mandou degolar João no cárcere. (Mateus 14:3,10).
E tendo mandado que a multidão se assentasse sobre a erva, tomou os cinco pães e os dois peixes e, erguendo os olhos ao céu, os abençoou e, partindo os pães, deu-os aos discípulos e os discípulos à multidão (Mateus 14:19).
E respondendo Pedro, disse-lhe: “Senhor, se és Tu, manda-me ir ter contigo por cima das águas.” E Ele disse: “Vem.” E Pedro, descendo do barco, andou sobre as águas para ir ter com Jesus (Mateus 14:28).
Introdução

Com este capítulo, chegamos a meio da narrativa do evangelho segundo Mateus. E chegamos a meio não apenas da narrativa em si mas de toda a trama histórica narrada. A partir daqui, a história encaminha-se para o seu fim num ritmo cada vez mais acelerado e intenso.

É verdade que nos capítulos da segunda metade ainda vamos encontrar parábolas, mas os milagres portentosos são em número reduzido e a narrativa culmina com o que podemos designar de milagre supremo – a ressurreição de Cristo, o triunfo da vida sobre a morte, a vitória do bem sobre o mal, a garantia de que o plano de Deus para a humanidade geral e o ser humano particular se cumprirá até ao último pormenor.

Este capítulo 14 como que encerra toda uma sequência de episódios que revelam um novo olhar sobre o desígnio de Deus para a humanidade, revelando o modo como Deus sempre quis que fosse encarado e vivido pela coroa da Sua criação. Na verdade, partindo da Lei escrita e revelada, Jesus conduz os Seus ouvintes na descoberta da substância e do espírito dessa mesma Lei como que a destapando e revelando o carácter de Quem concedeu essa lei aos homens.

Todo este percurso e discurso de Jesus suscita incompreensão, estupefacção e finalmente perseguição. A partir dele, o autor como que vai encerrando cada capítulo de ensino, de controvérsia, de milagres da primeira parte do seu evangelho e encerra todo o seu período de ensino, mostrando Jesus num recolhimento com os Seus discípulos, de que é prova o Sermão Profético (Mateus 24, 25), o último grande sermão de Jesus. Depois, encaminha-se no Seu jeito sereno para um momento de recolhimento pessoal junto do Pai, em preparação para o maior drama de toda a história humana – a Sua crucifixão e morte, que culminará na ressurreição.

Mas centremo-nos no capítulo 14 e nas lições que dele podemos extrair. Ele é composto por três episódios em que o carácter de narrativa histórica é dominante. Nele, acabamos por encontrar três estórias que não se limitam a uma mera narrativa de factos mas em que podemos descobrir ensinamento profundo. Esses episódios são:

1. A morte de João Baptista.
2. A primeira multiplicação de pães.
3. Jesus andando sobre as águas.

E há uma primeira lição a extrair do conjunto destas três histórias. À semelhança dos que nelas intervêm, cada um de nós tem também uma história individual, ou melhor, um conjunto de histórias parcelares que, no seu conjunto, formam um todo, a nossa história pessoal. E em cada uma dessas histórias parcelares da nossa história pessoal, há lições que podemos extrair que, de acordo com a nossa aprendizagem, podem influenciar toda a sequência futura. Ou, dizendo de outra forma, em cada episódio da nossa vida, Deus fala-nos e revela-nos as Suas intenções. Em momento nenhum se aplica com tanta justeza e pertinência o que Jesus dizia: “Quem tem ouvidos para ouvir ouça!”

Estejamos, então, atentos ao que Deus nos quer dizer em cada episódio vivido na e da nossa vida.
1. A Morte de João Baptista

Por vezes, numa história detemo-nos mais na caracterização de certos elementos da narrativa, que tanto podem ser personagens vivas, humanas ou não, como elementos decorativos e olvidamos o cerne da história, a sua verdade nuclear, aquela que no fundo mais interessa explorar, entender e reter.

No caso da morte de João Baptista, somos tentados a querer saber quem é este Herodes, como se chamava a dançarina e somos capazes de citar em sequência pormenorizada a execução do Baptista, porque é um elemento que nos horroriza. E por sabermos reproduzir a história, convencemo-nos de que nada mais há a acrescentar e de que a conhecemos ao ínfimo pormenor. Mas esse é um conhecimento epidérmico. Se queremos avançar, não podemos ficar apenas com as verdades superficiais. Não podemos contentar-nos com as verdades da superfície das coisas. É que essas verdades são apenas a pele de todo um corpo doutrinário e didáctico que lhe subjaz. E como é rico esse corpo! Nunca nos cansemos de meditar nas histórias da Escritura, sabendo que elas escondem tesouros inesgotáveis. Cabe a cada um deixar-se guiar pelo Espírito Santo que, segundo a garantia de Deus, nos guiará em toda a verdade.

Há algumas verdades que detectamos no episódio da morte de João Baptista, umas mais agradáveis que outras.

A primeira contradiz o falso evangelho que tem vindo a inquinar as igrejas. Esse falso evangelho vende um veneno com rótulo de medicamento. Esse veneno diz que se o crente sofre é porque não tem fé e que a sua vida tem de ser um rol de vitórias contínuas. É verdade que essas afirmações não são falsas em si, mas para serem entendidas têm de ser explicadas ou, se quisermos utilizar uma linguagem mais técnica, têm de estar sujeitas a uma hermenêutica correcta e exigente para que a exegese apresentada não induza ao erro, num despautério despudorado.

É que essas afirmações ditas como chavões de frases feitas assumem-se como mantras mágicos. Ora, as varinhas de condão só existem e funcionam nas histórias de encantar.

Perguntamos:

João Baptista não tinha fé?
Paulo não tinha fé?
Tiago não tinha fé?

E poderíamos continuar, culminando com Jesus que, apesar de tudo quanto disse e fez, sofreu uma morte e um sofrimento horríveis.

Foi por terem fé que todos esses gigantes souberam enfrentar a adversidade, fitando-a não com olhos de carneiro mal morto mas de águia penetrante e de leão possante, dizendo-lhe sem medo que maior é o que está em nós e que nada nos pode separar da convicção que conquistou o nosso ser.

Outra lição que este episódio nos ensina é que os poderosos não escapam ao escrutínio da justeza divina e que se não arrepiarem caminho do seu mau viver acabam transformados em assassinos. E esse é um dos alimentos que o falso evangelho nos quer obrigar a tragar – a sedução pelo poder. Como esse evangelho não tem lugar para o sofrimento, abraça despudoradamente o poder e, com isso, embriagado com as vantagens que o poder oferece, transforma-se em ditador e não hesita em mandar assassinar as vozes discordantes. Embora não literal, esse assassínio funciona como tal.

Em jeito de esclarecimento do pormenor, este Herodes chamava-se Herodes Antipas e era filho de Herodes, o Grande, morto há cerca de 30 anos. Quanto à dançarina, o seu nome era Salomé filha de Herodes Filipe.
2. A primeira multiplicação de pães

Neste episódio, com poucos pães Jesus alimenta uma multidão de, pelo menos, cinco mil pessoas.

Curiosamente, exceptuando o milagre da ressurreição de Cristo, este é o único milagre que nenhum dos quatro evangelhos omite. O outro episódio comum aos quatro é a unção dos pés de Jesus pela mulher pecadora. De acordo com o relato de João, foi na sequência deste milagre que Jesus pronunciou o Seu discurso famoso de ser o pão da vida (João 6:51).

Ninguém ignora o valor do pão e o papel que ele desempenha na dieta alimentar de cada povo. É talvez o alimento de que nunca nos enjoamos de ingerir. No registo popular, pão é sinónimo da própria vida. Quantas vezes um pedinte esmola não dinheiro mas um pão para sobreviver… Pão é também sinónimo dos nossos rendimentos que nos permitem fazer frente às despesas da vida corrente. Não é raro ouvir a expressão: “Esta actividade, este trabalho é o meu ganha-pão.” Neste episódio, podemos dizer, então, que uma das personagens centrais é precisamente o pão, com tudo aquilo que ele representa.

Deixemos de lado a interpretação simbólica que alguns fazem do número de pães e peixes e de pessoas e cestos tanto na primeira como na segunda multiplicação (numa, 5 pães, cinco mil homens e 12 alcofas; na outra, sete pães, quatro mil homens e sete cestos). É verdade que os números falam e muitas vezes têm um valor simbólico e talvez aqui possam ser relevantes, mas parece-me que qualquer extrapolação é pura especulação. Por isso, é preferível ficarmos com aquilo que, com segurança, podemos extrair do tesouro desta arca.

E de novo, em contraste com os bispos do falso evangelho que, arrimados na sua posição de poder, não têm qualquer rebuço em explorar os seus fiéis, sugando-os até ao tutano em nome de uma religiosidade hipócrita e distorcida, Jesus preocupa-se em satisfazer as necessidades dos que O seguem, condoendo-se com a sua condição. E pegando no pouco que Lhe apresentam, multiplica esse pouco quase até ao infinito, satisfazendo e mostrando que quando entregamos nas boas mãos do Mestre o que temos, Ele é capaz de, do pouco, fazer muito.

Ao mesmo tempo, este episódio revela-nos que, quantas vezes, temos nas nossas próprias mãos os recursos necessários para que a acção divina os transforme em bênção para os outros. Não rejeitemos nem menosprezemos aquilo que temos entre mãos como coisa pouca e sem valor, mas decidamo-nos a entregá-lo àquele que com a sua bênção pode fazer muito mais do que pensamos ou imaginamos.

Deus tem dado capacidades a cada um de nós, umas vezes na medida da nossa fé, outras em resultado do nosso engenho e labor. Mas seja qual for a origem da nossa capacidade, ela é o que temos e é com ela que temos de percorrer o caminho da vida.

Há outras lições que podemos extrair deste episódio e que mencionaremos sucintamente:

a. Nem sempre o ambiente do milagre é o mais “santo” (14:15 – ocorreu no deserto).
b. Muitas vezes o milagre acontece numa hora nada convidativa (14:15 – a noite aproximava-se).
c. Nem sempre as vozes de quem, pelo seu trajecto pessoal tem uma relação privilegiada com a revelação divina, é de estímulo (14:15 – o discípulos queriam ver-se livres da responsabilidade de resolver o problema).
d. Embora o milagre seja milagre, isso não significa que a ordem e o planeamento estejam ausentes (14:19 – Jesus ordenou que a multidão se sentasse na erva).
e. O milagre sacia em pleno a nossa necessidade e permite que através de nós outros também possam beneficiar dele (14:20 – o número de alcofas levantadas era superior ao número de pães apresentados).

Muitas mais lições poderíamos extrair mas estas são suficientes para nos aguçar o apetite e levar-nos a mergulhar num texto tão rico como este.

 

3. Jesus anda sobre o mar

Este é um episódio que relata uma impossibilidade física. A verdade é que consideramos impossibilidade física no estado presente do nosso conhecimento actual da natureza do mundo e das capacidades do corpo humano. Se, por hipótese, no futuro a ciência descobrir e provar que o corpo humano tem a capacidade de levitar desde que estejam reunidas as condições necessárias, andar sobre as águas deixará de ser uma incapacidade física. Mas mesmo que, por hipótese, isso se venha a provar possível, este episódio não deixa de ser considerado milagre.

Claro, tudo depende do que entendemos ser a definição de milagre e a sua natureza íntima. Salvo melhor opinião, parece-me que reduzir o milagre ao mero prodígio da realização de uma tarefa inexplicável à época em que ocorre, é uma definição muito pobre. E porquê? Porque uma vez explicado, o suposto milagre deixa de ser milagre. Parece-me que a visão de João é mais rica e mais segura – um milagre é um sinal da presença real de Deus, seja o episódio explicável ou não, replicável ou não. De resto, temos o caso de Moisés: as duas primeiras pragas foram replicadas (Êxodo 7:22; 8:7). Teremos de concluir que essas pragas não foram milagres por terem sido replicadas? Teremos de concluir que, por terem sido replicadas, elas são de qualidade inferior às restantes oito?

Então, isso significa que a nossa atenção não se deve deter o facto de Jesus ter andado sobre as águas, embora isso seja extremamente importante e crucial em todo o ensinamento que extraímos deste episódio.

Na verdade, podemos concluir que o andar sobre as águas foi um meio utilizado por Jesus para chegar a um fim maior.

E o facto de Pedro ter andado sobre as águas prova que o corpo humano tem a capacidade de ser o palco do milagre. Perante a dúvida e o pedido de Pedro, Jesus limita-se a dizer-lhe que ponha o pé a caminho.

A evidência e a certeza diziam a Pedro que caminhar sobre as águas era uma impossibilidade física, mas a sua confiança naquele que ele considerava capaz da realização de qualquer prodígio incitava-o a não olhar para a impossibilidade mas para a certeza da comunhão com aquele que tinha as palavras da vida eterna, como mais tarde irá confessar (Mateus 16:16; João 6:68). Curiosamente, em João esta confissão surge depois do episódio de Jesus a andar sobre as águas.

Apesar de testemunhas do muito que haviam visto Jesus realizar, apesar de terem recebido de Jesus a ordem expressa de atravessarem o mar e de O esperarem na outra margem, apesar da garantia de que o vulto que viam no crepúsculo ainda escuro era Ele, mesmo assim a dúvida e o medo apossaram-se dos discípulos. O que viam não era o Mestre amado mas um fantasma. Quando não encontramos explicação para o que vemos e não compreendemos, transformamo-lo em inexplicável e envolvemo-lo nas roupagens da nossa imaginação. Quão fácil é vermos um fantasma na acção miraculosa e inexplicável do evangelho e deixarmo-nos sucumbir nos braços da dúvida e do medo. Por vezes, nem mesmo a voz suave de quem nos salva nos sossega e exigimos uma prova palpável de quem surge como o impossível.

Convenhamos que Pedro não agiu mal ao pedir a Jesus que lhe desse prova de ser Ele mesmo e não o fruto da sua imaginação e do seu medo. Esse é um gesto a seguir e a imitar. Perante a dúvida, o medo, a angústia, a adversidade, o desconhecido, avançamos baseados numa palavra de autoridade.

E foi o que aconteceu com Pedro. Enquanto se manteve confiante na palavra recebida, avançou ignorando as circunstâncias, olhos fitos em quem era o seu destino. Enquanto se manteve seguro na palavra de ordem, manteve-se vitorioso sobre as águas. Quando deu ouvidos à voz da circunstância, geradora dos seus medos, a sua base de sustentação deixou de ser a palavra e o poder daquele a quem até o mar e o vento obedecem (Mateus 8:27). O resultado não podia ser outro senão ver o chão a fugir-lhe debaixo dos pés.

E a terminar, uma palavra sobre a finalidade do milagre, tanto mais que este episódio que narra um milagre termina com a realização de milagres de cura. Para que serve um milagre? Para que queremos um milagre? A ordem que Jesus deixou aos Seus discípulos não foi: “Eis que faço de vós fazedores de milagres”, mas foi antes: “Eis que faço de vós pescadores e ensinadores de homens. E é apenas quando ensinamos e pescamos que os milagres ocorrem. “Os sinais seguirão aos que crerem” (Marcos 16:17). O milagre é sempre um sinal de que a presença de Deus é real. Se o prodígio não redunda na manifestação da presença de Deus e na glorificação do Altíssimo, então estamos na presença de uma fantochada travestida de evangelho.

Que Deus nos guarde de não crermos que Ele seja capaz de ainda hoje realizar milagres e nos guarde também de Lhe roubarmos a glória e de transformar a proclamação do evangelho numa ópera bufa de mau gosto.

 

O Senhor do Sábado

O Senhor do Sábado
Mateus 12

Jorge Pinheiro 5Dr. Jorge Pinheiro
Este é um capítulo marcado por quatro grandes temas, a saber:

1. Jesus é Senhor do sábado – vv. 1-8
Incidente marcado pelo facto de, num sábado, os discípulos de Jesus terem colhido e comido espigas para saciarem a fome.
2. Cura de um homem com a mão mirrada – vv. 9-21
Podemos situar neste incidente, os primeiros sinais de oposição a Jesus.
3. Cura do endemoninhado cego e mudo – vv. 22-32
A oposição detectada no incidente anterior prossegue com mais força neste, em que surge a famosa declaração do pecado imperdoável – a blasfémia contra o Espírito Santo (vv. 31-32).
4. Polémicas – vv. 33-50
Aqui nesta secção, encontramos três momentos em que a polémica está instalada:
4.a. O fruto das árvores – vv. 33-37 – pelo fruto se conhece a árvore.
4.b. A reinterpretação do milagre de Jonas – vv. 38-45 – face ao pedido de um sinal por parte de alguns escribas e fariseus, Jesus afirma-se superior a Jonas e a Salomão, reforçando o que já havia dito antes, de ser maior que o Templo (v. 6)
4.c. A família de Jesus – vv. 46-50 – Jesus aponta as qualificações necessárias para se ser membro da Sua família.
1. Jesus é Senhor do sábado – vv. 1-8

Em resumo, podemos afirmar que este é um capítulo rico em incidentes, em ensinamentos e em polémicas e marca o início do período de oposição do ministério terreno de Jesus. Passado um primeiro momento de interesse por parte dos Judeus em geral e da Nomenklatura religiosa em particular, face ao ensino e ministério de alguém que se torna no início difícil de ser catalogado, acaba o estado de graça de Jesus e começa a oposição que os religiosos Lhe vão mover, tornando-se cada vez mais intensa.

E tudo porque os discípulos de Jesus, com fome, ao colherem e comerem espigas num sábado infringem o que a tradição baseada nos mandamentos da lei moisaica impunha a todo o membro da comunidade judaica.

É verdade que a Lei de Moisés estipulava a guarda do sábado (Êxodo 20:8-11). Esta é uma ordem geral, mais tarde especificada quanto ao modo de ser cumprida (Êxodo 23:10-13; 31:12-18, por exemplo). Como sucede com as leis, que são apresentadas na generalidade e depois discutidas na especialidade, a observância do sábado levantava sempre e necessidade da sua aplicação às diversas incidências provocadas pelas situações do dia-a-dia e que a própria evolução da sociedade exigia. Assim, a par do estipulado na Lei escrita, foi surgindo toda uma normativa legal e legislada, codificada numa lei oral e tradicional, tanto mais que a observância do sábado era basilar e central em todo o ordenamento religioso judaico. A par da circuncisão, a observância do sábado era uma das marcas identificadoras do judeu piedoso, cumpridor da lei moisaica. Como estudiosos da Lei, os fariseus assumiam-se como seus grandes defensores e guardiães máximos e, por isso, estavam atentos a qualquer tentativa de infracção da norma imposta.

Naturalmente que em tese, em princípio, a observância da Lei e a sua especificação e aplicação a cada situação da vida não estão erradas em si. No entanto, como Marcos 2:27 salienta a propósito do mesmo incidente, “o sábado foi feito por causa do homem e não o homem por causa do sábado.” Ou seja, em todo o ordenamento religioso as necessidades humanas em todos os seus domínios têm de estar presentes e ser levadas em conta, não podendo ser menorizadas.

Com este episódio, Jesus recentra as prioridades do ordenamento religioso. As normas religiosas perdem o sentido quando relegam a necessidade humana para segundo plano. Naturalmente, é muito ténue a fronteira entre os dois elementos centrais do culto a Deus – a exaltação da divindade e o lugar que o ser humano ocupa nessa exaltação – e, por vezes, é difícil encontrar o equilíbrio entre ambas essas exigências. Que o Altíssimo merece toda a preeminência não podendo o Seu lugar ser sonegado, disso não há qualquer dúvida. Mas não menos verdade é que sem a atenção devida dada às necessidades humanas, que é o outro elemento do diálogo com a divindade, o culto torna-se desequilibrado e, por isso, sem sentido.

Um profissional religioso, em caso de dúvida, recorre sempre à aplicação cega e fria da normativa religiosa, receoso de, com a sua omissão, ofender a divindade. Ora, como Jesus enfatizava, Deus é amor e compreende a nossa fraqueza, as nossas limitações, as nossas necessidades. Esse conhecimento por parte de Jesus levava-O (e levou-O) a reconhecer Deus primeiro como Pai e só depois como legislador. E nisto, Jesus divergia profundamente dos fariseus e do seu pensamento, os quais invertiam a sua relação com Deus, a quem viam primeiro como legislador e só depois como Pai de família, encarado como o senhor de muitos escravos.

Jesus salientava que se nos aproximamos de Deus como nosso Pai (que Ele é), vemo-Lo na sua faceta de amor que sentimos e experimentamos e, ao vivenciá-los (a Deus e ao amor de Deus Pai), dispomo-nos a sujeitar-nos a toda a Sua vontade, mesmo que esta eventualmente possa ir contra os nossos desejos e necessidades e fazemo-lo motivados pelo amor de um filho para com o pai e de um pai para com um filho e não pela atitude servil, motivados pelo temor de um servo face a um senhor impiedoso, mais interessado no respeito e cumprimento da lei do que numa relação paternal com um filho a quem Ele ama sem limites.

Por isso, Jesus podia proclamar: “se soubésseis o que significa misericórdia quero e não sacrifício, não condenaríeis os inocentes”. Com esta declaração, Jesus fazia eco das palavras de Oseias 6:6: “Porque eu quero misericórdia e não sacrifício; e o conhecimento de Deus, mais do que holocaustos.” Os dois, Oseias e Jesus, são unânimes quanto ao carácter e natureza de Deus, que se compraz mais em ser conhecido pelos Seus do que pelo cumprimento de toda e qualquer normativa religiosa, porque o conhecimento implica intimidade e compromisso com o objecto conhecido. Curiosamente Oseias significa salvo e Jesus significa Salvador. Caso para dizer que o Salvo e o Salvador estão sintonizados.

Mas podemos ver algo mais nesta declaração, nesta antinomia misericórdia-sacrifício. A palavra misericórdia significa literalmente um coração inclinado à miséria enquanto o termo sacrifício significa “tornar sagrado”. Ou seja, a misericórdia é um atributo da natureza de Deus, enquanto o sacrifício é um acto humano. A misericórdia vem de cima e o sacrifício vem de baixo. Ambos os movimentos devem encontrar-se no amor de Deus onde se fundem harmonicamente. Ora, se o nosso alvo é aproximarmo-nos cada vez mais de Deus, essa aproximação começa quando cultivamos em nós os elementos marcantes da natureza divina. Por isso, quando exercemos misericórdia, estamos implicitamente a confessar que nos identificamos com Deus e com aquilo que Ele quer de nós. Não admira, pois, que uma das bem-aventuranças seja precisamente: “Bem-aventurados os misericordiosos porque eles alcançarão misericórdia.” (Mateus 5:7) E na medida em que exercemos misericórdia, o sacrifício deixa de estar relacionado com coisas exteriores a nós que oferecemos a Deus muitas vezes numa ânsia de aplacar a Sua ira e passamos nós a ser o sacrifício agradável a Deus, conforme a recomendação de Paulo em Romanos 12:1-2, em que somos convidados a “oferecer-nos como sacrifício vivo, santo e agradável a Deus que é o nosso culto racional”.

E foi por compreender e conhecer a verdadeira natureza de Deus e a correcta relação que o mortal que O busca deve manter com Ele que Jesus podia exclamar num grito que ecoa pelos séculos dos séculos: “Pois eu vos digo que está aqui quem é maior do que o Templo.” O Templo significava e simbolizava o centro da adoração judaica, o ponto de encontro entre a divindade e a humanidade. Ao afirmar-se como maior do que o Templo, Jesus não apenas reivindica para si o papel que o Templo representa, mas declara sem rodeios que Ele supera tudo quanto é necessário para que o nosso encontro com Deus seja real e efectivo porque ele se realiza através de quem reúne em si o divino e o humano – o nosso sumo sacerdote, Jesus de Nazaré, o Cristo de Deus.

Curiosamente, neste capítulo Jesus afirma-se não apenas maior do que o templo, mas maior que o profeta Jonas e o rei Salomão (vv. 41 e 42).
2. Cura de um homem com a mão mirrada – vv. 9-21

O segundo episódio aborda uma situação de cura – Jesus restaura a mão mirrada de um homem. Não sabemos se era a mão direita ou esquerda, apenas que se tratava de uma mão e todos sabemos a falta que uma mão funcional nos faz. As mãos funcionais dão-nos liberdade de acção e permitem-nos realizar tarefas das mais simples às mais complicadas. As mãos são um dos meios de que nos servimos para nos ligarmos e nos identificarmos com o meio ambiente que nos envolve, tanto o próximo como o distante, tanto o terreno como o transcendente. A mão funcional agora mirrada fazia falta ao homem e diminuía-o na sua capacidade e integridade.

De novo, neste episódio, o sábado e a sua observância voltam a estar presentes. Pela narrativa, percebemos que Jesus enfrenta uma provocação por parte dos Seus opositores religiosos: “É lícito curar nos sábados?” perguntam eles. Jesus não se esconde, não se esquiva, não ignora a provocação e o desafio. O confronto não O intimida e desta vez torna-se mais contundente na denúncia da incongruência de um pensamento religioso que relega para plano secundário e inferior o ser humano, o agente que presta culto a Deus. A resposta de Jesus é demolidora e impiedosa por assim dizer. Se os seus acusadores socorrerão num sábado um animal ferido ou magoado, quiçá uma ovelha para o sacrifício, com muito mais razão aquele que é maior do que o templo tem autoridade suficiente não para ignorar o sábado mas para exercer misericórdia junto de quem, pela sua diminuição física, se apresenta diminuído e incompleto perante Deus a quem deve adorar na sua plenitude.

E é o que o pensamento religioso no seu pior está disposto a fazer – a considerar inferior a um animal o ser humano, criado à imagem e semelhança de Deus, reflexo da glória divina. Mas Jesus veio ao mundo para restaurar a pessoa caída, veio para refazer no ser humano a glória de Deus, veio para proclamar que a vontade de Deus é que o homem se apresente perante Ele na sua integridade total, aberto a toda a manifestação da glória e do poder divinos. Porque, como coroa da Sua criação (Salmo 8), Deus está interessado em ter comunhão com o único ser de toda a Sua criação capaz de um relacionamento íntimo e duradouro.

E perante este acto de misericórdia de quem é maior que o Templo, como reagem os supostos guardiães do Templo? Com planos para matar quem é o dador da vida e da saúde e que, com a Sua ressurreição, mostrou ser superior à própria morte.
3. Cura do endemoninhado cego e mudo – vv. 22-32

De novo um episódio de cura, desta vez de um homem com uma tríplice condição que o afectava tanto no aspecto físico como psicológico e espiritual. Qualquer das suas condições era dramática e impedia-o não só de comunicar devidamente com o seu semelhante por via da cegueira e da mudez, como lhe coarctava qualquer possibilidade de uma comunhão plena com o seu Deus. Ou seja, era um homem afectado na relação tanto no domínio do físico como do espiritual. E a primeira conclusão a que podemos chegar neste episódio é que o poder de Jesus de Nazaré era suficientemente abrangente e que nenhum domínio escapa à sua acção.

Mas de novo, a liderança religiosa judaica revela toda a sua inimizade para com Jesus e, num crescendo de oposição, atribui a cura de libertação à acção e intervenção das forças demoníacas. E é o que faz a cegueira provocada pelo endurecimento espiritual dos guardiães da revelação dada a Moisés provocado pelo apego a uma interpretação errónea dessa mesma revelação. Em última instância, a cegueira espiritual, travestida de ortodoxia pode levar a uma blasfémia de lesa-divindade. Na verdade, o que deveria levar ao regozijo e ao louvor a Deus pela libertação de um ser humano cativo é substituído pela blasfémia em nome de uma interpretação distorcida da revelação. Sim, porque os líderes religiosos tinham acesso à revelação divina dada através de Moisés.

E é neste episódio que surge uma das mais fortes e pungentes declarações de Jesus. Parafraseando: “Todo o pecado é passível de perdão, excepto aquele em que o Espírito Santo é blasfemado” (vv. 31 e 32). Verdade se diga que o texto não revela linearmente em que consiste essa blasfémia. Apenas ficamos a saber que há um pecado que não tem perdão e qual o objecto desse pecado – a blasfémia contra o Espírito Santo. Muitas têm sido as exegeses sobre esta declaração mas de nenhuma se pode dizer que seja a explicação final. Pelo texto, percebemos que ela surge no contexto de uma blasfémia de lesa-divindade, quando os corações religiosos mas empedernidos na sua cegueira atribuem aos demónios uma obra com o selo da divindade, em última análise identificando Deus com o Seu arqui-inimigo, Satanás. Que Deus nos ajude para, mesmo quando algo vá contra os nossos pressupostos espirituais e religiosos, estarmos abertos para saber discernir o que vem de Deus e o que não vem e termos a humildade suficiente para reconhecer o nosso erro de interpretação quando for esse o caso. Aí, só há um caminho – arrepender-nos da nossa falha, reconhecer que errámos (ou estávamos errados) e confessar a soberania de Deus. E Deus que é amor irá certamente cobrir-nos com o Seu perdão.
4. Polémicas – vv. 33-50

Nesta secção, encontramos três momentos de ensino, confronto e polémica que podemos considerar o corolário dos episódios anteriores em que a oposição dos líderes religiosos a Jesus assume forma de um modo bem vincado.

Num primeiro momento, Jesus separa as águas e estabelece uma divisão clara entre os que, como árvores boas, produzem bons frutos e os que, como árvores ruins produzem maus frutos. Estas palavras fazem ecoar o Salmo 1:3 quando o salmista canta que “o justo é como a árvore plantada junto a ribeiros de águas, a qual dá o seu fruto na estação própria”. Que a árvore que somos nós esteja plantada não num charco de águas fedorentas mas alimentada por aquele que de si mesmo disse ser a água da vida para que o nosso fruto tenha a unção do Espírito Santo.

Num segundo momento, quando Lhe pedem um sinal comprovativo da autoridade com que ministrava, Jesus limita-se a dar o sinal do profeta Jonas que esteve três dias e três noites no ventre do abismo. Numa alusão à Sua morte e ressurreição ao referir o profeta, Jesus não se coíbe de apontar a incredulidade dos seus inquiridores porque enquanto gentios se arrependeram em resposta à pregação de Jonas, os filhos do povo eleito recusam-se a reconhecer que a Sua autoridade vem de Deus, o que Lhe permite declarar ser mais do que Jonas. No seguimento, refere o episódio da rainha de Sabá, uma gentia, que se desloca da sua terra para apreciar em primeira mão a grandeza do rei Salomão. E, no entanto, perante os que Lhe pediam um sinal, estava alguém que é mais do que Salomão. É curioso notar que Jesus reivindica para si a sua superioridade em três domínios – como sacerdote (mais do que o templo) como profeta (mais que Jonas) e como rei (mais que Salomão). Esta é uma confissão de que Ele era o Messias prometido que agregava em si as três funções messiânicas que só eram reconhecidas após a respectiva unção.

Num terceiro momento, confronta a multidão com a necessidade de responder aos requisitos para se ser considerado membro da família do Cristo de Deus – todo aquele que fizer a vontade do Pai esse é irmão, irmã e mãe de Jesus, ou seja, todo aquele que observa e respeita a vontade de Deus está apto a ser considerado membro da família de Jesus. O Cristo de Deus está aberto a ter uma família a cujos membros não se envergonha de chamar irmãos. Que Deus nos abra o entendimento para, num gesto de entrega e submissão à Sua vontade, guardemos no fundo do nosso coração, a Sua Palavra que é guia e luz para o nosso caminho.

A BÍBLIA E A HISTÓRIA

Dr. Jorge Pinheiro
(foto de 1977 na comunicação que aqui reproduzimos)
1977 Congresso Évora Jorge Pinheiro
Em 1977, realizava-se em Évora um congresso juvenil das Assembleias de Deus, subordinado ao tema “A Bíblia Hoje”. Um dos subtemas era “A Bíblia e a História”. Fui convidado para o desenvolver e apresentar uma comunicação à magna assistência. E assim nasceu o texto que aqui publico. A década de 70 foi um tanto conturbada em termos de história das Assembleias de Deus, com várias tensões, umas latentes, outras larvares e ainda outras já declaradas. Quem viveu esses tempos, reconhecerá no texto uma referência quase subliminar aos problemas e choques que então dominavam as preocupações daquela que designo de “geração maldita” e que produziu nomes que, gostando ou não, deixaram marca na história das Assembleias de Deus. Mas não foi um texto circunstancial. Mutatis mutandis, a sua análise, com pequenas adaptações, permanece aceitável ainda nos dias de hoje.
A BÍBLIA E A HISTÓRIA
1. Introdução e considerações gerais
2. Definições
- Herança Grega
3. Paralelismos convergentes e divergentes
4. História profana
- Caducidade ou perenidade? (1)
5. História Sagrada
- Inserção bíblica na História (2)
6. Interpenetração de ambas as Histórias
- Convergência divergente ou divergência convergente
7. Conclusão
1. Introdução e considerações gerais
A Bíblia e a História não é um subtema. É um tema! É um subtema relativamente ao tema circunstancial deste Congresso – A Bíblia Hoje. Só neste aspecto se poderá considerar um subtema.
É tema e não subtema porque subtema infere em si um aspecto de subalternidade, sinónimo fácil de assunto de menos valor.
É tema não pela sua vastidão mas pela sua importância intrínseca e pelas suas implicações derivadas de um estar-no-mundo que se reflecte de modo muito premente ao nível do dia a dia da vivência humana.
A Bíblia e a História é um assunto realmente importante, para o qual chamo a vossa atenção e que merece, pela sua grandeza, que nos debrucemos sobre ele.
Bíblia e História. Sublinhemos o e e leia-se o que o tema diz: Bíblia e História e não Bíblia na História.
Copulativa (e) de ligação coordenada de duas grandezas do mesmo nível. Em alguns casos, o “e” poderá não desempenhar a sua função estrutural mas, no caso vertente, a sua aplicabilidade é incontestável. Estamos em face de duas realidades, de duas grandezas que, em si, e nem sempre por si, contêm as coordenadas do existir humano, que não só e apenas de uma práxis existencial.
Assim, vamos tentar analisar estas duas grandezas essencialmente numa visão coordenativa e não apenas – embora o possamos tentar – numa visão de inserção da Bíblia no processo histórico, como decorrente de uma emergência no plano histórico (como algum espírito mais apressado poderia pensar de uma leitura fugidia do tema).
Convém – antes de prosseguirmos – reforçar e salientar a noção da importância e universalidade da História. Ela está presente em cada momento do existir humano porque, em certo sentido, vivemos e movimentamo-nos na História, respiramos História. O que nada tem de estranho por sermos nós os fautores da História. Todos nós fazemos História – quando, por exemplo, nos reunimos nesta sala, estamos a fazer História. E todos fazemos análises históricas – quando, por exemplo, analisamos o Livro de Actos dos Apóstolos, para aplicarmos os princípios nele prescritos, estamos no fundo, a fazer uma análise histórica.
Quanto à Bíblia, queria salientar, nesta introdução que já vai longa, dois pontos que reputo de importantes :
a. - Falar da Bíblia é falar do Cristianismo, é falar Cristianismo. É falar do Cristianismo porque toda a Bíblia, desde Génesis 1:1 a Apocalipse 22:21, passando pelos Profetas e Salmos, fala do Cristianismo. É falar Cristianismo – e talvez estejamos todos ainda no b-a-ba desta língua sublime – porque a língua Cristianismo é universal, como universal é a Bíblia e porque essa é a língua que a Bíblia fala.
Assim, referiremos indistintamente a Bíblia e o Cristianismo, numa identificação de juízos de valor salvaguardando no entanto, e naturalmente, os momentos em que quer o termo Bíblia quer o termo Cristianismo e seus derivados tenham uma significação particular e singular.
b. A Bíblia – e é preciso que isto seja dito aqui e agora e que nos apercebamos desta verdade – formula uma série de Teorias: uma Teoria da Literatura, uma Teoria Social, uma Teoria do Direito, etc. (Por Teoria entendamos os princípios fundamentais de uma arte ou ciência).
É evidente que a Teoria mais importante e que, com toda a Justiça, mérito e necessidade, mais tem sido desenvolvida e estudada pelos Cristãos Pentecostais é – chamemo-la assim, aproveitando a terminologia – a Teoria da Salvação.
As outras Teorias – ainda que pouco ou nada estudadas (e quantas vezes positivamente ignoradas por nós) – não deixam de ser importantes e dignas de nos debruçarmos sobre elas.
Nesta perspectiva, a Bíblia possui também uma Teoria da História, isto é, ela debruça-se sobre a História e emite a palavra final (porque a Bíblia é final) sobre o sentido da História e é importante e urgente que saibamos e conheçamos o seu conteúdo.
Importante porque – como tudo quanto é Bíblia – é uma dádiva de Deus aos homens e tudo quanto Deus nos deu (e nos dá) é importante.
Urgente porque necessitamos, neste tempo de crise espiritual e de viragem, de ter uma Teoria bíblica (e não apenas humana, ainda que de origem eclesiástico-cristã) que nos forneça armas para fazermos frente às Teorias (da História ou não) diabólicas e humanas que buscam as brechas da nossa ignorância e incúria.
2. Definições
- Herança Grega
Assim, tentemos cotejar a Bíblia e a História e dessa análise extrair o melhor para nosso crescimento e edificação.
Mas antes de mais, precisamos de definir os termos com que vamos lidar e que estarão presentes ao longo desta exposição.
Definir significa marcar um fim, indicar um limite. Com efeito, é necessário demarcar um limite ao campo de cada uma das palavras para que elas valham aquilo que são e não aquilo que as pessoas possam entender ou querer que sejam.
Ambos os termos são nossa herança grega e qualquer dicionário daria a seguinte definição :
História – do grego historia – evolução da Humanidade, narração de factos de um ou mais países.
Bíblia – do grego biblion (o livro) – colecção de livros sagrados do Velho Testamento e do Novo Testamento.
A História é uma ciência com método e objecto específicos. Não vamos abordar o problema da Metodologia da História (por nos roubar muito tempo e nos afastar do plano deste trabalho) mas diremos de passagem que, devido às características do facto histórico, que é singular e inobservável pois não se repete nem pode ser observado directamente pelo historiador por já pertencer ao passado, a metodologia histórica é distinta da metodologia das chamadas ciências exactas como, por exemplo, a Matemática. Daí que a História tenha de lançar mão de diversas ciências auxiliares para se poder estudar e compreender o facto histórico na sua complexidade causal. Note-se que muitas das ciências auxiliares da História são as mesmas da Bíblia, como a Hermenêutica, por exemplo.
Mas a História – cujo objecto, no fundo, é o Homem – não é a simples formulação de factos nem a observação de fenómenos. Ela não se detém na enumeração de factos. Ela analisa-os e interpreta-os e sobre ele emite juízos, procurando destrinçar não só as motivações (as causas que estão por trás deles) mas – digamos assim – as leis que os regem. Desse estudo do passado, podemos compreender melhor o estado do presente e avaliar a extensão de um fenómeno específico e determinar as linhas dominantes que o motivam.
A tónica que se coloca sobre a causalidade factual varia de época para época e de escola para escola. É assim que, enquanto para os homens da Idade Média, os factos importantes eram os religiosos, para os do séc. XX, são essencialmente os económicos. Mas não nos esqueçamos que a História não pode nem deve ter uma visão parcelar dos factos (devido à sua causalidade e complexidade).
Quanto à Bíblia, todos sabemos que ela – num paralelismo tremendo com a História – caracteriza-se igualmente pela sua complexidade (que não é sinónimo nem de complicação nem de complexificação), pela sua universalidade, pela sua humanidade, na sua aplicabilidade e pela sua transcendência, na sua origem divina.
Ela não se limita a enumerar ou a enunciar os factos mas a abrir caminho a uma interpretação dos mesmos, levantando idênticas perguntas que a História e a revelar, na sua simplicidade de linguagem, as respostas ansiosamente procuradas e indagadas. Dessas perguntas, tentaremos responder a uma que, pela sua premência, reputo de importante – Porquê? Porquê estudar História, porquê estudar a Bíblia?
3. Paralelismos convergentes e divergentes
Porque tanto uma como a outra (a Bíblia e a História) respondem à maior inquietação humana desde sempre, seja qual for a filosofia que partilhemos – qual a finalidade do Homem, do existir humano? Que fizemos, de onde viemos, para onde vamos? E aqui, as atitudes de as encarar multiplicam-se, num paralelismo magnífico.
Podemos detectar, pelo menos, três atitudes face à Bíblia e à História: informativa, formativa e pragmática.
Atitude informativa – tanto uma como a outra dar-nos-iam informações mais ou menos úteis que nos elucidassem sobre pontos mais ou menos obscuros.
Atitude formativa – vamos extrair ensinamentos úteis para a nossa formação cultural ou espiritual.
Atitude pragmática – o seu conteúdo tem peso e devemos pôr em prática esse conhecimento. O pragmatismo consiste na doutrina que defende a utilidade prática do conhecimento, identificando o verdadeiro com o útil.
Haverá uma quarta atitude, fácil e despreocupada – a indiferença – mas de tão negativa que é, passemo-la de lado.
Mas os paralelismos não se quedam pela atitude nossa perante a Bíblia e a História. Elas manifestam-se em outros campos.
Ambas não se definem pela negativa pois nem a Bíblia nem a História são a ausência de alguma coisa. Elas são alguma coisa de positivo, real e concreto. Esta é uma tentação sofrida por muitos Cristãos (e a que muitos de nós no nosso tempo têm cedido) – uma definição do Cristianismo pela negativa, traduzida pela elaboração de listas legistas ou legalistas de proibições. Tal definição, além de não fazer justiça quer à História quer à Bíblia (ou Cristianismo) é um insulto à natureza de ambas, especialmente do Cristianismo. Grosso modo, podemos dizer que a Bíblia é a expressão divina através do humano e a História a expressão humana através do humano ou, se quisermos ser mais precisos, a Bíblia vai da transcendência à transcendência passando pela imanência, enquanto a História vai da imanência à imanência passando pela transcendência.
Isto aponta-nos um terceiro paralelismo: ambas têm o mesmo interesse comum – o Homem. Mas no momento em que se tocam – oh desdita de Tântalo – aí começam as divergências. E podemos sintetizar esta verdade em poucas palavras: enquanto a História é o estudo do Homem pelo Homem, a Bíblia é o estudo do Homem por Deus.
E aqui está o drama – a Bíblia é singular, apesar da sua pluralidade de escritores, enquanto a História é plural, apesar da singularidade do seu objecto – com todas as implicações daí decorrentes.
Mas na divergência, podemos detectar, no horizonte, um ponto convergente: o futuro e a universalidade.
António Sérgio disse: “É preciso falarmos da História com um olhar no futuro”. E não há contradição porque embora a História se debruce sobre o passado, ela projecta-se no futuro.
Com a Bíblia, passa-se o mesmo. Embora aponte factos do passado, ela deve ser encarada também com um olhar no futuro. O Cristianismo é como o jovem – não tem passado – só tem futuro! E no momento em que, como Cristãos, olharmos para o passado – e não nos referimos ao nosso passado mundano de não salvos – numa atitude de seráfica contemplação das glórias de antanho, estamos plácida e voluntariamente a acomodar-nos na sepultura bonita e magnífica de festas de jubileu mas que não passa de sepultura. A Bíblia não se detém no passado. Ela aponta o futuro que lhe constitui o limite, o horizonte. “Esperamos novos céus e nova terra”, como dizem as páginas sagradas e, poderíamos acrescentar: “num mundo e tempo novos”.
Mas cometeríamos um pecado de omissão se nos detivéssemos apenas nesta parcela do tempo – é facto que ambas as disciplinas apontam o futuro. Mas esse apontar – e isto é tremendamente importante – é sempre em função do presente. Porquê? Pela simples razão de o Homem ser presente. “As coisas velhas já passaram, eis que tudo se fez novo (presente)”. Mas não se pense que a Bíblia defende a imobilização da História, como diria Barth. Não! A História prossegue e prosseguirá mesmo nesse futuro celestial que será o presente eterno. Ali também se fará História. Será a única ciência da Terra que se cultivará no Céu.
Um último paralelismo – a Bíblia – e perdoem-me os puristas e os extremistas – é, apesar da sua transcendência, um fenómeno histórico. E graças a Deus que assim é. Isso significa que Deus intervém no mundo dos homens, revela-Se a Si próprio, fala a língua dos homens. Mas ela não é meramente um fenómeno histórico. Dada a sua natureza de transcendência imanente, ela é supra-histórica e até trans-histórica. Está na História mas não é da História. Supera a História, não na finalidade e objecto comuns, mas na essência e destino.
4. História profana
- Caducidade ou perenidade? (1)
A História fala de civilizações. Civilizações de homens. Mas poderíamos também dizer civilizações que são homens. E nesta visão, concluiríamos que todo o drama humano se reflecte no devir da existência que se constitui em drama histórico. Mas haverá realmente um drama da História? O drama da História decorre do facto de o seu interveniente e fautor ser o Homem, com toda a sua fatalidade e contingência, aspectos bem desenvolvidos por Albert Camus, nomeadamente nas suas obras “A Peste” e “O Estrangeiro”. E levanta-se obviamente a questão: como se manifesta esse drama histórico? Há um dito que entrou já na cultura popular que nos fornece uma pista objectiva – a História não se repete. Efectivamente, a História não se repete, devido à própria natureza do fenómeno histórico que, à dissemelhança do fenómeno físico ou químico, só é observável uma única vez – no momento em que ocorre. A mesma água não passa duas vezes sob uma mesma ponte. Mas, sem alterar a essência e a natureza do devir histórico, podemos dizer que a História afinal se repete: a primeira vez como drama e a segunda como tragédia.
E aqui estará o cerne desta marcha evolutiva da Humanidade – na sua dramaticidade, vive-se para se tornar a viver e esta marca da condição humana reflecte-se na obra de que o Homem é autor e espectador – as civilizações.
O Homem cria civilizações. Mas civilizações que levam a sua marca. Marca de caducidade emergente da contingência humana, marca de perenidade porque o Homem tem a eternidade da alma espelhada no coração. E é nesta tensão que se movem as civilizações. E é na percepção desta tensão que a filosofia oriental encara como karma que essa mesma filosofia pugna pela libertação do Homem do seu devir existencial.
Neste quadro, não nos surpreenderá a trajectória em espiral da obra civilizacional do Homem. Mas pergunta-se: essa trajectória não tem fim? Existirá realmente um karma inelutável? Estas são perguntas que vamos deixar em suspenso para daqui a pouco as abordarmos de novo em tentativa de resposta.
Dizia que nos não surpreenderá a trajectória em espiral das civilizações. Como fruto do Homem, vamos encontrar nelas as características inerentes ao Homem. Neste sentido – e apenas neste – a concepção helénica do movimento circular do devir histórico é uma análise definitiva. Esta percepção, de resto, está patente na cultura popular – a Roda da Fortuna – e no pensamento salomónico – nada há de novo à face da Terra.
Assim, nas civilizações, podemos detectar a sua génese, desenvolvimento, colapso e desintegração, num ciclo aparentemente infindável, segundo a análise profunda e exaustiva de Toynbee em que nos basearemos e de quem, neste passo, seguiremos o raciocínio.
Podemos dizer que em todas as civilizações encontramos o mesmo mecanismo de formação, crescimento e decadência e, pela sua análise, acharemos a resposta à pergunta: “serão as civilizações caducas ou perenes?” e acharemos pistas que nos ajudarão no nosso viver de Cristãos.
O Homem cria civilizações essencialmente porque soube responder com êxito a um incitamento exterior, realizando um esforço criador até então sem precedentes. E quando, face a um incitamento, o Homem não tem resposta adequada, prestes está a civilização do seu fim.
Numa sociedade, há assim uma minoria criadora, motor impulsionador que, em contacto com sociedades primitivas, atrai a sua capacidade de mimesis, isto é, a sua capacidade de imitação. Esta mimesis, enquanto se registar a existência da minoria criadora, é provocada pelo encanto que esta exerce sobre aquela. E é na existência desta criatividade (cuja base é a resposta positiva ao incitamento) que consiste o segredo do crescimento e permanência das civilizações. Porque ela atrai, pelo encanto, a mimesis do primitivo que assim se integra no campo da civilização. Enquanto esta situação perdurar, a Sociedade nem se divide nem é atacada.
Quando há incapacidade de resposta, a minoria criadora tende a transformar-se em minoria dominante que tenta reter pela força uma posição que já não merece há muito. A minoria dominante perde o encanto de minoria criadora o que leva a que os primitivos sejam repelidos e que, de discípulos, se convertam numa poderosa força de pressão externa – aquilo que Toynbee classifica de proletariado externo.
No campo interno, o processo é semelhante – a maioria mimética passa também de discípulo a proletariado interno, numa atitude de divórcio da minoria dominante e em rebelião aberta contra ela.
Por proletariado entenda-se não uma classificação na base da pobreza, de riqueza ou de origem de nascimento ou de trabalho mas na consciência de se saber que se está na sociedade mas que não se é da sociedade.
A razão deste colapso da civilização deve-se ao fracasso da faculdade criadora da minoria criadora, com a consequente perda de unidade social.
Que resulta de todo este jogo de forças? Ficamos em presença de três entidades que, uma vez em luta, conduzem à desintegração da civilização. Das cinzas desta desintegração nascerá, qual Fénix renascida, consoante o condicionalismo histórico, uma civilização filha da defunta.
Cada uma destas três entidades, no seu processo evolutivo de luta, vai criar uma instituição característica:
-  a minoria dominante gera um Estado Universal, o penúltimo estágio da desintegração.
-  o proletariado interno, que se separa da minoria dominante, gera uma Igreja Universal.
-  o proletariado externo gera bandos guerreiros bárbaros que, de ordinário, acabam por invadir o espaço geográfico da civilização em decadência.
Tomemos o caso da civilização greco-romana, para especificarmos: a minoria criadora perde o poder de resposta e, uma vez minoria dominante, cria o Estado Universal – o Império. A unidade social está quebrada e manifesta-se o proletariado interno que arrasta consigo uma Igreja Universal – o Cristianismo, enquanto nas fronteiras, pulula todo um proletariado externo que irromperá violentamente no ciclo conhecido por Invasões Bárbaras.
E há aqui toda uma lição a tirar: os Bárbaros irromperam porque quando deixa de avançar a fronteira entre uma sociedade civilizada e uma sociedade primitiva, a balança inclina-se com o correr do tempo a favor da sociedade primitiva. Como Cristãos, não podemos deixar que a fronteira entre o Cristianismo e o mundo por evangelizar estacione. Ela tem de se estender até que não haja mais fronteira. E teremos encontrado a solução para todas as crises que possam assolar o Cristianismo e muito especialmente para a crise actual que todos sentimos latente. Há que manter a unidade social (em termos de História) através da resposta sempre positiva de todo o corpo social a um incitamento externo e manter vivo este impulso de civilizar (leia-se evangelizar) os primitivos (leia-se os perdidos) através do cultivo daquilo que é essencial no Cristianismo e não daquilo que é conjuntural, para que eles possam ser atraídos pelo nosso encanto, a fim de lhes estimularmos a capacidade mimética.
Lembremo-nos que todos os grandes princípios registados na História para o avanço da Humanidade encontram-se na Bíblia: a defesa da mulher, os princípios do liberalismo da Revolução Francesa (liberdade, igualdade, fraternidade), os princípios do Socialismo – todos os homens nascem livres e iguais, etc. A Bíblia contém, em todas as épocas, a resposta para os problemas individuais e colectivos do Homem – problemas humanos e sociais. A questão está em o Homem se dispor a encontrá-la. Ora, uma sociedade cristã pode e deve manter padrões e princípios, isto é, pode manter a sua minoria criadora que, recorde-se, não é uma minoria dominante e que atrai pelo encanto. A resposta a um incitamento não consiste em levantar barreiras – o progresso (e a Bíblia aponta para o progresso) não se ergue levantando barreiras mas destruindo-as. A solução, dizíamos, a resposta ao incitamento não consiste em levantar barreiras, consubstanciadas em atitudes e normas de “não faças, não digas, não aconteças” mas desenvolvendo os princípios em si, os princípios que informam a sociedade cristã. Princípios esses que não são circunstanciais mas perenes. Mas atenção para não nos determos nas conquistas alcançadas (há que evitar a bizantinização e o sebastianismo espirituais). Assim estará resolvido o problema da actualidade, transformado erradamente em problema número um da sociedade pentecostal – o problema da ética, da TV, etc. A solução para tal problema que historicamente é um incitamento, consiste em ir à raiz do mal, buscando uma resposta positiva ao incitamento. Mas onde está essa raiz? Será, por exemplo, na TV em si ou nos princípios? Que importa destruir a TV se os princípios não estão cultivados ou se nem sequer brotaram ainda? É lógico que são os princípios que devem ser cultivados porque eles têm em si a força e a substância suficientes para nos fornecerem uma resposta positiva ao incitamento que enfrentamos. Qualquer solução que não passe pelo cultivo dos princípios que nos informam são uma resposta falhada ao incitamento. E quando isto acontece, perto está a minoria criadora de se transformar em minoria dominante com a criação de um Estado Universal que o mesmo é dizer que tal sociedade está em vias de desintegração. E a História não perdoa.
Mas atenção que a História ensina-nos uma lição dramática: em geral, quando um grupo responde triunfantemente a um incitamento, raras vezes responde com êxito ao segundo. Temos o caso dos Judeus que responderam positivamente aos incitamentos do Velho Testamento mas foram vencidos pelos do Novo Testamento, culminando na rejeição do Messias.
Que nos não iludamos, pois, com as respostas aos incitamentos nem receemos enfrentá-los. A atitude cristã decorrente da Bíblia é positiva e não negativa, é positiva, não alucinogénea.
5. História Sagrada
- Inserção bíblica na História (2)
Este problema leva-nos à questão de sabermos qual o lugar do Cristianismo no mundo, qual a visão histórica da Bíblia.
Em primeiro lugar, relembremos os 3 modos como é encarado o significado da História: linear, cíclico e caótico.
O linear supõe que os factos se sucedem numa determinada direcção.
O cíclico afirma que a História se repete.
O caótico nega qualquer direcção aos factos históricos.
À partida, a Bíblia rejeita a interpretação caótica da História, por ela ser contrária à sua essência e mensagem.
Com efeito, a Bíblia aponta para um Deus criador pessoal e interessado na Sua criação (e tenhamos presente que o Deus da Criação é o mesmo Deus da Salvação). Do ponto de vista histórico, isso implica que a Bíblia relata (e defende) a intervenção de Deus na História. Não é um recurso de solução para explicar miticamente o inexplicável mas a consciência de que não se pode separar o Criador da Sua criação e vice-versa. Daqui, podemos inferir que o princípio histórico imanente à Bíblia revela-se por um não à dialéctica em que, à luta dos contrários, opõe a acção divina que altera o curso circunstancial criando um processo de acção e interacção decorrente dessa mesma intervenção divina.
Nesta atitude, há algo de novo em relação à mentalidade helénica que, como vimos já, concebe o tempo (e por inferência a História) como um movimento circular. Para a Bíblia, o movimento não é cíclico ou circular mas linear. Ao intervir na História da Humanidade, Deus não Se repete – a Criação deu-se uma vez por todas, a chamada de Abraão não tem sucessor factual, a vinda de Cristo é um facto definitivo. A História, além de ter um significado, uma finalidade, aponta e segue um movimento linear. Hoje, poderemos não ter dificuldade em entender esta realidade mas a verdade é que esta posição cristã foi tremenda novidade para a mentalidade helénica.
No entanto, a Bíblia verifica e afirma que a História humana se movimenta por ciclos – tenha-se em mente a profecia de Daniel (Daniel 7) mas nessa mesma profecia, não nos esqueçamos, afirma-se o seu princípio linear – os reinos humanos cíclicos cederão o passo a um reino eterno (Daniel 7:27).
E porquê este choque com a mentalidade helénica? Porque os Gregos admitiam apenas dois tipos de realidades :
- as divinas – sem princípio e sem fim;
- as corruptíveis – com princípio e com fim.
Mas o Cristianismo anuncia uma terceira realidade
- as coisas que começam e não têm fim.
Logo, na visão cristã, o perfeito não é aquilo que sempre existiu como pretendiam os Gregos.
Há assim princípios estabelecidos pela intervenção divina que, pelo seu carácter absoluto, permanecem para sempre adquiridos.
No confronto, porém, com a mentalidade hebraica, o Cristianismo aponta uma segunda verdade ou princípio histórico – se as instituições hebraicas são de origem divina – e são-no – então são boas e perfeitas. Mas a verdade é que, com a introdução do Cristianismo na História, elas são abolidas. Haverá então contradição? Não! E na resposta, encontraremos este segundo princípio de que falamos: é que essas instituições são provisórias. Elas têm um kairos, isto é, um valor temporal que já passou. Assim, com a entrada de Cristo, valor supremo de todas as intervenções divinas, o Judaísmo é declarado anacrónico. E na extensão desta verdade, podemos adiantar o pensamento de que também anacrónico é querer manter qualquer realidade cujo kairos já passou ou está ultrapassado. A mantê-la, estaremos a cometer um pecado de Judaísmo, isto é, um pecado anacrónico.
Paulo elabora uma síntese magnífica desta realidade ao declarar que a Lei serviu de aio para nos conduzir a Cristo.
Mas a Bíblia aponta um terceiro princípio – Cristo, como dissemos atrás, é o acontecimento definitivo da História. Com Ele, atingimos o fim da revelação divina da intervenção de Deus na História. A visão cristã da História é, pois, escatológica pois que o Cristianismo é em si e por si escatológico.
Cristo encerra o ciclo da Revelação mas atenção, repitamo-lo, não encerra nem detém a História. E ao encerrar o ciclo, achamos a resposta para a pergunta da inquietação filosófica oriental quanto ao karma. Há realmente um karma na História mas ele não é inelutável. Com Cristo, chegou o limite desse karma porque n’Ele, com Ele e por Ele, estamos a viver um Reino que não tem fim. Nada mais aguardamos senão o raiar do Oitavo Dia.
Deste modo, segundo a visão bíblica, para podermos situar verdadeiramente a História, ela tem de se centrar em Cristo. E a verdade é que a História não ficou insensível a essa verdade e testemunha-a em si mesma, dividindo o tempo dos homens em antes e depois de Cristo.
Mas viver num tempo escatológico não é sinónimo de vivermos na eternidade. Porquê? Porque Cristo-facto-histórico não é o mesmo que Cristo-fenómeno-histórico. E nisto, a História profana falha porque Cristo não é um facto mas um fenómeno. Devido à sua intemporalidade temporal – Cristo – o eterno Eu Sou – vivemos um tempo presente, qualquer que seja a época em que um Cristão tenha vivido ou viva. Porquê? Porque no tempo dito cristão, vivemos não um facto mas um fenómeno e um fenómeno tal, cuja complexidade se revela e se situa entre duas vindas ou Parousias – o Natal e o Segundo Advento de Cristo.
6. Interpenetração de ambas as Histórias
- Convergência divergente ou divergência convergente
Mas seríamos incompletos se nos não interrogássemos sobre qual o lugar que o Cristianismo ocupa no devir histórico. E esta é uma questão que levanta tremendas e poderosas perguntas. Teremos, para nos guiar, que recorrer ao texto bíblico. E bastar-nos-iam talvez duas ou três palavras que encerram em si toda a grandeza do mistério da História: “Não são do mundo” (João 17:14-16) cujo contexto podemos assim sintetizar: “Estão no mundo mas não são do mundo”. E esta frase lapidar encerra magnificamente em si o drama histórico e revela toda uma Teoria da História.
Estaremos, neste momento, talvez a recordar-nos da definição que Toynbee dá de proletariado: estão em mas não são de e talvez estejamos a identificar o Cristianismo, a Igreja, com o tal proletariado toynbeeano.
Mas seremos, realmente, esse proletariado? Somos e não somos. Somos esse proletariado no mas não somos o proletariado do mundo.
Não somos porque, para o sermos, teríamos de trazer em nós o kairos do mundo e não teríamos assim conseguido a libertação desse karma considerado inelutável. Não somos porque o kairos do mundo, da Humanidade, passa. Este mundo é transitório (“o mundo passa e a sua concupiscência mas a minha Palavra permanece para sempre” e “Sic transit gloria mundi”) mas o nosso kairos permanece para sempre porque com Cristo e em Cristo abolimos o karma histórico.
Mas somos esse proletariado no mundo porque estamos nele. Mas estamos nele participando de uma realidade superior – como cidadãos de um Reino que não tem fim. Um Reino cujo kairos não passa, um Reino que nunca passará pela desintegração.
Somos esse proletariado porque, em termos históricos e sociológicos, estamos aqui para desintegrar as sociedades humanas pois na visão cristã há apenas dois tipos de sociedades: a humana e a divina. A nossa é divina e ela será estabelecida, inserindo-se no devir da Humanidade mas sem se deixar manchar pelas gotas desse fatalismo histórico.
Há, assim, para já, uma certeza: o Cristianismo não é caduco. Mas esta seria uma análise fugidia se lhe não víssemos as implicações e nos não detivéssemos em profundidade.
Teríamos então de voltar à transcendência imanente da Bíblia. E aqui, há que distinguir entre a transcendência da Bíblia (a sua essência) e a historicidade ou imanência de que se reveste – isto é, a sua existência. Este carácter bivalente da Bíblia reflecte-se na sua revelação máxima – o Cristianismo.
Uma cultura bíblica, os aspectos culturais da Igreja em determinado contexto social não se devem confundir com o cerne da doutrina. Por outras palavras, não se deve confundir a essência com a existência. Aquela é una e imutável porque é divina, enquanto esta varia porque está no mundo, corporizada por todos quantos a aceitam.
E porque será isto assim?
Porque embora não sendo do mundo, o Cristianismo está no mundo. E está no mundo, encarnando-se em diversos espaços civilizacionais, em diversas épocas dessas mesmas civilizações. Há assim toda uma complexidade cultural que, da nossa parte, seria perigoso confundir com a essência do Cristianismo.
Há, então, nesta tensão em que se move o Cristianismo, uma interacção da história profana e da história sagrada ou, utilizando a terminologia do esboço deste estudo, uma interpenetração de ambas as histórias.
Podemos afirmar com Jean Danielou de quem, de resto, seguimos o pensamento nesta secção do nosso estudo, que a história do Cristianismo é influenciada na sua periferia pelo desenvolvimento das civilizações. Que significa isto? Significa que a história do Cristianismo, na medida em que este se insere na história da Humanidade, apresenta-se como a história de diversas civilizações ou Cristandades que arrastam consigo as características das civilizações que encarnam, possuindo então um kairos caduco. E não há aqui contradição nem erro – o erro estará em identificarmos o Cristianismo com alguma dessas Cristandades. Há assim um Cristianismo bizantino, palestino, bem como medieval e até burguês, que não deixam por isso de ser Cristianismo.
E há que aceitar cada uma dessas manifestações porque são o fruto da inserção do Cristianismo nos quadros mentais das civilizações que representam.
E, citando de novo Danielou, poderíamos dizer que existe sempre a tentação de reduzir a unidade – uniformidade sob forma de um modo comum de expressão. Ora, a verdadeira unidade é aquela que, dentro da unidade da fé, se exprime através da diversidade de mentalidade das civilizações.
Por outras palavras e de um modo muito simples, diremos que não se pode obrigar um Chinês a pensar e muito menos a agir como um Português ou, se quisermos estar mais perto do contexto civilizacional que nos cerca, não podemos obrigar um Português a agir como um Americano ou vice-versa.
7. Conclusão
Mas se não podemos obrigar um elemento de uma determinada cultura a guiar-se pelas categorias mentais de outra que lhe é distinta e estranha, podemos, no entanto, esperar que o vínculo de união que liga os elementos das culturas mais díspares se manifeste em toda a sua grandeza, realizando a oração de Jesus: “Que todos sejam um, como nos somos um”.
Concluiremos por esta nota de confiança: o futuro pertence-nos! Mas bom seria que não esperássemos pelo futuro para guardar nos nossos corações e nas nossas vidas as lições que a História nos fornece. Daí que não é descabida a sugestão e o anseio de que todo o bom obreiro cristão só teria a ganhar se conhecesse a História. Pela Bíblia, conheceria a mente de Deus; pela História, a mente do Homem e no futuro que é o seu presente, saberia colher o fruto que lhe granjearia o prémio do meigo Nazareno: “Bem está, servo bom e fiel – entra no gozo do teu Senhor!” (Mateus 25:23).
(1) vd. A Study of History, por Arnold Toynbee.
(2) vd. Sobre o Mistério da História, por Jean Danielou.
XIII Congresso Juvenil Pentecostal
Évora, 1977

Anda na Minha Presença

Anda na Minha Presença
Jorge Pinheiro 2Dr. Jorge Pinheiro
(1) Sendo, pois, ABRÃO da idade de noventa anos, apareceu o Senhor a ABRÃO e disse-lhe: “Eu sou o Deus Todo-poderoso; anda em minha presença e sê perfeito; (2) e porei o meu concerto entre mim e ti e te multiplicarei grandissimamente.”
(3) Então caiu ABRÃO sobre o seu rosto e falou Deus com ele, dizendo:
(4) “Quanto a mim, eis o meu concerto contigo é e serás o pai de uma multidão de nações; (5) e não se chamará mais o teu nome ABRÃO, mas ABRAÃO será o teu nome; porque por pai da multidão de nações te tenho posto; (6) e te farei frutificar grandissimamente e de ti farei nações e reis sairão de ti; (7) e estabelecerei o meu concerto entre mim e ti e a tua semente depois de ti em tuas gerações, por concerto perpétuo, para te ser a ti por Deus e à tua semente depois de ti.
(Génesis 17:1-7)
Em Génesis 12, passamos a ter conhecimento da existência de Abraão. Até então era um ilustre desconhecido. Mas a partir do momento em que responde ao chamamento de Deus, não só a sua história se torna conhecida, como toda a sua existência passa a ter significado (e que significado!) não apenas para ele, mas principalmente para toda a humanidade, uma vez que podemos dizer que hoje, todo o mundo gira em torno da forma como cada um recebe a herança de Abraão.
Muito resumidamente, sabemos que Abraão vira as costas a um mundo idólatra, deixa o seu espaço de segurança e protecção e embarca numa autêntica aventura em que a fé na promessa de Deus se torna a sua grande motivação. Embora avançados em idade, ele e a mulher geram um filho, o filho da promessa, já depois de, primeiro, Abrão se ter antecipado aos planos de Deus, gerando Ismael, filho da escrava e, segundo, depois de Deus lhe ter alterado o nome para Abraão, pelo qual passa a ser conhecido e referenciado desde então. Pelo meio uma série de episódios, alguns pouco edificantes, mas que de modo algum modificam a promessa e o pacto iniciais de Deus para com ele e a sua descendência. E é neste período de tempo que, além de reforçar o concerto estabelecido desde o início, Deus lhe deixa uma ordem explícita: “Anda na minha presença e sê perfeito”.
O texto que acabámos de ler, ocorre duas dúzias de anos depois do primeiro encontro do patriarca com a promessa divina e este torna-se um momento-chave da realização do pacto firmado por Deus.
Antes de avançarmos na análise e importância do texto lido, salientemos alguns aspectos do percurso de Abraão.
1. O primeiro passo que dá é um passo de fé, de confiança irrestrita e ilimitada na veracidade e fidelidade da palavra de autoridade divina que acabara de receber, razão pela qual passa a ser conhecido como o pai da fé. De concreto tem apenas a promessa divina de que dele sairia uma grande nação, que ele seria uma bênção para o mundo, que nele todo a humanidade seria abençoada e que iria contemplar a terra que Deus lhe mostraria. Obediente, sai do conforto da sua terra e torna-se peregrino pelas terras de Canaã e do Egipto.
2. Sabemos que edificou quatro altares. O altar fala de obediência, entrega e consagração. Nele, o crente encontra-se face a face com o Altíssimo a cuja vontade se sujeita e d’Ele recebe protecção, graça e bênção. Esses quatro altares foram:
a) em Siquém (Génesis 12:7) que nos fala da sua obediência à revelação recebida. Na revelação, passamos a saber quem Deus é e o que Ele deseja de nós. Mesmo com um conhecimento parcial de quem Deus é, Abraão não se furta a cultuar o Senhor;
b) em Betel, (Génesis 12:8) que nos fala de separação. Abraão deixa para trás Ai, que significa “monte de ruínas” e edifica um altar em Betel que significa “casa de Deus”. O que para trás Abraão deixou passa a ser um monte de ruínas porque à sua frente abre-se a “casa de Deus”, onde ele pode encontrar comunhão com Deus e tudo de que necessita para viver em vitória neste mundo;
c) em Hebrom (Génesis 13:18), que nos fala de comunhão. Hebrom, que significa exactamente comunhão, situava-se na zona de Manre que significa plenitude. A comunhão e a plenitude andam de mãos dadas. E é curioso notar que este altar foi erigido depois de Abraão regressar do Egipto por onde havia decidido peregrinar, numa atitude que nos parece contrariar a ordem de Deus;
d) no monte Moriá (Génesis 22:1-14) que nos fala de entrega e consagração totais, sinónimos de adoração plena. Em Moriá, Abraão aprende que Deus não se satisfaz com sacrifícios humanos mas exige de cada um de nós uma entrega total, mesmo daquilo que mais prezamos e apreciamos, com a certeza e a confiança de que em retorno Deus nos dá muito mais do que pensamos ou sonhamos e que Ele zela pelas promessas que nos garantiu.
É curioso notar que o tempo que separa entre si os três primeiros altares é muito curto, os quais se seguiram quase de imediato à saída de Abraão da sua terra natal. O quarto altar é erigido cerca de quarenta a cinquenta anos após a chamada de Abraão. Isso indica-nos que em Moriá a fé do patriarca e o seu conhecimento e comunhão de Deus eram muito mais consistentes, pelo que podemos arriscar que em Moriá Abraão tinha uma fé já madura que não ia atrás de qualquer vento de doutrina.
3. Até ao momento em que Abraão recebe a ordem de andar na presença de Deus e de ser perfeito, Deus manifesta-se-lhe por três vezes: em Siquém (Génesis 12:7), de novo em Canaã (Génesis 13:15-17) e após o encontro com Melquisedeque (Génesis 15:1-21). Em todas elas, Deus reforça a promessa de lhe dar a terra por onde ele peregrinasse. Curiosamente, não temos registo de Deus lhe ter aparecido enquanto peregrinou no Egipto. Depois do capítulo 17, Deus surge outras três vezes a Abraão: para anunciar a gravidez de Sara (Génesis 18:13); para anunciar a destruição de Sodoma e Gomorra (Génesis 18:17-33), para anunciar o sacrifício de Isaque (Génesis 22:1-2). O que nos indica que em cada fase da vida de Abraão, a presença e a promessa de Deus estiveram presentes. Curiosamente, nas vezes em que até ao capítulo 17 Abraão é visitado por Deus, Abraão vê reforçada a promessa de que a sua descendência seria numerosa. O Capítulo 17 surge então como corolário final e marcante do concerto que Deus estabelece com Abraão. Como se Abraão estivesse por fim já suficientemente maduro para compreender em toda a extensão tudo quanto Deus queria fazer através dele. Como se este fosse o momento de viragem definitiva.
4. Neste novo encontro, para além do reforço, como já vimos, da fixação em definitivo do concerto estabelecido por Deus com Abraão, há dois aspectos de suma importância.
a) Em primeiro lugar a ordem expressa de Deus: “Anda na minha presença e sê perfeito”. E para que não houvesse dúvidas de que esta revelação não provinha dos desejos humanos de Abraão, Deus identifica-se sem deixar margem para dúvidas: “Eu sou o Deus Todo-Poderoso”. Quando Deus nos fala (e Ele fala) deixa-nos a marca da Sua identificação. E Deus identifica-se não como uma entidade etérea, como uma visão mística, mas como o Deus Todo-poderoso. Essa é a Sua marca – n’Ele está centrado todo o poder, não apenas o poder de que necessitamos mas também aquele de que não necessitamos; não apenas o poder pelo poder, mas a fonte de todo o poder; não um poder limitado e sujeito às contingências de qualquer universo, seja ele físico ou não, mas o poder supremo que é atributo de Deus que, por isso, pode ser designado como o Omnipotente. Deixaremos para mais tarde a análise da importância e do lugar que ocupa no plano de Deus a ordem dada a Abraão de andar na Sua presença e de ser perfeito.
b) Em segundo lugar, Deus muda o nome do patriarca de Abrão (pai exaltado ou elevado) para Abrahão (pai de uma multidão) e o nome da esposa deste de Sarai (que, segundo parece, significa contenciosa) para Sarah (princesa). Isto é, acrescenta ao nome de ambos um som que na nossa língua é traduzido pela letra H que em certas línguas é um som aspirado e que no hebraico aponta para o significado de “janela”, “porta”, o que nos indica que a mesma porta que Deus abriu para Abraão, abriu também para a esposa. Por outro lado, o som aspirado faz lembrar o sopro e essa letra acrescentada encontra-se também no nome pelo qual Deus se revelou, no tetragrama sagrado. Como se Deus tivesse instilado na vida de ambos (na medida em que o nome representa a pessoa) o sopro da vida, não de uma vida qualquer, mas a vida do Deus Todo poderoso. Como se Deus estivesse a declarar que, a partir de agora, Abrahão e Deus comungam de uma forma tão íntima que um elemento de Deus está bem inserido em Abrahão e Sarah. Assim, usando o significado dos nomes, poderíamos ler deste modo o texto: “Não se chamará mais o teu nome Pai-Exaltado, mas Pai-de-uma-multidão porque por pai da multidão (Abraão) de nações te tenho posto” (Génesis 17:5) e: ”À tua mulher não chamarás mais Contenciosa, mas Princesa será o seu nome” (Génesis 17:15). A partir de agora, este homem deixa de estar limitado à sua circunstância e passa a ser um modelo para toda a humanidade.
Ora, se nós somos filhos espirituais de Abraão, somos herdeiros do concerto e das promessas que Deus estabeleceu com ele. O que significa que o que Deus fez com Abraão, faz também connosco. O que significa que a atitude que Deus teve com Abraão, terá também connosco. O que significa que se queremos a herança de Abraão, temos de assumir a mesma atitude que Abraão assumiu. E temos de perceber que, tal como ele, o nosso conhecimento e envolvimento com as promessas de Deus se vão aprimorando na medida em que andarmos com Deus e em que formos edificando os diversos altares. E temos de perceber que, por vezes, saímos do caminho que Deus traçou para nós mas que, apesar disso, Ele continua fiel ao que nos prometeu. Basta que regressemos ao ponto de onde nos desviámos, tal como fez Abraão que, ao voltar do Egipto, regressou ao ponto de onde partira, a Betel, a casa de Deus, porque aí o Senhor ordena a bênção e a vida para sempre (Salmo 133:3). Porque a seguir a Betel, vem a nossa Hebrom (comunhão). E apenas quando passamos por Betel e Hebrom, podemos experimentar a nossa Moriá.
O que significa que a ordem que Deus deu a Abrão, “Anda na minha presença e sê perfeito” também nos é dada. E para que não digamos que é impossível obedecer-lhe, Deus instila em nós o Seu sopro da vida e nos abre uma porta ou uma janela por onde a luz da revelação tem livre curso para entrar. E para que não digamos que é impossível ou que estamos sozinhos no cumprimento dessa ordem, Deus instila em nós o Seu carácter consubstanciado na presença em nós do Emanuel (Cristo Jesus). Afinal, foi o que o Omnipotente fez quando mudou o nome de Abrão para Abrahão. Deus também quer mudar o nosso nome (Apocalipse 2:17 – Quem tem ouvidos, ouça o que o Espírito diz às igrejas: ao que vencer, darei eu a comer do maná escondido e dar-lhe-ei uma pedra branca e na pedra um novo nome escrito, o qual ninguém conhece senão aquele que o recebe.) Temos um nome pelo qual Deus nos conhece e é por ele que somos chamados. Deus não nos vê como nos vemos, mas vê-nos conforme a Sua promessa e a provisão que tem para nós.
Ao longo de todos os encontros que teve com os Seus servos, Deus não mudou uma vírgula aos Seus intentos. Embora façamos a distinção entre os diversos concertos que Deus foi estabelecendo com os Seus (daí falarmos em pacto adâmico, pacto noémico, pacto moisaico e pacto da Nova Aliança), podemos dizer, sem entrar em contradição nem negar a Escritura, que o pacto ou concerto de Deus é um só desde o princípio, vivido pelos homens em diversas fases e que todos eles se resumem a esta verdade central: “Andemos na Sua presença e sejamos perfeitos”. Um pouco à semelhança do que Jesus fez ao resumir a Lei Moisaica à Lei do Amor: «E Jesus disse-lhe: Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração e de toda a tua alma e de todo o teu pensamento. Este é o primeiro e grande mandamento. E o segundo, semelhante a este é: amarás o teu próximo como a ti mesmo. Destes dois mandamentos depende toda a lei e os profetas.» (Mateus 22:37-40), repetindo o que Deuteronómio 6:5 e Levítico 19:18 já haviam declarado. Ou seja: em todos os pactos encontramos a mesma exigência.
Então, isso significa que não é pelo facto de vivermos no tempo da Nova Aliança que estamos dispensados de cumprir essa ordem. Pelo contrário – muito mais obrigação e muito mais responsabilidade temos de a cumprir, na medida em que, sendo filhos adoptados de Deus, a nossa porção é a de herdeiros de Deus e co-herdeiros de Cristo, com a responsabilidade de reflectirmos em nós as virtudes e qualidades do nosso Salvador, que foi fiel até ao fim.
A ordem estipulada e que recebemos via Abrahão é dupla:
1) “Anda na minha presença” – isso indica permanência, isso indica comunhão, isso indica receber e partilhar. Isso significa que no nosso caminhar em qualquer sector da vida e do mundo a presença de Deus tem de ser uma constante no nosso espírito, na nossa alma e no nosso corpo. Que o mesmo é dizer que a presença de Deus deve estar actuante em todas as dimensões em que nos movemos: na dimensão física, na dimensão intelectual, na dimensão emocional, na dimensão psíquica, na dimensão espiritual, em suma, em todas as dimensões em que estivermos envolvidos. Isso significa que em qualquer actividade em que estivermos envolvidos, a presença de Deus deve ser uma constante e que nenhuma delas, desde que cumpra os requisitos ordenados por Deus, é indigna de ser vivida.
O andar indica também movimento. E movimento implica tensão e desequilíbrio. Quando caminhamos, movemo-nos sempre numa tensão entre o equilíbrio e o desequilíbrio. Ao levantarmos um pé para caminhar, assumimos um equilíbrio instável a que se segue um momento de equilíbrio estável que é aquele em que temos os dois pés assentes no chão. Em todo este processo, passamos por uma tensão de equilíbrio e desequilíbrio. Mas é precisamente essa tensão que nos faz mover e avançar. Se queremos experimentar a comunhão com Deus, devemos estar dispostos a viver em tensão entre o que somos e aquilo que Deus preparou para nós, sabendo que a cada passo que damos, ficamos mais perto do alvo final. E mesmo quando parece que Deus não nos fala, Deus mantém a Sua promessa e mantém a Sua presença connosco. Recordemos o tempo em que Abrão esteve no Egipto e em que não temos registo de Deus lhe ter aparecido. Mesmo nessa situação, a promessa do concerto de Deus não se desvaneceu nem se quebrou. Foi necessário Abrão passar pelo seu processo de tensão para que um novo capítulo fosse escrito na sua vida. Quando Deus estabelece um pacto connosco (e Ele já estabeleceu), não nos abandona, mesmo que a nossa carne diga que não O sente. Deus não está dependente das nossas emoções – Deus está preso à Sua promessa. Deus é fiel não ao nosso sentir ou à nossa circunstância, mas à Sua palavra.
O andar implica autonomia e a autonomia exige vontade para que ela seja autêntica, vibrante e produtiva. Indica que cada passo que damos nos faz entrar em novos domínios que até então nos estavam vedados. Deus quer fazer-nos entrar em domínios que nos estão disponíveis, embora ainda não na nossa posse ou controlo. Mas o caminhar implica também abandono – deixamos o nosso conforto, deixamos o que consideramos nosso para nos aventurarmos naquilo que jaz à nossa frente. Mas o caminhar também nos recorda que, embora caminhando, o caminho não é nossa propriedade. Poderíamos dizer com justeza que o caminho é que nos sustenta e, em termos bíblicos, o nosso caminho é Cristo Jesus que de si mesmo afirmou ser “o caminho, a verdade e a vida” (João 14:6). Caminhemos então, sabendo que o caminho que percorremos é firme, seguro e inabalável, mesmo quando as tormentas e os furacões da vida possam abanar o nosso batel.
2) O segundo elemento da ordem é: “sê perfeito”. Por vezes, temos dificuldade com as palavras e lutamos com elas. E nessa luta, não poucas vezes alteramos o verdadeiro significado das palavras. E nessa fraqueza, acabamos por viver num engano porque nos agarrámos a uma definição incorrecta, levando-nos a perder de vista o essencial e o verdadeiro.
É o que sucede com esta palavra “perfeito”. Quando a ouvimos identificamos com “imaculado”, “sem falhas”, “sem mancha”. Na verdade, não é isso que a palavra significa, a ponto de uma coisa ser perfeita e ter falhas. Por exemplo, podemos dizer que Satanás é a perfeita maldade porque nada lhe falta para ser mau. Nele, a maldade (uma coisa negativa) é total, acabada. Por vezes, quando avaliamos alguém que consideramos nada valer, dizemos que é um “perfeito idiota” ou uma “nulidade perfeita”. É que “perfeito” significa aquilo que está acabado, terminado, concluído, que atingiu o ponto final do seu avanço ou projecto. Então quando Deus diz “sê perfeito”, está a dizer-nos que nos entregou um projecto, uma planta, uma ordenança com todos os requisitos e meios para atingir os fins que Ele propõe e só temos de seguir à risca as Suas instruções. Fazendo-o, estamos a ser perfeitos, isto é, chegámos ao fim. Na fase de perfeição, nada mais há a acrescentar porque o que havia de ser feito já foi feito. Naturalmente, sendo Deus não apenas a Perfeição absoluta mas o Ser Imaculado Absoluto, então tudo quanto vem da Sua mão não apenas é perfeito mas belo, imaculado, sem erro ou falha. Essa talvez a razão de por vezes confundirmos perfeito com imaculado.
A verdade é que Deus começou a boa obra em nós e continuará a aperfeiçoá-la até ao dia de Jesus Cristo, conforme Paulo diz em Filipenses 1:6. Deus está a trabalhar em nós, aperfeiçoando-nos, concluindo-nos para o grande encontro com o Esposo. Se Deus não desiste de ti, não desistas tu de ti próprio. Estás em boas mãos.
Quando ordena que sejamos perfeitos, Deus sabe que a tarefa é difícil. Por isso, em todos os concertos estabelecidos com o homem, Deus deixou um plano guia que o orientasse a atingir o alvo exigido, dando-lhe os meios necessários para atingir os alvos pretendidos. Tal como a tentação em que Deus não nos deixa ser tentados acima das nossas capacidades (1 Coríntios 10:13), também na realização desta Sua ordem, Deus nada exige que Ele não saiba que não possamos levar a cabo. Por isso, pela Sua palavra, sabemos que, por muito difícil que nos seja, é possível sermos perfeitos. Basta seguir o plano traçado por Deus na Sua Palavra. Ele estabeleceu um concerto connosco, plasmado na Nova Aliança de que Cristo Jesus é o alicerce. Sobre ele construímos a Sua igreja que é o conjunto de todos quantos O reconhecem como Salvador. E para que nada falhe nessa construção, Deus tem o Consolador, o Espírito Santo a supervisionar a Sua obra, a corrigir o que for sendo feito deficientemente, colocando tudo no seu lugar, na perfeição.
E se o plano de Deus é perfeito, então não lhe acrescentemos nada mais como que a querer dar uma ajudinha. Deus não está dependente de modas ou de uma linguagem de facilitação ou adaptação do seu plano para o tornar mais atraente aos homens. Como dizia Paulo em Romanos 12:1-2, a vontade (o plano) de Deus é boa, agradável e perfeita. Por isso, todo o acto de culto, em cujo centro não esteja outra coisa senão a Sua Palavra que é o nosso guia para descobrir, viver e apreciar o plano de Deus para nós e para os outros, não é culto, é reunião social. “Anda na minha presença, diz o Senhor, e sê perfeito.”
Soli Deo Gloria!

VERDADE – breves considerações

VERDADE – breves considerações
Rafael da Mota Luz
 Rafael da Mota Luz_peq
ÍNDICE
INTRODUÇÃO 1
I. VERDADE: O QUE É? 2
II. VERDADE ENQUANTO CONCEPÇÃO SECULAR 3
III. VERDADE À LUZ DA BÍBLIA 4
CONCLUSÃO 9
BIBLIOGRAFIA E WEBGRAFIA 10
INTRODUÇÃO
Prende-se este modesto trabalho com a consignação de uma breve compreensão acerca da verdade, sob um ponto de vista conceptual geral e especial, sendo, neste último caso, à luz da Bíblia Sagrada, ainda que em jeito de tentativa.
No âmbito do desenvolvimento da temática abordada, verifica-se uma grande concentração de valor e qualidade significativa sobre as afirmações de conhecimento sobre o conceito acerca do qual nos debruçamos doravante.
Neste sentido, é frequente observar como as questões levantadas acerca do que venha a ser a verdade, têm sido debatidas a diversos níveis, quer seja no âmbito de conversações mais informais, quer seja circunscrita aos meios académicos, político-parlamentos ou religiosos. Também é comum constatar a frequência com que tais conversações desembocam desde debates acalorados, às vias de facto, por conseguinte dividindo, segmentado ou, paradoxalmente, unindo diversas pessoas cuja identificação colectiva reporta às concepções fundamentalistas decorrentes dessas divisões.
No que cinge à religião, especialmente à luz do Cristianismo, tivemos a oportunidade de constatar que as questões relacionadas à verdade ganham maior dimensão, considerando as consequências de sua afirmação, as quais não comportam espaço à relativização.
Disso faz demandar uma pré-compreensão geral de que a verdade se insira no epicentro de uma temática relacionada às mais íntimas e profundas convicções das pessoas, a incorrer num despoletar de reacções viscerais e passionais, individuais ou colectivas.
Para o desenvolvimento da presente monografia, construímos um brevíssimo panorama sobre as definições mais consensuais sobre a verdade, seguindo em direcção a uma construção filosófica para, finalmente, chegarmos àquilo que cinge ao que diz a Bíblia sobre o tema, enquanto base Cristã de sustentação às suas afirmações.
Limitamo-nos à pesquisa bibliográfica diversa, designadamente à utilização de comentários bíblicos, dicionários comuns e bíblicos, enciclopédias, webgrafias e Bíblias com diferentes traduções (citando-se tão-somente uma breve referência à passagem e à sua localização no texto sagrado), cientes, contudo, da impossibilidade de se esgotar toda a temática abordada em tão poucas linhas.
I. VERDADE: O QUE É?
Em termos gramaticais, à luz do vernáculo definido para a Língua Portuguesa, «verdade» é uma expressão originariamente transportada do latim veritas [-tatis], classificada como substantivo feminino, cuja raiz etimológica reporta ao seguinte: (1) conformidade com o real; (2) conformidade da ideia com o objecto, do dito com o feito, do discurso com a realidade. ≠ ERRO, ILUSÃO, MENTIRA; (3) qualidade do que é verdadeiro. = EXACTIDÃO, REALIDADE; (4) Coisa certa e verdadeira. ≠ ILUSÃO, MENTIRA; (5) [Por extensão] Manifestação ou expressão do que se pensa ou do que se sente. = AUTENTICIDADE, BOA-FÉ, SINCERIDADE ≠ MENTIRA; (6) princípio certo. = AXIOMA; (7) [Belas-artes] Expressão fiel da natureza, de um modelo, etc..1
Segundo o saber de AFRÂNIO SILVA JARDIM2, em termos jurídicos, a verdade pode ser entendida amplamente sob duas égides: a da verdade real (processo penal) e a da verdade formal (processo civil). Como está evidente, a expressão «verdade real» acarreta uma grande redundância. Se não é real, não é verdade. Se é verdade, não pode deixar de ser real. Assim, esta expressão vem se opor ao princípio da «verdade formal», que vigora no processo civil, quando colocado em jogo direitos disponíveis, como é o caso do património.
Prossegue por pontuar que no processo civil, o juiz pode reputar como verdadeiros factos não provados, desde que não impugnados pela parte contrária. No processo penal, até mesmo a confissão do réu não dispensa a existência das demais provas. Mesmo os factos incontroversos são objecto de prova no processo penal, uma vez que se está a falar de direitos indisponíveis, como é o caso da liberdade.
Conclui o autor, por ponderar:
Por outro lado, quando o princípio em estudo se refere à verdade, dispara uma enxurrada de críticas de toda a ordem. Seja no plano filosófico, na teoria do conhecimento, seja no plano das chamadas ciências exactas, vários estudos sérios questionam o que seja verdade, questionam a impossibilidade de o ser humano a ela consiga chegar, seja pela razão, seja pelos nossos sentidos.3
Mas, a verdade, o que é afinal?
II. VERDADE ENQUANTO CONCEPÇÃO SECULAR
NICOLA ABBAGNAMO busca uma ideia de separação do pensamento socrático acerca da verdade da concepção religiosa Cristã, devido ao entendimento de que, contrariamente ao que sustenta a religião, baseado essencialmente na revelação divina, um saber que seja ou que pretenda ser, não pode ser revelado pela divindade, posto que, aquilo que a divindade ordena é o empenho da investigação e o esforço aplicado à justiça, ou seja, aquilo que ela garante é que, para o homem honesto, não existe mal nem na vida nem na morte4. Assim, segundo Sócrates, tanto a verdade quanto a virtude são atributos de valor realizável fora da religião, pelo que devem ser objecto de busca e realização pessoal e individual pelo homem5.
Reporta o autor ainda ao entendimento vertido por DESCARTES no que respeita ao processo da descoberta da verdade. Prossegue por percorrer uma via metódica, sistematizada e segura, onde o conjunto de regras certas e fáceis que, por quem quer que sejam exactamente observadas, lhe tornam impossível tomar o falso pelo verdadeiro e, sem nenhum esforço omental inútil, antes aumentando sempre gradualmente a ciência, conduzindo-o ao conhecimento de tudo o que será capaz de conhecer, referindo, ainda, as modalidades ou particularidades da sua aplicação, reduzindo o sucesso do processo à consecução de quatro regras fundamentais6: (1) evidência: “jamais aceitar alguma coisa por verdadeira se não reconhecêssemos evidentemente como tal.” (2) análise: “dividir cada uma das dificuldades a examinar no maior número de partes possíveis e necessárias para melhor as resolver.” (3) síntese: “conduzir os meus pensamentos por ordem, começando pelos objectos mais simples e mais fáceis de se conhecer, para pouco a pouco me elevar, como por graus, até aos conhecimentos mais complexos.” e (4) enumeração: “fazer sempre enumerações tão completas e revisões tão gerais que se fique certo de não omitir nenhuma.”.
Segundo a linha desenvolvida por DESCARTES, em seu método mediante a consideração do processo matemático7:
As longas cadeias de raciocínios tão simples e fáceis, de que os geómetras costumam servir-se para chegar às suas mais difíceis demonstrações, proporcionaram-me o ensejo de imaginar de que todas as coisas de que o homem pode ter conhecimento se seguem do mesmo modo e que, desde que se abstenha de aceitar por verdadeira uma coisa que não o seja e que respeite sempre a ordem necessária para deduzir uma coisa da outra, nada haverá tão distante que não se chegue a alcançar por fim nem tão oculto que não se possa descobrir.
COLIN BROWN, por sua vez, refere na sua obra8 o pensamento de KIERKEGAARD, acerca da verdade, como objecto de discussão sob o título de subjectividade, consubstanciando um termo frequentemente empregado para contrastar com a abordagem objectiva. Neste sentido, defende “a dialética de como se tornar um cristão”, passando pela ideia de imortalidade defendida por SÓCRATES, a qual segue, bem como do modo de vida à altura das provas desse ideal, dando importância ao que chama “escolha subjectiva, o salto da fé, o comprometimento com o absurdo”. Conclui por optar não viver com base na verdade cristã baseada e sustentada na fé.
III – VERDADE À LUZ DA BÍBLIA
No desenvolvimento de F. F. BRUCE, o substantivo verdade é coordenado9 no sentido de identificar Jesus como a verdade de Deus, i. é, a corporificação da auto-revelação de Deus, o verdadeiro Deus em quem se deve crer, aquele por meio de quem não se caminha para a vida fora da verdade, enfim, a verdade absoluta.
Com efeito, a questão colocada por Pôncio Pilatos envolvendo a “verdade” é intrigante10.
Refere o autor que o questionamento de Pilatos se insere numa temática que foge à competência da lei e do Direito romano. Disso resulta a compreensão pela qual aquele agente da autoridade romana interrompera de forma abrupta o interrogatório dirigido sobre a pessoa de Jesus aquando da sua prisão e audiência decorrente11.
Prossegue, ao contextualizar-nos àquele insólito episódio, que a questão da eternidade ou da verdade eterna, ali abordada, eram matérias sobre as quais efectivamente fugiam ao domínio de Pilatos. Entretanto, elucida-nos da sua conclusão que qualquer coisa que Jesus tivesse dito ou feito, não seriam suficientes para constituir acusação formal de que consubstanciaria de facto sobre ele alguma ameaça à autoridade imperial.
Conclui deixando-nos a seguinte reflexão:
Pode ser que as palavras de Jesus não tenham provocado grande efeito sobre Pilatos, mas João espera e crê que muitos dos seus leitores as levarão a sério, vindo a conhecer aquele que não é somente “uma testemunha da verdade” mas a verdade em pessoa – a verdade que põe as pessoas em liberdade.
Atendo-nos ao sentido bíblico em questão, verificamos que12: (1) Deus é o Deus da verdade, (2) Cristo é a verdade, (3) Cristo era cheio da verdade, (4) Cristo falou a verdade, (5) o Espírito Santo é Espírito de verdade, (6) o Espírito Santo guia em toda a verdade, (7) a Palavra de Deus é a verdade, (8) Deus a considera, com favor e (9) os julgamentos de Deus são de acordo com ela.
Relativamente às pessoas, em sentido amplo, compreende-se que os que falam a verdade exibem honestidade enquanto qualidade, razão pela qual alegram a Deus e em consequência disso, serão firmados13.
No que se refere a um grupo específico de pessoas distintas entre si, designados “santos”14, “ministros”15 e “ímpios”16, a verdade pode ser compreendida, enquanto aos dois primeiros, sob a perspectiva de um conjunto de exigências ou deveres, enquanto ao último, às implicações da sua não observância e as consequências daí decorrentes. Vejamos:
a) Os santos devem17: (1) adorar a Deus em verdade, (2) servir a Deus em verdade, (3) caminhar diante de Deus em verdade, (4) manter as celebrações religiosas com verdade, (5) considerá-la inestimável, (6) alegrar-se nela, (7) falar uns com os outros em verdade, (8) meditar nela, (9) escrevê-la em seus corações, (10) Deus a deseja nos corações e (11) o fruto do Espírito é verdade.
b) Os ministros devem18: (1) falar a verdade, (2) ensinar a verdade, (3) ser aprovados por ela, (4) os magistrados devem ser homens da verdade, (5) os reis são preservados por ela.
c) Os ímpios19: (1) são destituídos da verdade, (2) não falam a verdade, (3) não confirmam a verdade, (4) não pleiteiam a verdade, (5) não são corajosos pela verdade, (6) são castigados por falta de verdade.
ORLANDO BOYER20 elenca os Oito «Eu Sou» do Evangelho de João, referindo-se aos aspectos identitários de Cristo, afirmados pelo próprio: (1) Eu sou o Pão da vida, 6:35 (2) Eu sou a Luz do mundo, 8:12 (3) Eu sou a Porta, 10:9 (4) Eu sou o bom Pastor, 10:14 (5) Sou Filho de Deus, 10:36 (6) Eu sou a Ressurreição e a Vida, 11:25 (7) Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida, 14:6 (8) Eu sou a Videira verdadeira, 15:1.
Dentre os aspectos atrás descritos, encontramos a especificação «a verdade» – e não só: a verdade que liberta, a partir do seu conhecimento. A este propósito refere o autor que a opressão espiritual é pior do que a escravatura nacional e que a libertação do pecado mais importante que a de qualquer cruel ditador21.
Portanto, a verdade, no contexto bíblico, é também apresentada como uma das identidades de Cristo ou de como ele se apresenta e se identifica.
 CONCLUSÃO
Chegamos à altura de fecharmos a nossa pesquisa, embora não exaustiva, estritamente bibliográfica, acerca da «verdade» sob o ponto de vista conceptual geral ao especial, no sentido bíblico, assente em três pontos: um conceito, um desenvolvimento geral e um específico.
A percepção global que tivemos fora de que a definição do que seja ou venha a ser «a verdade» abrange uma enorme carga significativa de conteúdo que, infelizmente, não tivemos a oportunidade de gravar nestas poucas linhas, restringindo-nos tão-somente, a um breve panorama desta relevante ideia.
Contudo, observamos que o conceito em questão, conforme sentido e essência da especialidade ora perseguida – Jesus Cristo, A Verdade -, consiste numa das identidades de Cristo ou de como ele próprio se apresenta e se identifica, ao passo em que a sua assumpção, por parte de todo aquele que nele crê, continua a resultar em influência e em transformação de suas vidas, bem como de governos e nações até os dias de hoje.
NOTAS
  DICIONÁRIO ETIMOLÓGICO NOVA FRONTEIRA DA LÍNGUA PORTUGUESA / ANTÔNIO GERALDO DA CUNHA; assistentes: CLÁUDIO MELLO SOBRINHO… [et. al.]. – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982, p. 816; “Verdade”, in DICIONÁRIO PRIBERAM DA LÍNGUA PORTUGUESA [em linha], 2008-2013, https://dicionario.priberam.org/verdade [consultado em 17-06-2019].
2 AFRÂNIO SILVA JARDIM, O Princípio Da Verdade Real No Processo Penal: Uma Explicação Necessária. https://emporiododireito.com.br/leitura/o-principio-da-verdade-real-no-processo-penal-uma-explicacao-necessaria [em linha], 24/07/2018 [consultado em 17-06-2019].
3 Ibidem, op. cit..
4 NICOLA ABBAGNAMO, História da Filosofia / tradução: ANTÓNIO BORGES COELHO, FRANCISCO DE SOUSA E MANUEL PATRÍCIO, 3.ª Ed., Vol. I, Editorial Presença, Lisboa: 1992, pp. 105, 106, apud, SÓCRATES.
5 Ibidem, cit., p. 106.
6 NICOLA ABBAGNAMO, História da Filosofia / tradução: ANTÓNIO RAMOS ROSA, 3.ª Ed., Vol. VI, Editorial Presença, Lisboa: 1992, p. 44-46, apud, DESCARTES.
7 Ibidem, cit., p. 43.
8 COLIN BROWN, Filosofia e Fé Cristã. Sociedade Religiosa Edições Vida Nova, São Paulo: 1983, p. 89, apud, KIERKEGAARD.
9 F. F. BRUCE. João: Introdução e comentário / tradução: HANS UDO FUCHS, 1.ª ed., Série Cultura Bíblica. Sociedade Religiosa Edições Vida Nova. – São Paulo: 1987, pp. 256, 257.
10 Evangelho segundo João 18:38a: “Que é a verdade?” – Destacou-se.
11 F. F. BRUCE. João: Introdução e comentário…, Ibidem, p. 301.
12 ENCICLOPÉDIA TEMÁTICA DA BÍBLIA / tradução EULÁLIA A. P. KREGNESS. – São Paulo: Shedd Publicações, 2008, p. 385. Referências bíblicas: (1) Dt 32:4; Sl 31:5 (2) Jo 14:6 com Jo 7:18 (3) Jo 1:14 (4) Jo 8:45 (5) Jo 14:17 (6) Jo 16:13 (7) Dn 10:21; Jo 17:17 (8) Jr 5:3 (9) Sl 96:13; Rm 2:2.
13 ENCICLOPÉDIA TEMÁTICA DA BÍBLIA, Ibidem, cit..
14 “Santo – [Do heb. kadosh; do gr. hagios] Aquele que se separa do mal, e dedica-se ao serviço divino. O Homem torna-se santo quando recebe a Cristo como o seu salvador. De imediato, o pecador, agora redimido, é colocado na posição de justo e santo diante de Deus, como se jamais houvera pecado. O processo de santificação do crente tem como base a Palavra de Deus.” In DICIONÁRIO TEOLÓGICO. CLAUDIONOR CORRÊA DE ANDRADE, 1.ª ed. – Rio de Janeiro: Casa Publicadora das Assembleias de Deus, 1998, p. 260.
15 “Ministro – [Do lat. ministrum] Servidor, servo. A principal característica do ministro do Evangelho é servir a Cristo e a Igreja. Sua função é dupla: 1) Em relação à Igreja, pastorear o rebanho de Deus. 2) Em relação ao mundo, proclamar o Reino de Deus.” In DICIONÁRIO TEOLÓGICO…. Ibidem cit., p. 214.
16 Cf. “Impiedade – [Do lat. impietatem, ausência de piedade] Ausência sistemática dos atributos de Deus no indivíduo, na sociedade ou no Estado. Esta impiedade nasce nas paixões, sistematiza-se em ideologias, e cristaliza-se em sistemas que tudo fazem por banir a ideia de Deus na humanidade. Haja vista o estado totalitário implantado por Adolf Hitler na Alemanha. O que eram simples paixões nos anos 20, ganharam foros de filosofia nos anos 30, e monstruosa impiedade nos anos 40.” In DICIONÁRIO TEOLÓGICO…. Ibidem cit., p. 186.
17 ENCICLOPÉDIA TEMÁTICA DA BÍBLIA… Ibidem, cit.. Referência bíblicas: (1) Jo 4:24; Sl 145:18 (2) Js 24:14; I Sm 12:24 (3) I Rs 2:4; II Rs 20:3 (4) I Co 5:8 (5) Pv 23:23 (6) I Co 13:6 (7) Zc 8:16; Ef 4:25 (8) Fp 4:8 (9) Pv 3:3 (10) Sl 51:6 (11) Ef 5:9.
18 Ibidem, op. cit.. Referências bíblicas: (1) II Co 12:6, Gl 4:16, (2) I Tm 2:7, (3) II Co 4:2, 6:7-8, 7:14; (4) Êx 18:21, (5) Pv 20:28.
19 Ibidem, op. cit.. Referências bíblicas: (1) Os 4:1, (2) Jr 9:5, (3) Is 59:14-15, (4) Is 59:4, (5) Jr 9:3, (6) Jr 9:5,9, Os 4:1.
20 ORLANDO S. BOYER. João: O Evangelho do Filho de Deus. Para que tenhais vida em seu nome vida em abundância. 2.ª ed. Oficinas da Empr. Gráf. Ouvidor, S.A.. – Rio de Janeiro: 1964, pp. 112, 113.
21 Ibidem, cit., p. 113.
BIBLIOGRAFIA
- COLIN BROWN, Filosofia e Fé Cristã. Sociedade Religiosa Edições Vida Nova, São Paulo: 1983.
- DICIONÁRIO ETIMOLÓGICO NOVA FRONTEIRA DA LÍNGUA PORTUGUESA / ANTÔNIO GERALDO DA CUNHA; Assistentes: CLÁUDIO MELLO SOBRINHO… [ET. AL.]. – Rio De Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
- DICIONÁRIO TEOLÓGICO. CLAUDIONOR CORRÊA DE ANDRADE, 1.ª ed. – Rio de Janeiro: Casa Publicadora das Assembleias de Deus, 1998.
- ENCICLOPÉDIA TEMÁTICA DA BÍBLIA / tradução EULÁLIA A. P. KREGNESS. – São Paulo: Shedd Publicações, 2008.
- F. F. BRUCE. João: Introdução e comentário / tradução: HANS UDO FUCHS, 1.ª ed. Série Cultura Bíblica. Sociedade Religiosa Edições Vida Nova. – São Paulo: 1987.
- NICOLA ABBAGNAMO, História da Filosofia / tradução: ANTÓNIO RAMOS ROSA, 3.ª ed., Vol. VI, Editorial Presença, Lisboa: 1992.
- ORLANDO S. BOYER. João: O Evangelho do Filho de Deus. Para que tenhais vida em seu nome vida em abundância, 2.ª ed. Oficinas da Empr. Gráf. Ouvidor, S.A.. – Rio de Janeiro: 1964.
WEBGRAFIA
- AFRÂNIO SILVA JARDIM, O Princípio Da Verdade Real No Processo Penal: Uma Explicação Necessária. https://emporiododireito.com.br/leitura/o-principio-da-verdade-real-no-processo-penal-uma-explicacao-necessaria [em linha], 24/07/2018 [consultado em 17-06-2019].
- “Verdade”, In DICIONÁRIO PRIBERAM DA LÍNGUA PORTUGUESA [em linha], 2008-2013, https://dicionario.priberam.org/verdade [consultado em 17-06-2019].

O DANTE DA POESIA BÍBLICA

O DANTE DA POESIA BÍBLICA
JTP_15a© João Tomaz Parreira
Há uma observância das normas da poética no livro bíblico do profeta Isaías.
Com efeito, existem provas incontáveis de como a melhor poesia pode prescindir do metro. No estudo de uma poética ocidental, não foi por mera referência editorial que se escreveu sobre a grande poesia que pode dispensar a metrificação, e que tal se estende até ao livro bíblico de Isaías.
Uma referência do nosso tempo, o crítico literário Harold Bloom já havia escrito, que, face à realidade social em que se vive, o homem actual é exortado a encontrar “em Platão ou em Isaías a origem da nossa moralidade.” (O Canone Ocidental, pág.39)
O estilo deste profeta integra uma unidade que a crítica não pôde desintegrar, embora desde o século XVIII o tentasse fazer. Como é do domínio dos estudiosos, essa crítica colocava em questão a identidade do autor, sugerindo a hipótese de várias identidades autorais do Livro bíblico profético.
O prof. Adriano Moreira afirmou, a este propósito, que, contrariamente às hesitações da tal crítica, o Livro de Isaías mantém a continuidade da voz e da mensagem, da voz de Isaías e da sua Profecia, nas Escrituras Sagradas.(Isaías, Três Sinais Editores, Apresentação de AM)
É, com certeza, no âmbito do Fundamentalismo evangélico, um estilo literário, assim considerado há muito, com estudos fundamentalistas desde o princípio do século passado. «O estilo de Isaías difere amplamente de qualquer outro profeta do Antigo Testamento»- escreve o prof.George Robinson na colectânea Fundamentos (Edição de R.A.Torrey, Hagnos, pág.93)
O filho de Amós estabelece desde o início o paradigma do seu Livro ao declarar que o mesmo será resultado de uma Visão. E di-lo de uma forma linear, comparativamente ao princípio de Ezequiel, que o faz de um modo prosaico e muito histórico-literário, também. O termo hebraico châzôn (sonho, revelação, oráculo), compara-se ao grego orasis, o que equivale à coisa que se torna visível. E a poesia torna as ideias visíveis nas palavras. Gostaria também de usar aqui o termo «poesis», que significa «fazer», referindo-o como uma forma de arte, de criatividade visual.
Com efeito, a poesia existente no Livro de Isaías permite-nos que «vejamos» o que o profeta escreve e vaticina, as suas imagens, as suas metáforas.
Por exemplo, do entrecho poético: “Como são belos sobre os montes os pés do mensageiro que anuncia a paz, que traz a boa nova, que apregoa a vitória, que diz a Sião: “Já reina o teu Deus”( Is 52,7). Os “pés do mensageiro” com feridas, sujos da poeira da estrada, são “belos” na poética do profeta. A razão é a qualidade da mensagem, a sua totalidade mensageiro / mensagem, a boa nova que é ela própria um som de paz. Forma e conteúdo da mensagem são a mesma coisa: uma voz pacífica perante a visão dos atalaias que já distinguem o retorno do Senhor a Sião.
Outro entrecho do Livro, o cap.53 é paradigmático. Sendo profecia, traduz porém o acontecimento numa linguagem estruturada em símiles e metáforas. A antevisão da paixão e crucificação do Messias é notavelmente de poética.
Poderíamos dizer que na poética do profeta bíblico existe o paradigma de uma antecipação do estilo modernista, 2.600 anos antes, obedecendo no entanto ao rigor das normas hebraicas, mas com apontamentos da área dos tropos da linguagem. Como alguém considerou, é fácil descobrir que o Livro de Isaías contém mais vocabulário do que qualquer outro livro da Bíblia e artifícios de linguagem.
Antes de movermo-nos para outro ponto sobre a poeticidade do escrito Isaías e sobre este como poeta, deixem-me exemplificar: ele usou um esquema que hoje conhecemos como quiasmo. Esta figura literária de repetição pode ser pensada como a do paralelismo hebraico.
Assim esquematizado: ABCDDCBA ou ABBA Vejam-se dois exemplos: A-Efraim B-não invejará a Judá B- e Judá A-não oprimirá a Efraim. ( 11,13) e 55:8: A-Porque os meus pensamentos B-não são os vossos pensamentos, B-nem os vossos caminhos A-os meus caminhos, diz o Senhor.
A observância da poética em Isaías é um problema da cultura, problema do qual faz parte a solução para o entendimento da linguagem da poesia de uma boa parte do livro do profeta bíblico.Tanto na forma como conteúdo.
Citando, comparativamente, o teólogo Richard Niebuhr, «Paulo foi um conservador cultural» e não rejeitamos de modo algum que tenha incluído no seu discurso em Atenas a referência a dois poetas pagãos da cultura greco-romana: Aratus e Cleantes.
A Cultura é um meio que deve dar expressão à Fé, e não um fim em si mesma. O profeta Isaías, no seu tempo antes de Cristo, não citou poetas, ele próprio foi poeta, exprimiu a sua Visão e a sua Fé no Servo Sofredor através da sua cultura poética. Isaías é um autor bíblico que explica tudo.
O próprio uso do termo «Senhor dos Exércitos», que é uma forma universal no escrito inspirado de Isaías trata do senhorio de Deus sobre anjos e estrelas, isto é, o Criador do Universo inteiro, porquanto na linguagem bíblica os «exércitos» divinos são os anjos e as estrelas.
Outro termo utilizado é o peculiar «o Santo de Israel» que é uma particularidade que identifica o Senhor da Nação, e marca esta como constituída por um Povo peculiar e separado para corresponder ética, moral e espiritualmente à santidade.
Nesse tempo já havia termos que definiam e caracterizavam, nas literaturas clássica de antes do Velho Testamento, soberanias e autoridades, designadamente «o pastor de povos», que se referia aos reis e é designado na Ilíada e na Odisseia de Homero – os poimèn laôn.
Tratava-se aqui de uma metáfora, uma símile literária que o profeta Isaías cristalizou no seu Livro, no contexto de Israel, ao falar do que vira na sua visão mística, «o Rei, o Senhor dos exércitos», o Criador do universo inteiro. Isaías tem sido definido, pelos estudiosos do seu Livro bíblico, desde 1775 como o «Dante da poesia hebraica».
Porquê Dante? Por este ser um admirador da arte dos Salmos? E da Roma cristã? Pelo estilo da escrita, das imagens, pela potência inventiva das frases, ou pela sua estrutura visionária da sua obra-prima? A Divina Comédia? Sobre Dante escreveu-se que ele vê e sente por imagens. Cada episódio é um reflexo variado de tudo aquilo que agita a alma de Dante.
Ele sente-se como vidente e profeta investido de uma missão divina.
Dante sofre perante tais imagens dessa visão dantesca, a que já se chamou a «danteide» desde o Paraíso ao Inferno. «Dante sofre por aqueles factos e aquelas impressões, e quer transmitir esse sofrimento; doutro modo não poderia dar a entender aquilo que deve ou quer, ou seja o aspecto e os perigos do Inferno»
Isaías sofreu perante a visão do Servo Sofredor, de Cristo na figura da ovelha muda perante os tosquiadores, sem beleza alguma para que fosse desejado. Isaías cujo nome tem parecenças no sentido do de Jesus, «o Senhor salva», é talvez por essa razão considerado o «Dante da poesia bíblica».
Sendo considerado o primeiro dos evangelistas, viu o Amor de Deus a entrar solene com corpo no mundo antigo, a estabelecer a era da Graça. Estabeleceu na sua profecia uma moralidade transmitida por palavras poéticas e uma ética na sua narrativa que apontava os erros e o futuro de Israel e retratou quase um milénio antes o percurso evangélico de Jesus Cristo, do Advento à Cruz, com uma poética da Graça divina.  ©

A PRIMEIRA FRASE PERFORMATIVA NA BÍBLIA

A PRIMEIRA FRASE PERFORMATIVA NA BÍBLIA

JTP27

© João Tomaz Parreira

Não existia ainda o homem, mas Deus preparou tudo para o receber, a partir da Sua linguagem. É esta, a linguagem, e o pensamento que distinguem o homem, criado por Deus, das outras criaturas animais.

“Então Deus disse: “Que a luz exista!” E a luz começou a existir” (Génesis, BPT).

Experimentar ler esta estrutura sintáctica, ou dito de um modo mais acessível, narrativa breve do início do primeiro capítulo do Génesis, apenas como uma narração simples para uma sequência de acontecimentos, como se de uma “reportagem” se tratasse, é não perceber o alcance teleológico da frase.
É óbvio que os modernos instrumentos da Linguística nos permitem hoje outras análises bíblico-gramaticais.
O ateísmo poderá ver ali uma explosão, um “big bang” que originou os mundos a partir da luz. O crente pode ver um enigma, sim, mas enigma revelado de Deus Criador. Os críticos do Velho Testamento, teologia e ciências da linguagem à parte, ainda assim tomarão a diegese da frase como uma metáfora de uma vontade que é do domínio do Invisível.
Poderíamos resumir, para os que contestam, a uma observação de um filósofo idealista como Wilhelm Dilthey (1833-1911) : “A religião, a mística precede a filosofia”.  E a linguística, também. Deus começou também a gramática da língua. Aquela fala divina é uma frase seminal.
A expressão imperativa do Criador poderia ter ficado apenas retida na actividade mental de Deus, mas o pensar divino teve uma acção correspondente. E toda a Bíblia é a Acção de Deus interveniente na Humanidade e na História do Homem.
Ver uma significação onde outros vão ver apenas um acontecimento, é também a lição da Semiologia sobre aquela primordial afirmação divina.

Foi um filósofo inglês, John Austin (1911-1960) que teorizou sobre o acto da fala, uma função da linguagem que baptizou de “performativa”. Isto é, “quando dizer é fazer”.
A sua obra mais significativa “How to Do Things with Words (Como fazer coisas com palavras), ajuda-nos a perceber aquela sublime linguagem performativa de Deus.
A frase divina não foi uma expressão de constatação, foi afirmativa e criadora. O que disse fez-se. É a característica da frase performativa que, depois, as instituições do homem começaram a utilizar.  Exemplo? No casamento: “Vos declaro marido e mulher”, ou no tribunal: “Condeno a…”
Até àquele momento do princípio do livro do Génesis, momento que desconhecemos, quer no cronos quer no kairós, e nenhuma ciência apenas a teologia pode descortinar, havia trevas. A terra estava sem forma, vazia, sem ordem. “Era um mar profundo coberto de escuridão” (BPT)
A emissão linguística do Criador, expressão das ciências da Linguagem, não se limitou apenas no dizer, pelo contrário, criou. A constatação veio depois do que foi feito. Hoje, e provavelmente muito antes, dir-se-ia que a expressão é mágica e encantatória.
Aliás, todos os momentos originais da Criação, no que concerne ao Universo,  que lemos no Livro do Génesis numa progressão encantatória, surgiram da palavra performativa de Deus.  “Depois Deus disse: “Que exista um firmamento entre as águas, para as separar uma das outras” (vs.6).  Há uma correlação entre o que foi feito e por que meios, a palavra performativa divina deu origem à palavra da constatação: “Deus chamou céu a este firmamento” (vs.8)
Todos (quase todos) os versículos do capítulo 1 do Génesis começam pela expressão, que traduz a acção performativa da linguagem do Senhor, “Depois Deus disse”; “Deus disse então”.
Quando leio este Princípio vem à minha mente a cor, as cores do Cosmos, e penso com o ouvido no pedido do tenor na ópera Tosca, de Puccini: “Dammi colori” e depois “Recondita armonia di bellezze diverse!”
A harmonia de beleza diversa e inaudita que ocorreu depois de cada frase performativa de Deus.

O que se tem vindo a dizer, a partir das ciências da linguagem, é que há certos enunciados que têm a capacidade de realizar, e no que corresponde ao Criador não só expressar uma vontade, mas realizar um acto criador. O próprio facto de enunciar, já em si mesmo produz o enunciado.
Por fim, quando Deus foi dizendo em cada acto criador, do que acabara de fazer que era bom ( “E Deus achou que eram coisas boas” (BPT), a sua frase verificativa expressou uma atitude metafísica de satisfação, de gozo divinal, de alegria por fazer existir coisas que têm e iriam ter sentido, designadamente para o Homem que Deus iria criar adiante.
Eu acredito que Deus teve uma atitude lírica em tudo que criou e a sua palavra criadora foi, acima de tudo, poética. O Belo não se cria a partir da fealdade de um discurso. O arquétipo da criação divina foi a Beleza na voz e no verbo de Deus.

Aveiro, 04/02/2018

OS CÂNTICOS DOS DEGRAUS: O CLIMAX DE UMA ESTRUTURA POÉTICA

OS CÂNTICOS DOS DEGRAUS: O CLIMAX DE UMA ESTRUTURA POÉTICA

JTP25

© João Tomaz Parreira

Os “Cânticos dos Degraus”, ou Salmos de peregrinação, fazem parte do Saltério como uma das chamadas colectâneas menores. São os salmos das ascensões, das romagens, ou da procissão ao Santuário (120-134).

O código do uso destes salmos, o seu sentido desde o destinador( os autores) para o destinatário, estava na aplicação específica de cada um desses escritos, eram usados como hinos litúrgicos, porções das Escrituras que davam alento e traduziam uma experiência do hebreu, particular ou colectiva, com Yahweh. Foram elaborados a partir do Eu poético, o elemento individual, e do Nós, o elemento comunitário, o poeta enquanto indivíduo e enquanto povo, assumindo as suas dificuldades e as suas acções de graças.

Com as particularidades do discurso poético da poesia hebraica bíblica ( e somente esta era conhecida), desde os versos aos paralelismos e ao não uso da rima, não dispensando porém o ritmo do verso medido, toda a estrutura da linguagem acompanhava, dir-se-ia, o movimento ascensional que os Cânticos dos Degraus definiam e propunham.

Estes salmos perfeitos em sua beleza clássica não precisaram de ser longos, embora as ascensões ou as peregrinações fossem, elas mesmas eventualmente longas e por caminhos imperfeitos e a rasarem os abismos.

A ideia senão mesmo a imagem formal de cada um desses 15 salmos é uma subida, o discurso poético vai subindo de tom até um clímax final, quer fonética quer semanticamente.  Como se cada um partisse de baixo e fosse ascendendo em emocionalidade até um lugar alto.

O termo clímax significa um momento de maior intensidade na acção. Todos os quinze salmos dos Degraus traduzem-se numa acção, não são apenas salmos contemplativos ou de louvor estático. Como poesia, mas, também, como uma oração, os Cânticos de Romagem são uma conversa inteligente com Deus.

De todo o conjunto há três salmos que são paradigmáticos neste aspecto, os salmos 121,122 e 123, embora todos os restantes mostrem o mesmo padrão ascensional, os montes, o templo, a alegria, o olhar colocado em Deus, o escape quando os pés vacilam, o dia e a noite como metonímias poéticas do sol e da lua, e outras comparações metafóricas.

Escolhemo-los pelo seu forte impacto inteligível desde a primeira leitura. Sobre eles nos deteremos, com brevidade, como sistemas significantes (a linguagem poética, a antevisão das dificuldades, o sonho do regozijo ao chegar à presença divina  na Casa do Senhor). Cada palavra como que acompanha a ascensão, marca o ritmo da subida.

Salmo 121
Este salmo não introduz, como outros, um imperativo verbal, introduz antes uma inevitabilidade do salmista, o olhar para fora, para o aparente problema: os montes. E uma pergunta que pode indiciar perplexidade, é, normalmente, da dúvida que partimos para uma certeza. O primeiro verso, onde se averigua a dificuldade, e a questão colocada, não rompem com a Aliança com Jeová, e o poeta que questiona, ele mesmo dá a resposta que vem do seu coração. Ele olha para dentro de si próprio e aí estão todas as respostas: a identidade de onde provem o socorro e as capacidades inefáveis de quem socorre. Desde aqui até ao verso 8 há um claro clímax, uma ascensão, que culmina: “O Senhor guardará a tua entrada / e a tua saída, desde agora e para sempre”. A dúvida inicial transforma-se numa afirmação de certeza. O peregrino sabe agora  o favor divino com que pode contar.

Do ponto de vista da chamada psicologia social ligada à semiologia, este salmo está carregado de sinais ( do grego sémêion), e cada um deles desde os montes, o sol e a lua, os pés que podem resvalar, o subentendido abismo, fornecem todo o pano de fundo para a compreensão do poema como um lenitivo para uma subida que se mostra árdua, mas com final feliz.

Salmo 122

No primeiro verso deste Salmo, parece que o clímax está no início. Reproduz o contentamento espiritual, a emoção palpável de David, que nos diz numa versão comum da Bíblia Para Todos (BPT): “ Que alegria quando me disseram vamos ao templo do Senhor”. É um salmo de peregrinação sobre o Templo. Antevê, no princípio da subida, a majestosa visão da Casa do Senhor, em Jerusalém.
Curiosamente, o salmo 122 introduz no saltério uma percepção de movimento: “Já estamos mesmo a chegar às tuas portas, Jerusalém”.

De acordo com Hermann Gunkel (Alemanha, 1862-1932), o salmo 122 é um dos mais paradigmáticos no que concerne à peregrinação ou à romagem. Esse estudioso das civilizações do Egipto e da Mesopotâmia e das suas ligações com os Salmos, enquanto poesia hebraica, “recapturou o valor dos salmos”, não apenas como literatura, mas sobretudo como parte da Bíblia Sagrada, designadamente a Bíblia Hebraica ou Tanakh, integrando os chamados “Escritos” ou Kethuvim

É um salmo onde de igual modo se prescreve uma obrigação: “É lá que vão as tribos, as tribos do Senhor, para cumprir a obrigação de Israel.”.

Salmo 123

Este é um dos mais pequenos cânticos na sua estrutura formal linguística, nas versões das nossas Bíblias tem apenas 4 versos. Neles se salienta, apesar da sua brevidade, o olhar do peregrino e a sua dependência dos favores divinos.

Não tem propriamente um clímax observável na estrutura fonética nem na sintaxe. Termina mesmo de um modo que dir-se-ia desalentador, do ponto de vista social e religioso, dando a entender que o autor e todos quantos o acompanham na romagem, “estão completamente saturados com as injúrias dos arrogantes”. Aqueles que à margem dos caminhos da subida vão lançando impropérios desencorajadores aos peregrinos? #

A PROBABILIDADE DE SER POEMA

A PROBABILIDADE DE SER POEMA

JTP23© João Tomaz Parreira

1Ἐν ἀρχῇ ἦν ὁ λόγος, καὶ ὁ λόγος ἦν πρὸς τὸν θεόν, καὶ θεὸς ἦν ὁ λόγος.”

Após séculos de discussão sobre o chamado problema da autoria do Quarto Evangelho, era moda na Alta Crítica dizer que o Jesus de João era o produto de um processo teológico oriundo da própria Igreja Primitiva, querendo negar assim a autenticidade histórica do autor João e do seu acompanhamento do Mestre, como um dos Doze.
A era da crítica acadêmica foi aberta com os trabalhos de K.G. Bretschneider
( 1776-1848) no que concerne a autoria de Evangelho. Bretschneider questionou na sua obra sobre o Evangelho de João a probabilidade autoral (in “Probabilia”).
Um paradoxo para chamar a atenção da própria a autoria apóstólica desse Evangelho, argumentando, pelo menos, sobre a topografia do autor que ele não poderia ter vindo da Palestina. Seguindo Hegel, houve também quem no século XVIII considerasse o Quarto Evangelho como um trabalho de síntese, isto é, do género de tese e antítese. O Evangelho de João foi chamado de “Evangelho Espiritual”, mas nunca um evangelho filosófico, ainda que iniciando-se de um modo que agradaria aos gregos.
Tais discussões sobre a autenticidade autoral estão agora mais serenas. Ainda bem porque podem abrir outros caminhos mais interessantes, deslocando-se para o que parece ser um poema inicial o Prólogo joanino.
É dado como historicamente certo que o Prólogo tenha sido uma necessidade para dar resposta às grandes questões do espírito no que concerne ao Cristianismo versus Filosofias gnósticas do Século I.
Estruturalmente,  ele surge como um prefácio, mas as raízes de um certo lirismo, senão na forma pelo menos na fonética e no ritmo, estão lá.
No início do comentário ao Evangelho Segundo João, o tradutor de “Bíblia – Novo Testamento” e dos “Quatro Evangelhos”, Frederico Lourenço afirma que “o texto grego (o Prólogo) não é um poema”.
De facto, a poesia em língua grega do Século I era, entre outros requisitos da poética,  reconhecida pelas unidades rítmicas, o que não é o caso do 1º verso, mas o nosso ouvido – também afirma FL- reconhece uma certa musicalidade, um certo ritmo pela combinação de algumas palavras. Lido o versículo em causa, quer na língua grega, quer na nossa própria língua, há um ritmo inegável.
No que diz respeito ao texto grego, aprecie-se o primeiro grupo (Ἐν ἀρχῇ ἦν ὁ λόγος) que é combinatório com a última expressão (καὶ θεὸς ἦν ὁ λόγος)  Esta última linha completa a primeira, à qual regressa.
“No princípio era o Lógos / (…) / E era Deus o Lógos”.  Expressão nossa para não fugir à melopeia e à quase poética pelo ritmo. Existe aqui uma unidade rítmica e melódica, uma linha de poema. No fundo o verso (versu, vertere), na sua concepção milenar, acaba por ser uma tautologia, algo que começa e retorna ao ponto inicial, porque verso designa um movimento de regresso.
Contudo, quer este verso inicial quer todo  o conjunto do Prólogo joanino não é, como se chegou a pensar, um poema para agradar ao Gnosticismo. Nem visto apenas à superfície do texto, nem atomisticamente.
Uma quantidade imensa de material riquíssimo é o que encontramos nos primeiros 18 versículos do Prólogo de João.
A “Encyclopedia Americana resume, no que concerne ao Prólogo, várias páginas de douta e vasta bibliografia sobre o tema, e afirma a influência grega que o Evangelista teve, tornando-se evidente que “os primeiros versos são obviamente um poema à maneira dos Estóicos”. É, contudo, uma conclusão que, do ponto de vista da Poética seja ela de Aristóteles ou, posteriormente, de Horácio, não resiste a uma análise, como vimos, dos constituintes do poema. Mais certo será afirmar que o Prólogo se apresenta sob a forma de “um hino cantado na comunidade joanina (em Éfeso?), antes de ter sido colocado como início do Evangelho”.  A beleza e a estética dos primeiros cinco versos (1-5 inclusivé), estão lá, porque abrem as portas da Eternidade para dar passagem ao Verbo ou Lógos que vem até ao Homem, até a pungência do Tempo.

© João Tomaz Parreira

“Bem-aventurada aquela que te concebeu e os seios que te amamentaram!”

“Bem-aventurada aquela que te concebeu e os seios que te amamentaram!”

SamuelPinheiro 2017abril11

Palavras de uma mulher dirigidas a Jesus, a respeito da sua mãe Maria.
Jesus de uma forma surpreendente, mas sem deixar de ser cortês e amável, alargou esta declaração e bem-aventurança a todos os que ouvem a palavra de Deus e a guardam: “Antes bem-aventurados os que ouvem a palavra de Deus e a guardam!” (Lucas 11:27,28 – JFA).
Numa outra ocasião alguém avisa Jesus que Sua mãe e Seus irmãos estavam do lado de fora, procurando falar-lhe. Jesus responde com uma pergunta e com uma declaração com o mesmo sentido: “Quem é minha mãe e meus irmãos? E, estendendo a mão para os discípulos, disse: Eis minha mãe e meus irmãos. Porque qualquer que fizer a vontade de meu Pai celeste, esse é meu irmão, irmã e mãe.” (Mateus 12:46-50 – JFA).
Numa das suas últimas conversas com os discípulos Jesus diz-lhes e a nós também: “Vós sois meus amigos, se fazeis o que eu vos mando.” (João 15:14 – JFA). E o que é que Ele manda: “O meu mandamento é este, que vos ameis uns aos outros, assim como eu vos amei.” (Mateus 15:12 – JFA). “Isto vos mando, que vos ameis uns aos outros.” (João 15:17 – JFA).
O mandamento síntese de toda a lei, e a essência da natureza divina na qual fomos formados à Sua imagem e semelhança e da qual nos apartámos em rebeldia que ainda hoje permanece e entra pelos olhos dentro, é o amor.
Não é o amor que nos salva. Mas é Deus que é amor, em Jesus Cristo – Deus entre nós também como Homem, que nos salva mediante a expressão suprema desse amor que é a Sua morte em nosso lugar na cruz. Nenhum outro morreu por nós ou podia sequer morrer. A nossa morte não poderia ser redentora porque todos, sem exceção, pecamos. Só Aquele que nunca pecou e em que o amor é uma constante absoluta e santa, sem qualquer contaminação, nos podia salvar e nos salvou. Em Jesus somos salvos para amar.
Um intérprete da lei interpelou Jesus acerca de qual é o grande mandamento da lei. A esta pertinente questão Jesus respondeu: “Ouve, ó Israel, o Senhor nosso Deus é o único Senhor! Amarás, pois, o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todo o teu entendimento, e de toda a tua força. O segundo é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo.” Diante desta resposta o teólogo que sabia muitíssimo menos do que Jesus, mas sabia o suficiente da lei para perceber que o Mestre estava certo, assumiu: “Muito bem, Mestre, e com verdade disseste que ele é o único, e não há outro senão ele; e que amar a Deus de todo o coração, de todo o entendimento e de toda a força, e amar ao próximo como a si mesmo, excede a todos os holocaustos e sacrifícios.” Na narrativa deste evangelho a conversa acaba de um modo muito significativo mas não totalmente satisfatório. Jesus declara ao religioso: “Não estás longe do reino de Deus.” (Marcos 12:28-34 – JFA). Estava perto, mas não fazia parte. Conhecia a letra da lei, mas não conhecia o coração de Deus. O que faltava era determinante: o amor de Deus manifesto a Seu favor quando Jesus morresse na cruz também a Seu favor. Só Jesus nos pode salvar. Jesus na cruz é o holocausto e o sacrifício perfeitos e definitivos. Somos amados para poder amar de verdade e em verdade! Nada mais é preciso!
Se amamos a Deus desta forma cumpriremos os primeiros três mandamentos da lei: “Não terás outros deuses diante de mim. Não farás para ti imagem de escultura (…). Não as adorarás, nem lhes darás culto (…). Não tomarás o nome do Senhor teu Deus em vão (…).” (Êxodo 20:1-7 – JFA). Se amamos o próximo como a nós mesmos cumpriremos os restantes sete mandamentos: “Lembra-te do dia de sábado, para o santificar (…). Honra a teu e a tua mãe (…). Não matarás. Não adulterarás. Não furtarás. Não dirás falso testemunho contra o teu próximo. Não cobiçarás (…).” (Êxodo 20:8-17 – JFA). Amando a Deus só a Ele adoraremos e louvaremos. Só a Ele teremos como Senhor e como Salvador. E esta é a parte decisiva para entrarmos no Seu reino: recebermos da Sua parte o perdão de todos os nossos pecados, porque todos ficamos aquém da Sua vontade e não temos como em nós próprios de regressar à condição com que fomos criados, e mais do que isso a sermos filhos de Deus. Tudo isso só é possível em e por JESUS CRISTO! Tudo isto para vivermos em amor como o nosso Criador e Pai.

Samuel R. Pinheiro
www.deus-e-amor01.webnode.pt
www.jesus-o-melhor.com