A Mulher Samaritana – I

A Mulher Samaritana – I

João 4:3-8

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Deixou [Jesus] a Judeia e foi outra vez para a Galileia e era-lhe necessário passar por Samaria. Foi, pois, a uma cidade de Samaria chamada Sicar, junto da herdade que Jacob tinha dado a seu filho José. E estava ali a fonte de Jacob. Jesus, pois, cansado do caminho, assentou-se assim junto da fonte. E era isto quase à hora sexta. Veio uma mulher de Samaria tirar água; disse-lhe Jesus: “Dá-me de beber.” Porque os seus discípulos tinham ido à cidade comprar comida. (João 4:3-8)

Esta é uma narrativa muito conhecida dos cristãos e acaba por ser muito citada pelos ensinamentos que encerra. Podemos classificar as narrativas literárias em três categorias:

Mitológicas, em que o que importa na narrativa não é a historicidade dos factos mas as lições que a história contada nos transmite. Um bom exemplo é a história de Adamastor que se encontra em Os Lusíadas.

Heróicas, em que a história gira em torno de um herói alçado à categoria de um portento. Em muitos dos casos, os factos em que ele intervém ou são exagerados ou envolvidos em muita ficção. É o caso das histórias de Robin dos Bosques.

Histórias, em que se procura ser o mais fiel à realidade histórica, ainda que o narrador lhe transmita um cunho literário ou seleccione os factos que mais lhe interessam. Como exemplo, temos as histórias das grandes navegações, explorações ou descobertas de algum tipo.

Embora podendo haver numa dada narrativa características de uma outra categoria, toda a narrativa insere-se num destes grupos e é classificada consoante os traços mais marcantes da respectiva categorização.

Estes três tipos surgem em qualquer literatura, na bíblica inclusive. Esta história do encontro entre Jesus e a samaritana apresenta todas as características de narrativa histórica porque tudo quanto ela descreve é passível de ser verosímil. Nada há, portanto, nela que nos permita afirmar que não possa ter acontecido.

Como encaramos uma narrativa? Só pelo prazer da história contada? Por causa das lições que encerra? Porque nos interessam os seus aspectos simbólicos ou estilísticos? A verdade é que todo o autor de qualquer narrativa tem sempre uma finalidade em vista. Muitas vezes percebemos essa intenção e finalidade pelas opções que tomou em relação à descrição dos factos. Ora, o evangelista João revela a finalidade com que escreveu o seu evangelho em que esta narrativa se insere. Em João 20:21, declarou: Estas coisas foram escritas para que creiais que Jesus é o Cristo e para que crendo tenhais vida em Seu nome. Nesta sua declaração, detectamos duas intenções: 1) para creiais que Jesus é o Cristo; 2) para que tenhais vida em Seu nome.

Estando esta história integrada no evangelho de João, então é de esperar que nela encontremos os elementos que nos conduzem à finalidade pretendida pelo autor, o que nos indica que esta história pretende levar o leitor a crer que Jesus é o Messias e, crendo n’Ele, tenha a vida eterna. Podemos encontrar esses elementos na narrativa em si, nos discursos e nos acontecimentos ou em algum carácter simbólico ou com carga simbólica declarada ou implícita. De facto, a uma análise mais apurada, encontramos tudo isso nesta narrativa.

Conhecer a história é bom, como é positivo saber reconstituí-la ou reformulá-la, mas ficar por aí é ficar apenas no primeiro degrau, é ficar apenas à porta da entrada deste magnífico monumento literário e doutrinário.

Comecemos por estabelecer alguns paralelismos com a história de Nicodemos que encontramos em João capítulo 3.

 

Nicodemos

Samaritana

Homem Mulher
Designado pelo nome – Nicodemos, que significa “povo vitorioso” Desconhecemos o seu nome
Instruído Simples
Religioso Leiga
Judeu Samaritana
Pertencente à classe dominante Plebeia
Cumpridor da Lei Moisaica Praticante de um culto sincrético
Pensamento complexo Pensamento simples, pouco elaborado
Duvidoso Vencida pela convicção
Procurou Jesus Procurada por Jesus
Encontro à noite Encontro à tarde

 

Ambos mostram interesse no que Jesus declara, ambos dialogam com Jesus, ambos suscitam de Jesus afirmações poderosas e de extrema importância.

Esta narrativa principia de uma forma interessante. No versículo 4, lemos que “era necessário que Jesus passasse por Samaria”. O Seu destino final era a Galileia mais a norte e Jesus, que partia da Judeia, poderia ter escolhido um outro caminho, mais longo é certo, mas que não atravessasse Samaria. No entanto, foi por aí que Ele se dirigiu. Há então implícita uma intenção da Sua parte, podendo nós concluir que Ele tinha interesse em cruzar território samaritano.

O versículo 9 explica que Judeus e Samaritanos não se comunicavam por causa da grande rivalidade e inimizade existentes entre ambos. Todos sabiam desses atritos, mesmo que alguns já nem soubessem justificar a sua origem. Na medida do possível, um Judeu evitava o contacto com um Samaritano e vice-versa. Essa situação explica o assombro da mulher que ao pedido de Jesus Lhe responde como é que Ele, sendo judeu, se atreve a dirigir-lhe a palavra, pedindo de beber? A sua primeira reacção foi, natural e justificadamente marcada pela animosidade mútua existente, não apenas de estupefacção mas de agressividade, sem dúvida, numa atitude defensiva porque no seu imaginário “de um Judeu não se sabe o que esperar”.

Mas é curioso notar que à medida que o diálogo se vai travando e o gelo inicial se vai quebrando, a atitude da mulher vai-se alterando e isso verifica-se nos designativos como vai tratando Jesus. Sem embarcar no mesmo tom agressivo, mas mantendo uma postura pedagógica e gentil com o seu pedido de ela Lhe dar água, Jesus desperta-lhe a curiosidade ao afirmar (v. 10) que se ela conhecesse o dom de Deus, Ele lhe daria uma água que é viva. Ante essa afirmação, a samaritana reconhece-O como maior do que o patriarca Jacob (v. 12) porque como pode Ele dar tal água se não O vê com instrumentos capazes de a fornecer? Sem mudar de tom, Jesus desperta-lhe o desejo, anunciando (v. 13) que se ela bebesse da água que lhe disponibiliza, ela não teria necessidade de ir de contínuo ao poço. Detectamos isso no versículo 15 em que a mulher expressa o desejo de receber essa água para nunca mais ter sede nem ter de se deslocar ao poço, o que revela a sua ambição de uma vida melhor.

Numa aparente alteração inusitada do tema da conversa, no seguimento do pedido de que fosse chamar o marido, a samaritana é confrontada com a declaração de Jesus de que não só ela tivera cinco maridos como o homem com quem vivia no momento não era seu marido. Não a conhecendo e sem ela Lhe ter revelado qualquer pormenor da sua vida íntima e do seu estado civil, eis que aquele homem maior que o patriarca Jacob lhe desvenda todo o seu passado. E a conclusão surge-lhe imperiosa: este só pode ser profeta (v. 19).

Talvez para se escusar a dar mais pormenores sobre a sua vida, a mulher toma a iniciativa de iniciar um outro tema de carácter teológico que de certeza, pela sua natureza, interessaria a um profeta e que talvez também a atormentasse, querendo obter uma resposta de um homem de Deus que ela tomaria como definitiva quanto à validade das suas práticas religiosas. “Em qual destes montes devemos adorar? Onde se encontra a verdade: em Gerizim ou em Jerusalém?” Sem se deixar envolver numa discussão que se tornaria árida e certamente aumentaria as barreiras então existentes entre os dois povos, a resposta de Jesus deixa claro que independentemente do local onde o adorador se encontra, Deus quer ser adorado por quem O procura e por quem se deixa buscar por Ele. Ante esta afirmação, talvez a medo, no espírito da mulher surge a hipótese de aquele homem ser talvez o Messias porque apenas o Messias tem a capacidade de conhecer todas as respostas (v. 25) e a resposta que aquele judeu lhe dá tem todas as características de uma resposta vinda do Messias.

A resposta de Jesus a esta afirmação da samaritana surge no versículo 26: “Eu o sou, eu que falo contigo.” Jesus assume sem rodeios e de forma clara, explícita e inequívoca ser o Messias, essa figura profética anunciada desde o jardim do Éden. Sendo a primeira vez, em mais lado nenhum dos relatos evangélicos volta a assumir de uma forma tão clara e indubitável que é o Messias.

A reacção da samaritana a esta confissão reflecte a sua convicção que a leva a abandonar o cântaro (abandono esse com uma carga profundamente simbólica) e corre a dar a notícia aos seus patrícios, esquecida de qualquer animosidade que estes pudessem ter para com ela devido ao seu estado civil. O seu anúncio, no versículo 29, induz por seu turno uma resposta dos outros aldeãos que, duvidosos ou não, acodem a ouvir o que Jesus tinha para lhes dizer e perante as afirmações do Nazareno concluem que a convicção da mulher face àquele judeu estava certa – agora podiam crer que Ele era o Messias, em resultado de um encontro pessoal e não apenas baseados num testemunho (v. 42).

Vemos então que neste diálogo tanto com a samaritana como com os outros aldeãos há um movimento em crescendo de conhecimento, de convicção, de aceitação e de compromisso.

Entre os diversos comentadores bíblicos, há uma tendência para considerar a samaritana como uma mulher promíscua e isso com base no facto de ter tido cinco maridos e de viver à época com alguém com quem não contraíra laços de matrimónio. Mas mesmo que o fosse, esta história mostra que ninguém está longe ou impedido de chegar ao conhecimento e ao desfrute da verdade. E mais: que por intermédio da sua interacção dialogal com Jesus, grandes verdades foram comunicadas não somente a ela mas a todas as gerações posteriores. Basta reparar nas grandes verdades com que entramos em contacto nesta história e que descortinamos em resultado da análise das respostas que ela vai recebendo da parte de Jesus.

E porque é ela considerada promíscua por alguns? Por duas razões:

1. Por causa da hora do calor a que fora buscar água. O texto diz-nos (v. 6) que era quase à hora sexta, isto é, ao meio-dia, hora de intenso calor.

2. Porque tivera cinco maridos e o homem com quem vivia não era seu marido (vv. 17,18)

Note-se que, sem concordar com a situação civil da mulher, não há uma palavra de condenação da parte de Jesus que em toda a cena rompe e quebra todos os tabus culturais e religiosos de então.

A verdade é que não sabemos a razão de ela ter tido cinco maridos. Terão morrido? Foram eles que tomaram a iniciativa de se divorciar dela? E aquele com quem vivia, quem era? Seu remidor, à semelhança da história de Rute? Ou tratava-se de uma “amizade colorida”? Não sabemos e qualquer juízo de valor não passa de especulação porque o texto é completamente omisso às razões da sua situação. É evidente que também se pode especular em sentido contrário. Para ter tido tantos maridos, seria bonita ou mulher de posses para tantos homens quererem viver com ela. E promíscua porquê? Afinal, se os cinco haviam sido seus maridos, foram-no todos num quadro legal. É evidente que também não se pode negar a hipótese de ela não ser um exemplo de integridade moral mas para sermos honestos na interpretação teremos sempre de declarar que essa é uma hipótese. O que sabemos com rigor é que ela viveu vários matrimónios e no momento do encontro com Jesus não se encontrava casada.

O que sabemos também é que de repente, no meio da conversa do “dá-me de beber”, “não tens com que a tirar”, “o poço é fundo”, “és maior que Jacob?”, “dá-me dessa água”, Jesus faz um pedido que aparentemente nada tem que ver com o assunto “da água do poço” e do seu correlativo “água que nos faz saltar para a vida eterna”: “Vai, chama o teu marido e vem cá” (v. 16). Que podemos concluir deste pedido que quase nos atrevemos a considerar uma ordem?

Jesus queria que ela se apresentasse com uma confissão de compromisso com o seu marido, com o seu senhor: “Vai, chama e vem.” Ao regressar com o suposto marido, ela estaria a reconhecer o seu compromisso com o homem com quem vivia.

Aqui, temos de perceber quem eram os Samaritanos e como funcionavam eles em termos religiosos. Se formos a Oseias e a 2 Reis 17:24-31, encontramos algumas pistas não só para esta questão mas para a razão de ser do pedido de Jesus.

Recordemos que Oseias recebe de Deus a ordem de se consorciar com uma adúltera (Oseias 3:1), que funciona como a situação então existente entre Deus e o Seu povo, que trocara o Senhor por outros deuses. Ou seja, Deus está atento aos desvios do Seu povo, mas isso não O impede de querer estar desposado com ele. Não que queira prostituir-se com ele mas porque quer arrancar o Seu povo ao domínio da idolatria e elevá-lo ao patamar da comunhão plena e satisfatória com quem é triplamente santo. Essa foi sempre e continuará a ser a atitude do nosso Deus, que deve ser proclamado como um Deus santo mas que ama de forma intensa até aqueles que Lhe viraram as costas ou que misturam no seu altar fogo estranho.

Em 2 Reis 17:24-41, vemos o início da formação do povo samaritano. O rei da Assíria enviou para Samaria cinco grupos de povos, cada um com os seus deuses e práticas religiosas e aí instalaram-se, misturando-se com o povo da terra. Dessa mistura surgem os Samaritanos que, embora mantendo as tradições e os estatutos da Lei de Moisés, as misturavam com os novos cultos.

Veja-se o versículo 33: “Assim que ao Senhor temiam e também aos seus deuses, segundo o costume das nações, de entre as quais tinham sido transportados”, ou seja, os grupos que o rei da Assíria enviara para Samaria. Para se distinguirem dos Judeus e evitarem a ida ao templo de Jerusalém, os Samaritanos erigiram o seu próprio templo no monte Gerizim, aquele a que a samaritana se referiu em João 4:20, exactamente no seguimento do pedido de Jesus de ela ir buscar o seu marido.

Ora, se lermos com atenção 2 Reis 17:30-31, verificamos que além do templo de Gerizim, os Samaritanos tinham outros cinco santuários dedicados a deuses estranhos. E repare-se também (v. 32) que os sacerdotes em Gerizim eram escolhidos entre os mais baixos, ou seja, eram escolhidos os que tinham fraca preparação teológica.

Podemos ver aqui um paralelismo entre a samaritana e a situação espiritual do seu povo, como se Jesus estivesse a dizer que a situação dela em nada diferia do seu povo – eles tinham 5 deuses, ela tivera 5 maridos; apesar de terem um templo em Gerizim, não tinham um compromisso firme com Deus Iavé. Tal como o seu povo, a samaritana não tinha também um compromisso firme com o homem com quem vivia. Daí a conclusão plausível de que Jesus queria levar a samaritana a ver concretizada em si a afirmação de Oseias 2:16: “E acontecerá naquele dia que me chamarás meu marido e não me chamarás mais meu Baal.”

Repare-se que Jesus começa o diálogo pedindo água para beber. Pede como homem, pois está cansado do caminho e com sede. Ao fazê-lo, identifica-se como qualquer um de nós. Ele compreende os nossos problemas, ansiedades e necessidades. Mas vai mais longe e desfaz as barreiras existentes entre os homens, sejam elas religiosas, étnicas, morais ou sociais. Ele não está aqui para perpetuar as nossas diferenças mas para unir o que estava separado e dividido. Disso é exemplo o grafismo da cruz que estabelece uma ponte entre o céu e a terra e também entre o ocidente e o oriente. Sem exagero, podemos afirmar que na cruz Ele é a ponte de toda a nossa geografia humana, individual ou colectiva.

No versículo 10, vemos que, partindo de uma necessidade física, Jesus leva a mulher à descoberta de uma realidade espiritual. E o que Ele oferece é algo de vivo e permanente e que, ao contrário da água física, não se esgota mas torna-se disponível a todos através de quem a bebe. Ou seja, primeiro pediu mas agora oferece. E o que oferece supera a oferta que a mulher Lhe entregasse. Assim é também connosco: pede uma vida destroçada e oferece uma vida com sentido, pede um ladrão e transforma-o numa pessoa honesta, pede um pecador e dá em troca um santo.

Aparentemente, a mulher não entende o alcance desta oferta porque insiste nos aspectos físicos: “Onde tens essa água?”, “O poço é fundo”, “Não tens balde para a tirar.” E continua agarrada às tradições herdadas dos antepassados.

O versículo 12 dá conta da sua estupefacção e incompreensão: “És tu maior que o nosso pai Jacob?” E repare-se na continuação da sua argumentação: “[nosso pai Jacob] que nos deu o poço e ele, os seus filhos e o seu gado beberam dele.” Que é como quem diz: “Esta água (e entenda-se a água tanto em sentido físico como metafórico) serviu plenamente os antepassados, serve também para nós.” Como é difícil a quem está tão agarrado à tradição aceitar a oferta nova de Deus!

Repare-se que a água que Jesus oferece é uma água viva, especial, dom de Deus. Não vem do poço, não vem da tradição, mas vem do dom de Deus. E esse dom é a pessoa de Jesus. Como nos deveriam ecoar sempre as palavras de Maria: “Fazei tudo quanto Ele ordenar.”

E curiosamente, aquando da Sua morte, como prova de que facto morreu, do lado de Jesus sai água e sangue – o ciclo encerrara-se e agora pelo sangue e pela água temos entrada na comunhão plena com Deus. Esse é o caminho – arrependimento e expiação do pecado pelo sacrifício oferecido pelo próprio Salvador, a água que sacia inteiramente a nossa alma.

Soli Deo gloria!

C. Ourique, 3.Maio.2022

O Prólogo Joanino – II

O Prólogo Joanino – II

João 1:1-18

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 Dr. Jorge Pinheiro

 

Como vimos na última exposição, João utiliza o conceito grego de Logos para se referir à Palavra de Deus. Como judeu que era, João conhecia Génesis 1:1 e sabia que no princípio Deus criara os céus e a terra. Também sabia que a primeira coisa que Deus fizera foi falar, foi usar a palavra. João sabia que a Palavra de Deus era criadora e poderosa e representava o próprio Deus Iavé, porque era através dela que todo o universo podia conhecer a vontade de Deus e por meio dela conhecer o próprio Deus.

Esta ideia de resto está presente em todo o Prólogo que termina identificando a Palavra de Deus com a pessoa de Cristo. Daí afirmar que “o Verbo se fez carne” (v. 14) e que: “o Filho Unigénito [Jesus] que está no seio do Pai tornou Deus conhecido.” (v. 18).

Por esse motivo, não está descabido afirmar que Jesus é a Palavra, ou melhor dizendo, é a Palavra de Deus tornada ser humano.

O Prólogo fala assim da origem de Jesus e é interessante notarmos a forma como cada um dos quatro evangelistas se refere às origens de Jesus e relacionar com a intenção de cada um.

 

Mateus apresenta-O como o Rei Messias. Por isso, regista a sua genealogia, entroncando-a em David. Todo o pretendente ao trono tinha de demonstrar a sua ascendência real.

Marcos apresenta-O como servo. Naquele tempo um servo não tinha direitos por ser considerado uma mercadoria descartável. Ora, Marcos não regista qualquer genealogia.

Lucas apresenta-O como um verdadeiro Homem, experimentado nos condicionalismos humanos e a genealogia que Lucas indica entronca no primeiro homem, Adão.

João apresenta-O como Filho de Deus, sem início e sem fim e por isso não tendo Ele genealogia, João não indica nenhuma.

 

Devido a essa característica do evangelho de João, é justo afirmar que a preocupação do evangelista não é tanto a descrição histórica mas uma interpretação teológica da acção, principalmente da pessoa de Jesus, como já havíamos dito.

É por causa deste carácter teológico que não podemos considerar este “No princípio” como uma categoria cronológica, temporal ou histórica. João remete-nos para um momento em que não havia tempo, ou seja, para a Eternidade. De facto, é na eternidade, que não está sujeita ao presente, ao passado ou ao futuro, que vamos encontrar tudo quanto a Ele diz respeito. Como João se refere a esse princípio que era antes de tudo quanto de físico existia, portanto antes de nós mesmos, faz todo o sentido dizer que “no princípio era o Verbo” e não que “no princípio foi o Verbo.” E temos de dizer “era” porque se tivéssemos a capacidade de retroceder no tempo (passado), em qualquer momento em que estivéssemos, encontraríamos sempre o Logos, o Verbo, enquanto se disséssemos “foi o Verbo”, estaríamos a afirmar que num dado momento dessa nossa vagem imaginária o Verbo passou a existir o que equivale a dizer que num momento existia, mas no momento imediatamente anterior, era inexistente.

Se nos ficarmos por uma análise estritamente literária, verificamos que este Prólogo assume um carácter poético que segue o modelo da poesia hebraica. De facto, há uma série de unidades de pensamento que se espalham por subunidades ligadas entre si pela copulativa “e”, em que cada frase acrescenta algo de novo à frase anterior. Vejamos alguns exemplos:

 

No princípio era o Verbo

e o Verbo estava com Deus

e o Verbo era Deus. (1:1)

 

Temos aqui uma unidade de pensamento cujo centro é o Verbo e ela começa com uma afirmação (no princípio era o Verbo) e cada linha acrescenta algo novo à anterior, concluindo com a frase: “ele estava no princípio com Deus.

Temos um segundo exemplo, no versículo 3:

 

Todas as coisas foram feitas por ele

e sem ele nada do que foi feito se fez.

 

A afirmação de o Verbo ser o Criador é reforçada pela frase seguinte.

Num terceiro exemplo, detectamos:

 

Nele estava a vida

e a vida era a luz dos homens

e a luz resplandece nas trevas

e as trevas não a compreenderam.

 

Poderíamos continuar e chegaríamos não só à mesma conclusão como também a que cada unidade de pensamento acrescenta algo de novo à anterior.

Se nos ficarmos apenas por estes três exemplos, teríamos os seguintes elementos que neles surgem:

 

- o Verbo (v. 1,2)

- o acto criador do Verbo

- o Verbo traz a vida

- o Verbo era a luz.

 

Se continuássemos, chegaríamos à manifestação da verdade (v. 17) e à revelação máxima de Deus traduzida em comunhão (v. 18).

Em conclusão, embora poético, o Prólogo não se limita à forma poética mas leva o leitor numa progressão de conteúdo. Podemos dizer que é uma poesia que não preferencia o lirismo, ou seja, os estados de alma, mas apresenta-se profundamente apologética. Nela, há um crescendo interligado de acção e caracterização do Verbo, da Memrah, do Logos, da Palavra de Deus, que culmina na Encarnação (v. 14) e na Comunhão (v. 18).

Numa análise mais apologética, podemos encontrar seis secções neste Prólogo:

 

1. O Verbo e a Deidade (v.1)

O primeiro predicado do Verbo é a sua identificação com Deus Iavé. Por isso, podemos dizer que entre os designativos “divindade do Verbo” e “deidade do Verbo”, é preferível esta última expressão porque é ela que está no pensamento joanino. É que enquanto “divindade” se reporta ao qualificativo divino, já “deidade” assinala não a qualidade de ser divino mas a de ser idêntico a Deus. Assim, deste primeiro versículo, podemos concluir que aquilo que Deus é, o Verbo também o é. Se Deus é eterno, criador e pessoal, então o Verbo também é eterno, criador e pessoal, pelo que João nos diz que o Verbo é co-igual de Deus.

 

2. O Verbo é criador (vv. 2,3)

Naturalmente sendo co-igual de Deus e sendo Deus criador, então o Verbo também o é. Daqui uma conclusão se impõe: no evangelho de Cristo não há lugar para o panteísmo! Embora tendo a marca do dedo de Deus, a Natureza não é Deus porque foi criada por Ele. Logo, não é sua co-igual.

João não está sozinho na afirmação de que o Verbo é Criador. Paulo já o afirmara em Colossenses 1:15- 17: O qual [Jesus] é a imagem do Deus invisível, o primogénito de toda a criação, porque nele foram criadas todas as coisas que há nos céus e na terra, visíveis e invisíveis, sejam tronos, sejam principados, sejam potestades, tudo foi criado por ele e para ele e ele é antes de todas as coisas e todas as coisas subsistem por ele.

 

3. O Verbo é a fonte da vida, sendo por via disso a luz dos homens (vv. 4,5,9)

Estas são afirmações de grande importância. De si próprio, Jesus disse ser a vida e a luz: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (João 14:6). “Eu sou a luz do mundo. Quem me segue não andará em trevas mas terá a luz da vida” (João 8:12). Note-se esta expressão “luz da vida”, em que os dois conceitos estão inseparáveis. Não há vida sem luz, não há luz sem vida.

Recordemos também que o primeiro elemento que surge na criação é a luz: “E disse Deus: Haja luz. E houve luz” (Génesis 1:3). No mundo físico, a luz é indispensável, é essencial. Sem luz, a vida física torna-se impossível e todos sabemos que os seres vivos são atraídos para a luz, o chamado fototropismo. De igual modo, no mundo espiritual, sem luz não é possível haver vida espiritual que no Evangelho é designada por “vida eterna.” Quem não tem, quem não recebe esta luz espiritual permanece em trevas, que o mesmo é dizer que está morto espiritualmente.

Nestes versículos, João vai mais longe e declara (v. 5) que há um antagonismo entre trevas e luz, que as duas não podem coexistir harmonicamente.

 

4. O Verbo manifestou-se ao mundo e aos homens (vv. 10-11)

O termo “mundo” é usado na Bíblia com diversos significados. Pode referir-se a este planeta (João 17:5); ao conjunto dos seres humanos (João 3:16) ou ao sistema ideológico oposto a Deus (João 15:18; 1 João 2:15).

O versículo menciona esse termo por três vezes. Nas duas primeiras, indica o mundo físico, enquanto na terceira, identifica o conjunto dos seres humanos. No versículo 11, João especifica que aqueles entre os quais viveu (“os seus”) não receberam Jesus na sua qualidade de Verbo. Este “os seus” tanto se pode referir à humanidade em geral como mais especificamente ao povo no qual o Verbo nasceu, os Judeus.

 

 

5. O Verbo humanou-se, fez-se carne, fez-se um com os que o aceitam (vv. 12-14)

Nesta secção, temos o momento alto, o clímax da manifestação do Verbo – a sua encarnação. Ao humanar-se, o Verbo não perdeu a sua natureza divina mas reuniu em si as duas naturezas, a divina e a humana, juntando em si aquilo que estava separado pela ocorrência do pecado A Encarnação revela que Deus e o Homem podem estar em sintonia mas que tal só é possível na pessoa de Jesus, o Verbo, e apenas através d’Ele.

O versículo 12 deixa bem claro que a bênção trazida pela encarnação está disponível pela recepção e aceitação da luz e da vida que se encontram no Verbo e que o meio para que tal aconteça é a fé, ou seja, a aceitação incondicional da oferta do Verbo: “Eis que estou à porta e bato”.

 

6. O Verbo reúne em si a Graça e a Verdade (vv. 16-18)

João aponta a manifestação do Verbo entre os homens como o ponto-charneira de encontro entre a graça e a verdade.

Refere a Lei dada por Moisés e contrapõe-na à Graça e à Verdade trazidas por Jesus Cristo.

Qualquer análise honesta da natureza da Lei de Moisés conclui que ela contém a verdade. Tendo Moisés recebido de Deus a Lei, esta conterá necessariamente a verdade, porque Deus é verdade. No entanto, devido ao seu carácter punitivo, podemos dizer sem exagero que a Lei sobrepõe a Verdade à Graça, que fica assim abafada. E embora possa parecer contraditório, a Graça não está totalmente ausente da Lei. E porquê? Porque a Graça define-se como o favor imerecido que recebemos de Deus. E Deus, ao dar a Lei, estava a mostrar que é um Deus gracioso ou misericordioso porque não deixa os Seus sem uma orientação, não deixa os Seus sem o conhecimento da verdade da Sua vontade.

Então, qual é a novidade trazida pela encarnação de Jesus? É que n’Ele, a Graça e a Verdade estão de mãos dada sem sobreposição de uma sobre a outra. Se conhecemos a Verdade, então necessitamos de apreciar e de viver sob e com a Graça de Deus. E se conhecemos e experimentamos a Graça, precisamos de conhecer em pleno a Verdade de Deus. Não podemos viver com uma sem a outra.

É que, como disse alguém, a Verdade sem a Graça é condenatória, enquanto a Graça sem a Verdade é enganadora.

Ora, o único que está em condições de mostrar que as duas, a Graça e a Verdade, são irmãs gémeas e não rivais, é o Logos, a Memrah, a Palavra de Deus encarnada, em suma, a pessoa de Jesus que é a Verdade divina personificada na Graça eterna de Deus.

 

SAC, 22.Março.2022

O Prólogo Joanino – I

O Prólogo Joanino – I

João 1:1-18

 Jorge Pinheiro 7

 

No princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus e o verbo era Deus.

In principio erat verbum et verbum erat apud Deum et Deus erat verbum.

En archê en ó logos, kai ó logos en pros ton theon, kai theos en ó logos. (João 1:1)

 

 

Ao analisar o evangelho de João e em especial o Prologo, é preciso ter em atenção dois aspectos:

 

a. É um texto escrito por um judeu;

b. É um texto escrito para uma sociedade do séc. I profundamente helenizada.

 

Sendo assim, temos de perceber que este é um texto com uma mensagem marcada pelo pensamento hebraico destinada a uma população fortemente influenciada pelas categorias culturais helénicas.

Isso significa que, para captar o que o autor pretende transmitir, temos de ter um conhecimento mínimo da mensagem hebraica e da mentalidade helénica, tanto mais que o texto está escrito em grego.

Chama-se Prólogo ao texto que inicia o evangelho de João e é constituído pelos 18 primeiros versículos do Capítulo 1.

Para o entender melhor, temos de agrupar de um lado os versículos que lidam com o Logos, o Verbo, e do outro os que se referem a João Baptista. Seguindo esta recomendação, o texto seria lido assim:

 

Primeiro, os versículos referentes ao Logos:

1. No princípio era o Verbo [Logos] e o Verbo  [Logos] estava com Deus e o Verbo  [Logos] era Deus.

2. Ele [o Logos] estava no princípio com Deus.

3. Todas as coisas foram feitas por ele [Logos] e sem ele nada do que foi feito se fez.

4. Nele estava a vida e a vida era a luz dos homens.

5. E a luz resplandeceu nas trevas e as trevas não a compreenderam.

9. Ali estava a luz verdadeira que alumia todo o homem que vem ao mundo.

10. Estava no mundo e o mundo foi feito por ele e o mundo não o conheceu.

11. Veio para o que era seu e os seus não o receberam.

12. Mas a todos quantos o receberam deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus, aos que crêem no seu nome,

13. os quais não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do varão, mas de Deus.

14. E o Verbo se fez carne e habitou entre nós e vimos a sua glória como a glória do Unigénito do Pai, cheio de graça e de verdade.

16. E todos nós recebemos também da sua plenitude e graça por graça.

17. Porque a Lei foi dada por Moisés; a graça e a verdade vieram por Jesus Cristo.

18. Deus nunca foi visto por alguém. O Filho Unigénito, que está no seio do Pai, esse O fez conhecer.

 

De seguida, os versículos referentes a João Baptista:

6. Houve um homem enviado de Deus, cujo nome era João.

7. Este veio para testemunho, para que testificasse da luz, para que todos cressem por ele.

8. Não era ele a luz, mas para que testificasse da luz.

15. João testificou dele e clamou, dizendo: “Este era aquele de quem eu dizia: ‘O que vem depois de mim é antes de mim, porque foi primeiro do que eu.’.”

 

Quem está minimamente familiarizado com as Escrituras, não tarda em encontrar um paralelo entre João 1:1 e Génesis 1:1.

Com efeito, ambos os textos começam da mesma maneira: “No princípio” e ambos estão relacionados com algum tipo de criação – o Génesis fala da criação física, enquanto o Prólogo de João refere o início do que podemos designar por uma criação espiritual. Ambos mencionam um início: “No princípio.” Como texto hebraico que é, o Génesis introduz de imediato a presença de Deus, identificando-O como o Criador: No princípio, criou Deus os céus e a terra. Por seu lado, João começa por identificar uma característica da natureza divina: No princípio era o Verbo … e o Verbo era Deus. Ou seja, João não se limita ao aspecto criador de Deus (um Judeu sabia isso) mas refere que Deus é um Deus de relação, de comunhão, que comunica. Podemos também acrescentar que João salienta e reforça a ideia de que Deus é uma pessoa inteligível, uma vez que identifica Deus com o Verbo, com a Palavra. Como sabemos, a palavra é uma das características de quem é pessoa.

Há pelo menos mais dois paralelos entre o Génesis e o Prólogo joanino. Em Génesis, a primeira obra da criação é a manifestação da luz: ”E disse Deus: Haja luz! E houve luz.” (Génesis 1:3). Em João 1:5, lemos. “A luz resplandeceu nas trevas e as trevas não a compreenderam.” Repare-se que Génesis começa por afirmar que “havia trevas sobre a face do abismo.” (Génesis 1:2). Na criação física de Génesis, a luz impõe-se às trevas. João centra-se no aspecto espiritual e não no físico e reconhece o antagonismo entre a luz que o Verbo introduz no mundo e as trevas que imperavam sobre os seus semelhantes: “Veio para o que era seu e os seus não o receberam.” (João 1:11).

O terceiro paralelismo encontramos na criação do Homem: “E disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem e semelhança.” (Génesis 1:26). Por seu lado, João refere que o Verbo se fez carne e habitou entre nós (João 1:14), indicando assim que tal como Adão veio de Deus para ter papel de domínio sobre a criação, assim também nesta nova criação descrita por João, há um que veio de Deus para reinar e que, ao contrário de Adão que falhou embora tendo em si a centelha divina, este novo Adão não pode falhar porque, conforme diz Paulo, sendo espírito vivificante (1 Coríntios 15:45) é do céu porque é a encarnação de Deus.

Dissemos no início que há uma mensagem de origem hebraica que é comunicada por João a um público helenizado, pelo que teve de se socorrer de conceitos gregos para melhor comunicar o que pretende.

Estamos assim perante um processo de tradução. No original grego, João utiliza o termo “Logos” que em Português é traduzido indistintamente como “Verbo” ou “Palavra”. Possivelmente por influência da tradução da Vulgata Latina, “in principio erat verbum”, o termo preferido dos crentes é ”Verbo”. A verdade é que o nosso termo português “palavra” não traduz com rigor o grande conceito grego de “Logos.” Mesmo em Português, o outro termo “Verbo” faz recordar o conceito gramatical de verbo que procura traduzir a ideia de acção, podendo assim levar-nos a pensar na capacidade de argumentação, como sucede na expressão: “Fulano tem um verbo inflamado”, querendo com isso dizer que “Fulano é muito eloquente ou persuasivo.” Ora, o termo “Verbo” enquanto equivalente de “palavra” remete para a capacidade de transmitir e comunicar conceitos ou coisas.

Quanto ao conceito “Logos”, em termos de significado sabemos que evoluiu ao longo do tempo e tornou-se o conceito-chave da filosofia grega. Houve um filósofo helénico que lhe enumerou 17 significados diferentes, entre eles o de “expressão do pensamento pela palavra” e “a capacidade racional de o homem pensar e se exprimir. Aliás, é nesse sentido que no séc. VI a. C., Heraclito usava o termo em oposição ao discurso mitológico que procurava explicar uma série de fenómenos através do mito, recorrendo à intervenção de deuses ou figuras portentosas. Heraclito opôs-lhe o pensamento lógico, baseado naturalmente no Logos, defendendo que há uma razão para a existência das coisas.

Com o passar dos tempos, principalmente entre os Estóicos, o Logos passou a ser considerado como tendo uma essência divina, sendo o princípio criador que se sobrepunha aos próprios deuses (theoi) que mais não seriam que os resquícios do pensamento mitológico.

Ora, João pretende falar de Deus Iavé. Por isso, não pode usar o termo theos (deus) porque a mentalidade helénica iria identificar Deus Iavé como um theos, da mesma qualidade e natureza que todos os outros theoi gregos como theo Zeus ou theo Ares. Isso seria inaceitável para João, porque Iavé, sendo único, está acima de todos os que se intitulam ou são intitulados deuses. Ora, o conceito helénico que mais se aproxima da natureza de Iavé é o de Logos. Por isso João recorre a ele, escrevendo: “en archê en ó Logos – no princípio era o Logos.”

Mas voltando ao facto de que João é judeu e tem em mente os conceitos hebraicos, terá certamente pensado no conceito hebraico de memrah, que se identificava com a palavra emanada de Deus Iavé e que por via disso acabava por na prática se identificar com o próprio Deus.

Como é que um Judeu comunicava com Deus, ou melhor, como é que Deus Iavé se comunicava com o Seu povo em geral e com o judeu individual? Pela palavra. Vemos isso logo em Génesis. Na Criação, qual a primeira coisa que Deus fez? Não foi criar fosse o que fosse, mas foi falar. Com efeito, Génesis 1:3 declara: “E disse Deus…” Repare-se que em todos os outros actos criadores está escrito que “Deus disse…” (Génesis 1:6, 9, 14, 20, 24, 26).

Repare-se também que é essa a fórmula que os profetas utilizam ao anunciar a vontade de Deus: “E veio a mim a Palavra de Deus” ou outra fórmula equivalente (Jeremias 25:1; 46:1; Oseias 3:1; Joel 1:1). A Palavra de Deus ou Memrah acaba por ser para o judeu a própria manifestação de Deus. Assim:

 

ouvir a Palavra é ouvir Deus;

ler a Palavra é ler Deus;

sentir a Palavra é sentir Deus;

respeitar a Palavra é respeitar Deus;

estar na presença da Palavra é estar na presença de Deus;

amar a Palavra é amar Deus.

 

Por isso, também podemos afirmar:

 

A Palavra cria.

A Palavra conforta.

A Palavra cura.

A Palavra consola.

A Palavra converte.

A Palavra salva e transforma.

 

E a conclusão é lógica:

 

Queres ser curado? Lê a Palavra!

Queres ser abençoado? Lê a Palavra!

Queres ser salvo? Lê a Palavra!

Queres viver em vitória? Lê a Palavra!

 

Então, talvez a melhor tradução de João 1:1 fosse:

 

No princípio era a Palavra de Deus [a Memrah] e a Palavra de Deus estava com Deus e a Palavra de Deus era Deus.

 

Em João 1, o Logos a que o evangelista se refere não é a mera palavra que se fala nem a simples capacidade comunicacional, mas a poderosa Palavra de Deus que se fez carne na pessoa de Cristo.

Por isso, quando o centurião disse a Jesus: “Dize uma só palavra e o meu criado sarará” (Mateus 8:8), estava a pedir uma intervenção de Deus ao próprio Deus. De igual modo, quando meditamos na Palavra de Deus, estamos na presença de Deus.

 

 

 

SAC, 15.Março.2022

 

 

O BAPTISMO DE JOÃO – Mateus 21:23-27

O Baptismo de João

Jorge Pinheiro 7

Dr. Jorge Pinheiro

 

Mateus 21:23-27

Perguntou Jesus: O baptismo de João de onde era? Do céu ou dos homens?
Na sequência do episódio em que ordena que a figueira seque por não ter figos. Jesus dirige-se ao templo onde, como era Seu hábito, se põe a ensinar, provocando uma reacção de antagonismo por parte dos responsáveis religiosos que Lhe perguntam com que autoridade exercia o Seu ministério. A isto Jesus responde com uma pergunta e exige-lhes que Lhe digam qual a origem do baptismo de João. Numa atitude de cautela, para não serem apanhados em falso com uma resposta que não contemplasse a verdade, assumem a sua ignorância quanto à origem desse baptismo. Ante isso, Jesus replica que, não tendo recebido uma resposta positiva, não se vê obrigado a revelar-lhes com que autoridade praticava o Seu ministério.

Este é o exemplo típico de um dilema que Jesus enfrentou durante o Seu ministério. Num dilema, temos de escolher entre duas resposta antagónicas e contraditórias ou insatisfatórias para a resolução do problema apresentado. Ou seja, em termos práticos qualquer das respostas que possamos dar está errada. A verdade é que, ao longo da Sua vida, Jesus enfrentou diversos dilemas, sendo talvez o mais conhecido a questão do tributo (Mateus 22:15-21). Quando Lhe perguntaram se é lícito pagar o tributo a César, depois de pedir que Lhe mostrassem uma moeda, Jesus respondeu com uma frase famosa e que muitas vezes tem sido citada fora do contexto: “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”. Poderíamos citar outra situação em que Jesus enfrenta um dilema. Encontramo-la na tentação (Mateus 4:1-11), em que pelo menos duas das três tentações podem ser consideradas dilemáticas. Para além de outras que, a um estudo mais aprofundado poderemos encontrar nos evangelhos, pensamos que o mais emblemático e importante dilema que Jesus enfrentou ocorreu quando estava crucificado: “Se és Filho de Deus, desce da cruz” (Mateus 27:40). Poderia ter descido da cruz? Poderia e essa decisão revelaria ser não apenas o Filho de Deus e o Messias há tanto tempo aguardado. Mas Jesus permaneceu na cruz, cumprindo até ao fim o Seu papel de vítima expiatória e vicária. E garantindo não local mas universalmente, não momentânea mas eternamente que é o Salvador e o Rei dos reis e Senhor dos senhores.

Embora por norma não haja resposta para um dilema e todos quantos o enfrentam fiquem enredados na sua teia, a verdade é que Jesus sempre que confrontado com um deu uma resposta assertiva sem se deixar prender na armadilha. Porque entrar na lógica do dilema é entrar num círculo vicioso de que só se pode sair se “pensarmos fora da caixa”, aplicando o que os especialistas designam por “pensamento lateral”. O pensamento lateral estimula uma nova perspectiva e é isso que o ensino de Jesus nos aponta – perante os dilemas da vida apresentados ou não pelos sistemas que nos governam, há sempre uma nova perspectiva ao nosso dispor e que se obtém com a recomendação de Paulo em Romanos 12:1-2: não nos conformando com este mundo, mas transformando-nos pela renovação do nosso entendimento. E isso é possível porque segundo Paulo, temos a mente de Cristo (1 Coríntios 2:16). Só temos de deixar que a mente de Cristo vá ocupando paulatina e totalmente todo o nosso entendimento. Durante todo o processo, não haverá dilema que não possamos vencer.

Neste episódio, Jesus não enfrenta nenhum dilema mas é Ele quem confronta os seus adversários com um. E ao contrário dos dilemas que teve de enfrentar e aos quais respondeu positivamente, este deixa os seus oponentes sem possibilidade de resposta, porque em qualquer resposta que dessem seriam sempre achados culpados de inconsistência e toda a sua hipocrisia e falsidade seriam desmascaradas. Eles próprios o reconhecem porque se respondessem que o baptismo vinha do céu, seriam acusados de não crerem, eles que eram os profissionais religiosos e defensores da verdade celeste. Se respondessem que o baptismo era de origem humana, veriam a sua posição de privilégio ameaçada porque todo o povo considerava que João era um profeta, logo com uma mensagem e um ministério validados por Deus. Receando as consequências de qualquer das respostas optam por esconder-se atrás da ignorância. O que também não milita em seu favor porque ou não se preocupam com uma questão de primordial importância (o baptismo que apela ao arrependimento e a uma maior comunhão com Deus) ou estão mais preocupados com aquilo que é passageiro – a vanglória do poder humano. E assim a sua própria resposta os condena.

Que João Baptista era profeta a Escritura confirma porque, segundo as palavras de Jesus (Mateus 11:14), foi o Elias profetizado e que surgiria antes do grande e terrível dia do Senhor, conforme anunciara Malaquias 4:5. De resto, João Baptista, interrogado sobre quem era, limitou-se a identificar-se como a voz que clama no deserto, preparando o caminho ao Senhor (João 1:23), em cumprimento da profecia de Isaías 40:3: Voz do que clama no deserto: Preparai o caminho do Senhor; endireitai no ermo vereda a nosso Deus.

É verdade que João surge como uma figura estranha e singular que foge aos modelos tradicionais. Vestido de forma simples e natural, com uma alimentação mais que frugal, escolhendo como palco da sua actuação não o cenário das grandes cidades, mas um local deserto e inóspito que exige aos que o queiram ouvir a terem de deixar o conforto da cidade e aventurar-se num lugar tão pouco hospitaleiro, a sua mensagem e prática manifestam-se com um cunho que foge às exigências normais da religiosidade tradicional. Além de anunciar uma mensagem de arrependimento porque o dia do juízo se aproxima e a vinda do Messias prometido está próxima, João Baptista faz acompanhar a declaração de decisão de arrependimento de um sinal ou prática sensível: um banho ritual. Ou seja, não basta a confissão vocal em que apenas a boca e a voz estão envolvidos, mas a decisão prática de experimentar em todo o corpo essa mesma decisão através da lavagem simbólica nas águas do Jordão.

O banho ou lavagem ritual não era coisa desconhecida entre os judeus, mas ele estava mais destinado aos sacerdotes que tinham de se purificar antes de ministrarem no templo. É verdade que todo o judeu tinha de se purificar antes de oferecer um sacrifício, mas com João Baptista, o baptismo extensivo a todo o que se arrepende abre a todos a possibilidade de também se assumirem como sacerdotes do Deus a quem prometeram servir. Esta ideia central do baptismo de João continua presente no baptismo cristão, o que significa que todo quanto é baptizado em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, se compromete a reconhecer que abandona a sua vida velha de pecado consciente e se entrega de corpo e alma à acção do Espírito de Deus que o conduzirá à prática de uma nova vida de que Cristo é o centro e a quem serve como Seu sacerdote porque, como já sabemos, somos o templo do Espírito Santo.

Ao tempo de Jesus, havia um grupo, os Essénios, que voluntariamente voltavam as costas à cidade e se juntavam em comunidade em lugares desertos e em que os banhos rituais eram praticados com assiduidade. Com toda a probabilidade João terá convivido com eles ou terá sido por eles influenciado, uma vez que, conforme Lucas 1:23, esteve nos desertos até ao dia em que havia de se mostrar a Israel. Por outro lado, a sua zona de pregação e baptismo situava-se num local onde a história prova ter existido uma comunidade essénia ou, pelo menos, com as características desse grupo. Os Essénios cuja prática faz lembrar um pouco os monges que se retiram do chamado século para viver em reclusão ou em local ermo, defendiam a necessidade de uma reaproximação de Deus, através do arrependimento das acções e atitudes que impediam uma vida santa. E a marca visível desse arrependimento e reaproximação eram exactamente os banhos rituais. Mas fosse ou não essénio, João Baptista surge não apenas como o precursor do Messias mas como o anunciador de uma prática e de uma decisão essenciais para que a vontade de Deus se cumpra na vida do crente e se torne visível e efectiva – a exigência do arrependimento. Vemos que essa foi a primeira mensagem de Jesus ao iniciar o Seu ministério: Desde então começou Jesus a pregar e a dizer: “Arrependei-vos, porque é chegado o reino dos céus.” (Mateus 4:17), essa foi a primeira mensagem no dia de Pentecostes. À pergunta da assistência “Que faremos, varões irmãos?”, Pedro responde com toda a ousadia e convicção: Arrependei-vos e cada um de vós seja baptizado em nome de Jesus Cristo para perdão dos pecados; e recebereis o dom do Espírito Santo (Actos 2:37-38). Essa tem de ser também a mensagem da igreja hoje quando anuncia o evangelho: “Arrependei-vos e aceitai Cristo como o único Mediador entre Deus e os homens”. Essa tem de ser a mensagem central para correcção de algum desvio em que entretanto qualquer crente tenha incorrido: “Arrepende-te e regressa ao caminho da santidade.” Essa tem de ser a prática que cada um de nós tem de viver diariamente: aproximarmo-nos arrependidos a Deus, sempre que entramos na Sua presença, gratos porque Ele a ninguém lança fora desde que se apresente a Ele com um coração contrito e arrependido.

Sem dúvida alguma a resposta certa ao dilema de Jesus era que o baptismo de João vem de Deus. E ao responder assim, a pergunta deixa de ser um dilema e passa a ser a confissão de uma verdade que nos abre a porta ao privilégio de sermos chamados filhos de Deus.
A Deus toda a glória!

OS SETE MILAGRES

Os Sete Milagres

Jorge Pinheiro 8Dr. Jorge Pinheiro

 
E Jesus, passando adiante dali, viu assentado na alfândega um homem chamado Mateus e disse-lhe: Segue-me. E ele, levantando-se, o seguiu. E aconteceu que, estando ele em casa sentado à mesa, chegaram muitos publicanos e pecadores e sentaram-se juntamente com Jesus e seus discípulos. E os fariseus, vendo isto, disseram aos seus discípulos: Porque come o vosso Mestre com os publicanos e pecadores? Jesus, porém, ouvindo, disse-lhes: Não necessitam de médico os sãos mas sim os doentes. Ide, porém, e aprendei o que significa: Misericórdia quero e não sacrifício. Porque eu não vim a chamar os justos, mas os pecadores ao arrependimento.

(Mateus 9:9-13)

 

Este é um capítulo que narra uma série de milagres executados por Jesus, a maioria de cura divina.

Não contando com o número indefinido de curas, registadas no versículo 35, podemos concluir que, neste capítulo, estão mencionados sete milagres individuais. Não valorizando nem atribuindo qualquer significado simbólico ao facto de serem sete, há que concluir que num texto tão breve os milagres são o seu tema dominante. E dizemos dominante porque o capítulo não se limita à referência e descrição de milagres, mas inclui ensino e polémica (vv. 12-17; 3-6).

É natural que um milagre suscite admiração e espanto e se torne motivo de discussão e, logicamente, no seu seguimento, de polémica e incredulidade.

Embora haja muitas definições de milagre, potenciadas pelas diversas palavras que o Novo Testamento utiliza para o designar, podemos definir milagre como um acto que desafia e rompe as leis naturais conhecidas à época da sua ocorrência, sejam elas explicadas ou não científica ou empiricamente.

É verdade que, em termos teológicos, esta definição de milagre é pobre e curta, mas de momento ela é suficiente, tanto mais que ajuda a perceber as reacções que os diversos milagres descritos suscitaram.

Há um traço comum em todos estes milagres, inclusive nos de um número indeterminado do versículo 35 – todos eles envolveram pessoas ou, dito de outro modo, em todos eles há pessoas beneficiadas com a acção e o resultado dos milagres. Ao contrário de outras ocasiões no ministério de Jesus em que os milagres, embora impressionando e afectando pessoas, tiveram como alvo elementos da natureza – é o caso da multiplicação dos pães e da tempestade acalmada.

No entanto, mesmo nestes, houve pessoas que, embora indirectamente, são afectadas pelos resultados dos milagres referidos.

Neste capítulo, a maioria dos milagres é de cura. Este simples facto indica que quando o crente roga ou necessita de um milagre, este não se circunscreve apenas à cura física. Sem forçar o texto, podemos afirmar que nos tempos de Jesus, devido ao facto de a medicina não estar tão desenvolvida quanto hoje, um doente ou enfermo estaria completamente dependente de um milagre para o seu restabelecimento físico. Paralelamente e sem desvirtuar o significado e natureza bíblico-teológica do milagre, podemos dizer que, em qualquer época, quando a ciência é impotente para resolver um problema, o crente em Deus tem no Criador o seu último recurso.

Podemos classificar do seguinte modo estes sete milagres:

a) cinco de cura – o paralítico (vv. 1-8); a mulher com hemorragia (vv. 20-22); os dois cegos (vv. 27-32); o mudo endemoninhado (vv. 32-34)
b) um de ressurreição – a filha de Jairo (vv. 18-19; 23-26)

Até aqui, temos seis milagres. E o sétimo qual será? Não pode ser o número indeterminado do versículo 32 por não sabermos quantos foram curados e porque, à partida, por causa disso, os excluímos desta enumeração.

Só nos resta o episódio envolvendo Mateus (vv. 6-13).

É verdade que não se trata de um milagre de cura física, mas isso não impede que o consideremos também um milagre e um milagre de transformação. Transformação de carácter, de modo de vida, de alteração de propósito de vida, de adopção na família de Deus. De facto, Jesus chama Mateus, convidando-o a deixar uma vida obscura, apagada, centrada no imediato, no terreno, muito provavelmente impregnada do engano e da injustiça. Em troca, Jesus oferece-lhe a entrada numa relação directa com aquele que tem as chaves da vida e da morte, com aquele que está acima das contingências humanas, com aquele que não apenas aponta o caminho de comunhão plena com Deus e a Sua vontade, mas que é o próprio caminho.

Trata-se, pois, de um milagre de mudança de carácter e de perspectiva de vida. Quantas vezes nos centramos nas contingências da vida, cuja resolução é justificada e aceitável e nos esquecemos de que acima de tudo, Deus, sem deixar de se interessar pela nossa contingência, está mais interessado em receber-nos em comunhão plena?

Busquemos a resolução dos problemas da nossa contingência, se for esse o caso. Não há mal nesse desejo e procura. Mas não olvidemos nem secundarizemos o nível mais importante – o nosso relacionamento com Deus, baseado e alicerçado na renovação do nosso carácter.

Curiosamente, neste 7 casos, apenas Mateus é mencionado pelo nome. Em relação aos outros, não sabemos como se chamavam. Não podemos afirmar que haja uma intencionalidade da parte do evangelista, mas se repararmos que o autor deste evangelho é o mesmo Mateus chamado por Jesus, podemos considerar esse registo não apenas como uma “assinatura”, mas também como indicação de que o episódio da sua chamada, início da sua transformação como pessoa, marcou-o profundamente. Que o mesmo é dizer que quando temos um encontro com Jesus, esse é um episódio que não somente nos marca como é fulcral no nosso viver, a ponto de querermos que o máximo de pessoas fique a par da nossa experiência de transformação em Cristo.

Neste conjunto de milagres, verificamos que eles atingem áreas fundamentais da nossa condição de seres humanos: o paralítico passa a poder locomover-se; os cegos recuperam a visão; o mudo endemoninhado volta a usar o dom inefável da fala e vê-se liberto da opressão espiritual que o diminuía enquanto ser humano; a filha de Jairo retorna à vida, numa segunda oportunidade de viver. Deus não só é um Deus de segunda oportunidade como intervém nas áreas mais sensíveis da nossa existência. Só isso já seria bastante, mas Jesus vai mais longe no caso da mulher com o fluxo de sangue. Não só lhe restabelece o equilíbrio orgânico, estancando uma hemorragia de doze anos, como lhe franqueia a porta da comunhão no Templo e a liberta de toda a vergonha e humilhação.

Uma hemorragia persistente é uma doença que deixa a pessoa depressiva porque se sente envergonhada e rejeitada. Hoje, há possibilidade de ocultar os sinais exteriores evidentes de um episódio hemorrágico persistente, com o recurso a pensos e tampões. No tempo de Jesus, essa era uma solução quase inviável e sem retorno.

Acresce que, no caso da mulher, a lei considerava-a impura enquanto a hemorragia persistisse e obrigava-a a um período de nojo que se prolongava para lá do momento da interrupção da hemorragia. É o que encontramos em Levítico 15:25 (A mulher, quando manar o fluxo do seu sangue por muitos dias, fora do tempo da sua separação, ou quando tiver fluxo de sangue por mais tempo do que a sua separação, todos os dias do fluxo da sua imundície será imunda como nos dias da sua separação). Pelo código religioso da época, isso implicava que, na sua condição de impura, a mulher não podia ir ao Templo nem toar em ninguém. Para além da vergonha sentida pela sua condição, a mulher via-lhe rejeitada a possibilidade de uma comunhão plena com a comunidade a que pertencia, que o mesmo é dizer que tal situação era sinónimo de exclusão e rejeição.

Acresce ainda que este milagre ocorre quando Jesus é chamado para satisfazer o pedido de Jairo, um dos responsáveis religiosos. Não é Jesus que se dirige propositadamente à mulher, mas é a mulher que se aproxima de Jesus, em quem não apenas vê a solução mas o único que a pode libertar da situação em que se encontrava.

O que nos indica que Jesus não está tão ocupado com os outros que não possa atender a um pedido inesperado e dramático. Porque, mesmo com a multidão a apertá-Lo, Jesus sabia que a mulher Lhe tocara porque, conforme diz Lucas (8:45-46), conheceu que de si saíra virtude.

O que também nos indica que, num momento de desespero, como era o caso de Jairo, embora atendendo a outras situações, Jesus não se esquece do nosso pedido de angústia nem da angústia dos nossos pedidos.

E se cremos que Ele é o mesmo ontem, hoje e eternamente (Hebreus 13:8), então recorramos sempre a Ele, sabendo que o Seu braço não está encolhido (Isaías 59:1) a ponto de não nos poder socorrer.
SAC, 20.04.2021

OS DOIS SEGREDOS

Os Dois Segredos

Jorge 2022-1Dr. Jorge Pinheiro

 

E tendo nascido Jesus em Belém de Judeia, no tempo do rei Herodes, eis que uns magos vieram do oriente a Jerusalém, dizendo:

– Onde está aquele que é nascido rei dos Judeus? Porque vimos a sua estrela no oriente e viemos adorá-lo.

E o rei Herodes, ouvindo isto, perturbou-se e toda Jerusalém com ele. E congregados todos os príncipes do povo, perguntou-lhes onde havia de nascer o Cristo. E eles disseram:

– Em Belém da Judeia, porque assim está escrito pelo profeta: “E tu, Belém, terra de Judá, de modo nenhum és a menor entre as capitais de Judá, porque de ti sairá o Guia que há-de apascentar o meu povo de Israel.”

Então, Herodes, chamando secretamente os magos, inquiriu exactamente deles acerca do tempo em que a estrela lhes aparecera. E, enviando-os a Belém, disse:

– Ide e perguntai diligentemente pelo menino e, quando o achardes, participai-mo para que também eu vá e o adore.

E, tendo eles ouvido o rei, partiram. E eis que a estrela que tinham visto no oriente ia adiante deles, até que, chegando, se deteve sobre o lugar onde estava o menino. E vendo eles a estrela, alegraram-se muito com grande alegria. E, entrando na casa, acharam o menino com Maria sua mãe e, prostrando-se, o adoraram. E, abrindo os seus tesouros, lhe ofertaram dádivas: ouro, incenso e mirra.

E sendo por divina revelação avisados em sonhos para que não voltassem para junto de Herodes, partiram para a sua terra por outro caminho.
Mateus 2:1-12
Este texto refere dois dos grandes mistérios/segredos do Natal, os magos e a chamada estrela de Belém, ambos inter-relacionados. Não há magos sem estrela e não há estrela sem magos.

Deixando de lado a questão de saber se este relato da Natividade é histórico ou meramente literário-simbólico, centremos a nossa atenção primeiro na estrela e, depois, nos magos. Se considerarmos que é histórico, então teremos de concluir que houve de facto uns magos guiados por uma estrela que os guiou até à terra da Judeia. Se considerarmos que é literário-simbólico, o evangelho segundo Mateus não deixa de ser fiável no tocante à Natividade, uma vez que, tendo por base um facto histórico, interpreta-o à luz do seu simbolismo e descreve-o com um timbre literário. Na realidade, há uma como que preocupação de Mateus em interpretar a trajectória de Jesus desde o Seu nascimento, à luz da Revelação anterior transmitida pelos profetas. E a prova disso são as diversas citações que ele faz da Escritura, afirmando com isso que aquela personagem actua no cumprimento do que dela já estava profetizado. Naturalmente que nesta perspectiva toda a descrição virá recheada de simbolismos que a audiência a que este evangelho se destinava não teria dificuldade em identificar e interpretar. Pondo de lado os magos e a estrela, que podemos considerar uma unidade conceptual, tudo o resto tem base histórica, devidamente comprovada: as cidades (Belém e Jerusalém), a terra (Israel), o poder político-religioso (Herodes, sacerdotes e escribas), o rigor profético (Miqueias 5:2), os guardiões da Revelação (sacerdotes e escribas). Inclusive, até, a marca de oportunismo político de Herodes, o Grande, que a História bem atesta.

Comecemos pela estrela de Belém. Ainda hoje, o mistério permanece e não se pode afirmar com garantia e certeza do que se tratava. Por isso, temos de nos contentar com as diversas hipóteses, restando-nos a opção de escolher a que mais nos agrada ou vai de encontro às nossas convicções preconcebidas ou não. Sem nos preocuparmos em pormenorizar essas diversas opções, podemos reduzi-las a quatro: um fenómeno sobrenatural, um cometa, uma supernova ou uma conjunção de astros celestes. Cada uma delas tem os seus defensores desde a Antiguidade aos nossos dias. Se todas as explicações naturais falharem, há sempre o recurso a uma intervenção sobrenatural, uma vez que o sobrenatural tudo explica e, por vezes, nada explica, antes complica. Das outras três, descartemos o cometa, porque era considerado um sinal maléfico, o que não condiz com o carácter benfazejo do nascimento do menino. Das outras duas, a que acaba por ter mais peso e é a minha preferida, é a da conjunção de planetas, no caso vertente, a de Júpiter e Saturno na constelação de Peixes, que ocorrera antes da morte de Herodes, o Grande em 4 a.C. e que se repetiria por outras duas vezes, uma delas a que se terá juntado a estrela Régulo. A interpretação astrológica (os Magos, como veremos, eram astrólogos) está em consonância com a afirmação da certeza dos Sábios do Oriente: “Onde está o que é nascido rei dos Judeus, porque vimos a sua estrela?”

Passemos aos Magos. A tradição fê-los reis, deu-lhes nome e considera-os em número de três, muito provavelmente por causa dos presentes oferecidos ao Menino: ouro, incenso e mirra. Há até uma lenda piedosa que fala de um quarto mago que se terá perdido dos companheiros e, vagueando durante anos pelo Oriente, acaba por se encontrar com Cristo a caminho do Gólgota. Mas atendo-nos ao texto, verificamos que todas essas afirmações são fruto da Tradição ou da imaginação piedosa. Na verdade, o texto não nos diz que eram reis, nem três e é omisso quanto ao seu nome. Dele, inferimos que eram sábios astrólogos-astrónomos, que vieram do Oriente, que ofertaram os produtos atrás citados, que viram um fenómeno celeste no Oriente interpretado segundo os seus conhecimentos. Também ficamos a saber que, ao contrário das representações de alguns presépios, quando se encontraram com o Menino não foi na manjedoura, mas numa casa e provavelmente seria um bebé cuja idade não ultrapassaria os dois anos, uma vez que Herodes manda matar as crianças de dois anos para baixo. Ficamos também a saber que a “estrela” lhes aparece duas vezes: uma no Oriente e outra na região de Belém da Judeia, o que dá força à hipótese da conjunção de astros que, sendo a de Júpiter e Saturno, ocorreu pelo menos duas vezes. Sendo Júpiter indicador do deus supremo e Saturno considerado o imutável, reunidos na constelação de Peixes, considerada a constelação do deus da sabedoria e do povo judeu, seria fácil a um astrólogo chegar à mesma conclusão dos Magos: na terra dos Judeus nasceu um rei sábio e imutável. É verdade que eles apenas referem “ao que é nascido rei dos Judeus”, mas sendo à época normal considerar os reis como divinos e estando a sabedoria ligada a Deus ou aos deuses, o “sábio e imutável” torna-se implícito a este rei.

Os Magos provavelmente seriam naturais da Pérsia e sacerdotes da religião de Zoroastro, o que não deixa de ser especulação. O que não é especulação é o facto de eles serem astrólogos-astrónomos e de se terem servido dos seus conhecimentos para chegarem à conclusão de que nascera o rei dos Judeus. O facto de serem astrólogos-astrónomos não nos deve surpreender pois à época não se estabelecia diferença entre os dois conhecimentos. Apenas a partir da revolução científica na Europa, por volta do séc. XVIII, é que a astronomia se autonomizou em relação à astrologia. Basta pensar que Copérnico e Képler (sécs. XVI e XVII, respectivamente), considerados pais da astronomia científica moderna eram eles também astrólogos. À época dos magos, o estudo científico dos astros, dos seus movimentos e inter-relações (registo astronómico) andava de mãos dados com as superstições do destino de pessoas e coisas ditado pelas posições dos astros no horizonte celeste (registo astrológico).

Estas são as conclusões a que podemos chegar após uma breve leitura e análise do texto de Mateus. Estando estes dois elementos da Natividade envoltos em mistério, fácil é cairmos na tentação de nos preocuparmos com a sua resolução e de nos perdermos em especulações, esquecendo-nos daquilo que é muito mais importante que determinar a origem dos magos e a natureza da estrela. Na realidade, embora envoltos em mistério e com toda a probabilidade em simbolismo, este episódio encerra lições que essas, sim, nos devem interessar e às quais devemos prestar toda a atenção, fazendo bem em aplicá-las ao nosso viver.

A primeira lição a aprender é que, na busca da verdade, é essencial colocarmos o registo evangélico no centro da nossa busca e extrair dele aquilo que de facto é fundamental e não acessório, seguro e não especulativo, perene e não transitório. No tocante à descoberta da Verdade, o nosso espírito tem de se deixar mergulhar na Palavra da Revelação porque é ela que nos esquadrinha o mais íntimo do nosso ser e nos dirige nos caminhos da verdade. De resto vemos isso no percurso dos magos. O seu conhecimento levou-os ao destino final, mas desembocaram num beco sem saída porque embora no local certo, foram à procura da resposta final na pessoa errada. O que nos diz que Deus nos fala na linguagem que entendemos e que dominamos. A linguagem, dos magos era a astronomia e foi nessa linguagem que Deus lhes falou e os guiou ao destino certo. Mas o seu conhecimento humano precisou da revelação divina para chegar àquele que era o anseio do seu saber e o destino final da sua caminhada. De igual modo, em aplicação do que a epístola aos Hebreus declara de que Deus fala muitas vezes e de muitas maneiras, Deus fala connosco segundo a linguagem do nosso conhecimento individual, desde que o coloquemos ao serviço daquele que tem a palavra final. E quantas vezes Deus não nos tem falado na linguagem do nosso saber? Que à semelhança dos magos coloquemos o nosso saber e o nosso conhecimento nesta caminhada ao encontro do Senhor da vida, o Rei eterno e imutável. Mas seguros também de que onde o nosso conhecimento falha, aí começa a intervenção da revelação. O que nos indica que conhecimento e revelação não são incompatíveis, mas complementares e que aquele sem esta leva sempre a um beco sem saída.

À semelhança dos magos, por vezes o nosso conhecimento pode levar-nos ao lugar errado. No caso dos Magos, levou-os ao centro do que podemos considerar a sede das teorias da conspiração. Os Magos abeiraram-se de Herodes, o Grande que, manhosamente, os procurou enfeitiçar com palavras piedosas: “Procurai diligentemente o menino para que eu também vá e o adore”. Ou seja, os Magos pocuraram no poder político a resposta para as suas indagações. E mal vai o Cristianismo quando tem de depender do poder político, seja ele qual for, para que a sua mensagem seja validada e ratificada. O rei do Cristianismo não pode ser outro senão aquele que é o cumprimento das Escrituras, não pode ser outro senão aquele que tem o respaldo da Revelação, não pode ser outro senão aquele que detém as chaves da sabedoria divina perene e permanente. O seu nome é Jesus! E embora ouvindo uma mensagem herodiana adocicada e na aparência de uma piedade louvável, os magos não perceberam que era uma mensagem enganadora porque por trás dela residia uma conspiração para matar o recém-nascido rei que Herodes catalogou de seu rival. Por isso, podemos afirmar que os Magos estavam perante uma teoria da conspiração. Toda a teoria da conspiração é criminosa e assassina e mal vai o Cristianismo e mal vão os Cristãos quando se deixam embalar por teorias da conspiração por mais doces que sejam, por mais piedosas que na aparência possam ser. De novo, os Magos necessitaram de uma intervenção divina para lhes revelar as verdadeiras intenções de Herodes. Avisados por divina revelação foram para a sua terra por outro caminho. Que à semelhança dos Magos, os Cristãos do nosso tempo possam estar atentos à verdadeira revelação divina no desmascarar dos falsos Messias modernos que, com as suas palavras doces e pretensamente piedosas, querem levar os filhos de Deus ao engano. Tenhamos, pois, os nossos ouvidos atentos ao que Deus revela e leiamos a Sua Palavra não segundo os decretos do coração humano mas segundo o espírito meigo e salvador de quem deu a Sua vida por nós, nunca esquecendo o que Ele disse: “O meu reino não é deste mundo. Se fosse deste mundo, os meus fiéis guerreariam por ele.” O reino de Deus não se impõe pela força, mas pela convicção dos corações através da acção do Espírito Santo.

Uma outra lição que aprendemos com os magos é que eles não se limitaram a ir ao encontro do rei nascido de mãos vazias e estribados no seu conhecimento e saber. Chegando-se à casa onde se encontrava o rei menino, adoraram-no e ofertaram-lhe dádivas. Podemos ver um simbolismo nessas oferendas. Sem menosprezo por outras interpretações, podemos considerar o ouro como reconhecimento da Sua realeza, o incenso, como confirmação do Seu sacerdócio e a mirra como confissão da Sua posição de profeta e prenúncio da Sua morte vicária em favor de toda a humanidade. Cada uma dessas oferendas valiosas reconhecia um aspecto do carácter, da missão e do valor do rei-menino junto de quem colocavam não apenas o produto das suas cogitações, mas também toda a sua pessoa, numa atitude de serviço e reverência. Que nós também nos aproximemos daquele que é rei, sacerdote, profeta e Salvador não de mãos vazias mas com o tributo da nossa adoração e a rendição da nossa posição de seres humanos.

Curioso também é verificar que estes magos não sendo provavelmente judeus, seriam por isso gentios, gente de outra nação, de outra etnia. E neste facto, temos uma outra lição a aprender – aquele que consideramos nosso Rei é o soberano não de uma classe especial ou de uma etnia eleita, mas de toda a humanidade, pelo que, como cristãos, está-nos vedado enveredar pelos caminhos do racismo, da xenofobia ou da segregação com base em alguma diferença, seja ela de género ou de posição sócio-económica ou cultural. Por isso, Paulo podia clamar: “Nele não há judeu, não há gentio, não há masculino nem feminino, não há servo nem livre”. Todos têm entrada livre no Reino de Deus. Apenas temos de nos curvar perante aquele que é Rei deste Reino e ofertar-lhe em primeiro lugar a nossa vida e a nossa devoção.

Ligada aos magos está uma estrela. Muito provavelmente Mateus teria presente o texto de Números 24:17, também conhecido como a Profecia da Estrela: “Uma estrela procederá de Jacob e um ceptro subirá de Israel”. A ser assim, isso explicaria a inclusão da estrela no seu relato natalício. Seja como for, uma estrela guiou os magos e ela levou-os sem falhas ao destino que era o seu. Ela foi como que o seu farol a indicar-lhes o caminho. E ainda que por momentos oculta, no momento da decisão final voltou a aparecer-lhes, desta vez parando sobre o local da sua busca. Que à semelhança dos magos tenhamos os olhos fixos na estrela que guia os nossos passos, sabendo que mesmo quando não a vemos ou por impossibilidade pessoal ou porque por algum outro motivo ela mesma se ocultou, ela continua no céu da nossa vida a guiar-nos e irá aparecer de forma segura para nos mostrar já não o caminho, mas o lugar de repouso e de encontro. Dos vários títulos atribuídos a Jesus, um deles é o que encontramos no livro de consolação de João, o Apocalipse, a Estrela da manhã, conforme vemos em Apocalipse 22:16: “Eu sou a raiz e a geração de David, a resplandecente estrela da manhã.” Ele é a nossa estrela da manhã. Não uma estrela qualquer, mas, note-se, a resplandecente Estrela da Manhã. O seu brilho é o mais intenso que possamos imaginar e Ele guia os nossos passos, o nosso caminhar vacilante ou ousado, em tempos de fartura ou de penúria, em tempos de refrigério ou em tempos de angústia. E é curioso que é num livro de consolação, o Apocalipse, que os homens transformaram num livro de terror, que encontramos este título magnífico – o nosso rei é a nossa estrela da manhã. O seu brilho é próprio, não é reflectido, é intenso, brilhando na escuridão das nossas incertezas. Com Ele, nasceu um novo dia, que, como diz o hino, será um dia de justiça, um dia de verdade, um dia em que haverá na Terra a paz, em que será vencida a morte pela vida e a escravidão enfim acabará. Este é o nosso rei. A ele queremos servir.

Soli Deo gloria

SAC, 9.Dez.2020

OS DOIS SENHORES

Os Dois Senhores

Dr. Jorge Pinheiro

2021dez20 Jorge Pinheiro _ peq
Texto: Mateus 6:19-34.
O Sermão no Monte está estruturado por agrupamentos de assuntos.

Neste capítulo, encontramos sete temas diferentes, embora inter-relacionados. Nesta secção, detectamos quatro temas distintos, interligados, a saber:

vv. 19-31 – o tesouro no céu.
vv. 22-23 – o olho puro.
v. 24 – os dois senhores.
vv. 25-34 – a solicitude da vida.

1. O tesouro no céu (vv. 19-21)

Não está errado ter um tesouro ou trabalhar para ele – o versículo 20 declara: mas ajuntai tesouros no céu. O problema está não no tesouro em si mas na sua localização e natureza. Estes versículos contrastam a Terra e o Céu.

Não nos limitemos a considerar “céu” como sinónimo do domínio do espiritual, morada de Deus, vida depois da morte: Terra aponta para o relativo, o imanente, o passageiro; Céu aponta para o absoluto, o transcendente, o permanente.

O nosso tesouro – o que mais apreciamos – deve estar situado e depositado no domínio do Absoluto, o qual não está sujeito ao desgaste do Relativo.

Na Terra, todo o tesouro está sujeito a desgaste por causas naturais – traça e ferrugem – ou sociais – os ladrões que minam e roubam.

Onde está o nosso tesouro está o nosso coração. O que significa que o nosso coração tem de estar num tesouro imperecível. Por isso, devemos dizer “NÃO” a toda a tentativa de transformar os tesouros perenes em tesouros perecíveis. O Evangelho não gira à volta de riquezas materiais.

Este texto fala então de valores e do seu fundamento, não da realização de boas obras como passaporte para obter as graças de Deus.

2. A candeia dos olhos ou os olhos puros (vv. 22-23)

A candeia ilumina. O que ilumina o nosso corpo são os nossos olhos. Quanto mais intensa for a candeia, mais claras se tornam as coisas.

O nosso olhar tem de ver o mais claramente possível. Aqui, olhos referem-se não apenas ao nosso órgão da visão mas aos meios que nos permitem relacionar com o exterior. Para uns, os olhos são os ouvidos, para outros é o raciocínio, a reflexão. Caso contrário, os cegos estariam excluídos das bênçãos das bem-aventuranças.

É costume dizer que colhemos o que semeamos mas não menos é verdade que semeamos o que colhemos. Neste tema, Jesus retoma a lição e significado do tema do sal e da luz (Mateus 5:14), embora numa outra perspectiva.

3. Os dois senhores (v. 24)

Aqui, Jesus coloca em oposição duas realidades antagónicas: Deus e mamon. Mamon significa apenas dinheiro, riqueza ou tesouro. Este tema está intimamente relacionado com o primeiro.

Mamon não é um demónio, mas podemos transformá-lo em demónio, se permitirmos que ele ocupe o lugar que pertence a Deus.

Não podemos servir dois senhores. A nossa fidelidade tem de ser para com aquele de quem dependemos. Se não dependemos de Deus, então transformamo-nos em senhores de Deus. O mesmo em relação às riquezas.

Já vimos que onde estiver o nosso tesouro, aí estará o nosso coração. Já vimos também que não está errado termos tesouros. Mas temos de ser seus senhores e não seus servos.

Quando a Igreja se preocupa só com o dinheiro, deixou de servir Deus. Paulo diz que o amor ao dinheiro é a raiz de todo o mal.

Jesus parte de uma realidade comum – impossibilidade de servir dois senhores – para uma realidade essencial: impossibilidade de emparceirar Deus com outras entidades, por muito importantes que elas possam ser e por muito relevante que o seu papel possa ser nas nossas vidas.

4. Ansiedade com as solicitudes da vida (vv. 25-32)

Vivemos num mundo com o qual nos relacionamos e, por causa disso, entramos numa situação de dependência, de resolução de necessidades que vão surgindo e que precisam de ser supridas. São necessidades tanto básicas como complexas, muitas delas dependentes do sistema de organização da sociedade em que vivemos.

Se Deus cuida das básicas, também cuida das complexas.

Como Igreja, não podemos (nem devemos) descurar nenhuma dessas necessidades. As nossas necessidades individuais e colectivas variam em grau de intensidade e de importância, podendo variar de indivíduo para indivíduo. E algumas só podem ser satisfeitas quando outras já estiverem resolvidas. Vejamos algumas:

Necessidades básicas: alimentação, vestuário, habitação, possibilidades de rendimento.
Necessidades emotivas: auto-estima, amizades, carinho, compreensão.
Necessidades intelectuais: aprender, manifestar e explorar capacidades cognitivas ou artísticas.
Necessidades sociais: relacionamentos com indivíduos, empresas e sociedades simples ou complexas.
Necessidades espirituais: realização dos nossos anseios pelo transcendente, pelo divino.

As necessidades, pelo seu peso e importância, podem esmagar-nos ou querer esmagar-nos, mas Jesus apela à confiança em Deus – vv. 31-32.

Isso só se consegue se a nossa relação com Deus for a de pai para filho – v. 32 – vosso Pai.
5. Conclusão

Se a nossa confiança estiver em Deus, nem podemos (ou devemos) ignorar a situação nem devemos entrar em pânico – Deus vela por nós. Mas para isso, devemos buscar primeiro o reino de Deus e a sua justiça ou rectidão. E todas as outras coisas nos serão acrescentadas.

SAC, 9.Março.2021

A ENTRADA TRIUNFAL

A Entrada Triunfal
Mateus 21:1-17

2021dez02 JorgePinheiroDr. Jorge Pinheiro

Este capítulo de Mateus refere-se ao período do ministério de Jesus a que se convencionou chamar a Semana da Paixão de Cristo. Ou seja, dá início ao relato dos acontecimentos que irão desembocar na prisão, julgamento, morte e ressurreição de Jesus.

Este facto é importante porque nos encaminhamos rapidamente para o clímax da vida de Jesus, para o momento fundamental da vinda do Salvador a este mundo – a glorificação de Deus na redenção da humanidade através da obra vicária e expiatória de Jesus Cristo.

Sem menosprezo por tudo quanto Jesus fez e disse até este momento, podemos afirmar que sem os acontecimentos que os evangelistas vão narrar a partir deste episódio, a passagem de Jesus por este mundo nunca O elevariam à posição que Ele alcançou na cruz e que foi ratificada na Sua ascensão aos céus.

Como Cristãos, esta é a fase mais importante e significativa da nossa relação com Deus e aquela que nos permite confessar com toda a certeza e garantia que nos tornámos filhos de Deus.

Este capítulo refere seis episódios ocorridos em apenas dois dias da estada de Jesus em Jerusalém:

 no primeiro dia, a entrada triunfal de Jesus na cidade e a purificação do templo;
 no segundo dia, a figueira que secou a uma ordem de Jesus, a discussão sobre a natureza do baptismo de João Baptista e duas parábolas, a dos dois filhos e a dos lavradores maus.

A sequência dos quatro primeiros eventos é confirmada pelos outros dois evangelhos sinópticos, embora Lucas omita o episódio da figueira.

Diz o evangelho que Jesus entrou em Jerusalém montado num jumentinho, dando assim cumprimento ao que fora anunciado pelo profeta Zacarias: Alegra-te, ó filha de Sião, exulta, ó filha de Jerusalém. Eis que o teu rei virá a ti, justo e salvador, pobre e montado sobre um jumento, sobre um asninho, filho de jumenta. (Zacarias 9:9).

É preciso entender que na cultura judaica da época, o jumento e a mula eram considerados montadas nobres que os reis e os ricos cavalgavam. Para tanto, basta consultar as seguintes passagens do Antigo Testamento:

Débora e Barac dirigem-se aos poderosos de Israel: Vós, os que cavalgais sobre jumentas brancas, que vos assentais em juízo… (Juízes 5:10);
Abraão foi num jumento de Berseba ao monte Moriá: Então se levantou Abraão pela manhã de madrugada e albardou o seu jumento… (Génesis 22:3);
Dois juízes de Israel, gente poderosa, eram donos de jumentos: E tinha este [Jair] trinta filhos, que cavalgavam sobre trinta jumentos…; E tinha este [Abdom] quarenta filhos e trinta filhos de filhos, que cavalgavam sobre setenta jumentos… (Juízes 10:4; 12:14);
Balaão ia montado numa jumenta: Viu, pois, a jumenta o anjo do Senhor, que estava no caminho com a sua espada desembainhada… (Números 22:23);
Parte da riqueza de Job incluía mil jumentos: E assim abençoou o Senhor o último estado de Job, mais do que o primeiro, porque teve catorze mil ovelhas e sei mil camelos… e mil jumentas… (Job 42:12).

Assim, quando Jesus entra na cidade santa de Jerusalém, vai numa montada digna de uma categoria real, o que indica a sua elevada posição. Atendendo a que partiu d’Ele a ideia de ir montado num jumento, leia-se um meio de transporte régio, isso significa que estava a enviar uma mensagem a quem o recebesse – o rei aproxima-se da cidade.

Por isso, não admira que tenha sido recebido com gritos de hosana (Mateus 21;9; Marcos 11:9) e aclamado como rei pela multidão, conforme Lucas regista (Lucas 19:38).

Recordemos que em Aramaico, hosana significa “peço-te a salvação.” Jesus foi recebido com pedidos e aclamações de salvação, sendo assim reconhecido como aquele que pode conceder a salvação. Jesus é de facto o rei salvador.

Jerusalém não era uma cidade qualquer. Nela situava-se o templo, o ponto central da devoção judaica, a razão de ser da sua existência, um lugar sacratíssimo por natureza. Por estas razões, Jerusalém era considerada a cidade santa por excelência. Disso dá conta o Salmo 137:5-6:

Se me esquecer de ti, ó Jerusalém, esqueça-se a minha dextra da sua destreza, apegue-se-me a língua ao paladar se me não lembrar de ti, se não preferir Jerusalém à minha maior alegria.

Por essa razão, na sua visão apocalíptica, João vê a descer do céu a grande cidade morada de Deus, que designa por santa Jerusalém (Apocalipse 21:10).

A cidade de Jerusalém era já conhecida nos tempos de Abraão (Génesis 14:18) como cidade de Salém, cujo rei, Melquisedeque, era sacerdote do Deus Altíssimo e que, para o autor de Hebreus, representava uma figura de Cristo (Hebreus 7).

Apesar de os Israelitas estarem já instalados em Canaã, a terra prometida a Abraão, a cidade de Jerusalém permaneceu nas mãos de amorreus e jebuseus até ser conquistada por David (2 Samuel 5:9), razão pela qual passa a ser conhecida também pela designação de “cidade de David.” Mais tarde, este rei transforma-a na capital do reino, ordenando que nela ficasse instalada a Arca da Aliança.

Após a morte de David, Salomão levanta o templo que se tornará não apenas o centro de adoração da nação, mas também local obrigatório de peregrinação.

Mas apesar de todos esses atributos de santidade, apesar de nela estar a entrar “O rei que vem em nome do Senhor” (Lucas 19:38), numa aclamação esfusiante de alegria e de confiança, é nela que o Salvador é morto, condenado pelo sistema religioso ortodoxo, por aqueles que tinham a obrigação de que estavam incumbidos de zelar pela preservação e difusão da revelação divina e condenado talvez por alguns dos que à Sua chegada à cidade O aclamavam.

Antevendo o fim que a cidade Lhe destinava, ao chegar a Jerusalém Jesus chora sobre ela: Ah! Se tu conhecesses também ao menos neste teu dia o que à tua paz pertence,” conforme Lucas regista (Lucas 19:42).

Nos evangelhos, vemos que Jesus chorou pelo menos duas vezes: uma, por ocasião da morte do Seu amigo Lázaro (João 11:35) e neste episódio da Sua chegada à cidade santa. Muito provavelmente, de forma segura, terá chorado em outras duas ocasiões: quando nasceu, porque todo o bebé chora ao nascer, sinal de que está vivo e quando orava no Getsémani. A angústia que Ele experimentou naquele momento (Mateus 26:37) levou-O a confessar “A minha alma está cheia de tristeza até à morte” (Mateus 26:38). Lucas regista que a angústia era tal que o “Seu suor se transformou em grandes gotas de sangue” (Lucas 22:44).

Após a Sua entrada triunfal, Jesus dirige-se ao templo, onde já estivera antes pelo menos uma vez, por ocasião da Festa dos Tabernáculos e onde faz um dos mais fantásticos e poderosos pronunciamentos: Se alguém tem sede, venha a mim e beba (João 7:37).

O templo era uma estrutura muito complexa. À volta do santuário em si, estendia-se de forma hierárquica uma série de átrios ou pátios. Por ordem decrescente de importância e a partir do santuário, o átrio dos sacerdotes, o átrio dos homens ou de Israel, o átrio das mulheres e o átrio dos gentios.

O santuário estava dividido e duas secções: o Lugar Santo e o Lugar Santíssimo, separados por uma grossa dupla cortina que se rasgaria de alto a baixo por ocasião da morte de Jesus. No Lugar Santo, encontrava-se o altar do incenso, o candelabro de sete braços ou Menorá, sempre aceso, e a mesa dos pães da proposição renovados todas as semanas. Quanto ao Lugar Santíssimo, era uma câmara vazia ao tempo de Jesus mas nela deveria estar a Arca da Aliança entretanto perdida. Nele entrava o sumo sacerdote uma vez por ano, no Dia da Expiação, ou Yom Kippur, o dia mais sagrado para os Judeus, em que era oferecido um sacrifício pelos pecados de todo o povo, confessados ou omitidos.

Todo o conjunto era uma estrutura que podemos classificar com um cunho profundamente hierárquico e concêntrico.

Quando o evangelho diz que “Jesus entrou no templo de Deus e expulsou todos os que vendiam e compravam no templo e derribou as mesas dos cambistas” (Mateus 21:12), temos de entender que “templo” aqui se refere não ao santuário duplo propriamente dito, mas ao local onde o edifício se erguia. Muito provavelmente, o local onde esta cena ocorreu terá sido o átrio dos gentios mais propício a uma actividade comercial de compra de animais para o sacrifício e de transacção cambial.

De facto, ali era o local onde os devotos judeus compravam os animais que iam sacrificar e onde se trocavam as diversas moedas em curso no resto do Império Romano pela moeda corrente no templo, o xéquel.

Não custa imaginar que, tratando-se de uma transacção comercial, o lucro estivesse presente, beneficiando quem vendia. Como também não custa admitir a existência de um aproveitamento por parte da classe sacerdotal, que exercia o seu poder sobre tudo quanto se passava no templo. Desde sempre a indústria religiosa deu bastante lucro. Esse não é um fenómeno novo e ainda hoje está presente.

Mas mesmo sendo um local de transacção comercial e cambial, aquele átrio não deixava de ser um local sagrado, por fazer parte de toda a estrutura do templo.

Por esse motivo, Jesus indignou-se e justificou com a Escritura o Seu acto de derrube das mesas dos cambistas, exclamando: Está escrito: a minha casa será chamada casa de oração. Mas vós a tendes convertido em covil de ladrões. (Mateus 21:13). Ao agir assim, Jesus teve sem dúvida em mente Isaías 56:7 e principalmente Jeremias 7:11: “É, pois, esta casa que se chama pelo meu nome, uma caverna de salteadores aos vossos olhos? Eis que eu, eu mesmo, vi isso, diz o Senhor.”

Antes de se retirar para Betânia para repousar e depois de limpar o local, Jesus ainda teve ocasião para se disponibilizar a curar enfermos (v. 14) e para provocar uma reacção de agrado de meninos que O aclamavam, e de indignação por parte dos principais dos sacerdotes.

As acções de purificação respaldadas pela Escritura suscitam sempre a aclamação dos simples e dos puros e a indignação dos poderosos que vêem nelas uma ameaça às suas posições de privilégio.

Não tenhamos dúvidas: toda a acção de purificação terá de ter sempre o respaldo da Escritura e ela nunca virá pela instrumentalidade de quem está preocupado em última instância em defender os seus interesses pessoais.

Ora, à semelhança do povo israelita que tinha uma cidade santa, centro e razão da sua existência, assim também cada um de nós tem a sua cidade santa. Para uns, será o seu país, a sua cidade de origem ou de habitação, o seu bairro ou a sua rua. Para outros poderá não ser nenhum equipamento urbano mas talvez seja uma propriedade, um bem adquirido ou uma realização pessoal. Para outros ainda, será a família, um grupo de amigos ou uma colectividade que lhes seja querida.

Mas seja qual for a natureza e característica da nossa cidade santa, que mesmo profana é santa para nós, temos todos uma cidade que consideramos santa.

Uma lição que extraímos deste episódio da chegada de Jesus à cidade santa dos Judeus é que “o que vem em nome do Senhor” quer entrar na nossa cidade. Disso é reflexo o texto apocalíptico de João: Eis que estou à porta e bato… (Apocalipse 3:20).

Que Ele está a bater à porta da nossa cidade não há dúvida alguma. Que Ele quer entrar na nossa cidade, essa é uma certeza inabalável.

Que Ele entre na nossa cidade! Que O possamos aclamar com hosanas e com o reconhecimento de que o rei está a chegar. Que da nossa cidade Ele não possa dizer que ela não conhece o que à sua paz pertence, mas que nossa seja a herança da Sua promessa: Deixo-vos a paz, a minha paz vos dou. (João 14:27). Não a paz dos cemitérios, não a paz adiada para as moradas celestes, não a paz da fuga para a frente, mas a paz que excede todo o entendimento, aqui e agora (Filipenses 4:7).

De igual modo, à semelhança da estrutura do templo em Jerusalém, todos nós temos um templo. Ou melhor ainda, todos nós somos um templo, conforme diz Paulo: Nós somos o templo de Deus e o Espírito Santo habita em nós. (1 Coríntios 3:16). A verdade é que todo o ser humano é um templo dedicado ao deus da sua devoção e tudo nesse templo, que o mesmo é dizer, em toda a vida tudo gira em torno do deus a que esse templo está dedicado.

Tal como a estrutura do templo de Jerusalém se ordenava em círculos concêntricos hierarquizados, assim nós, qual templo de Deus, temos a nossa vida ordenada em círculos concêntricos hierarquizados. É possível que a ordem dessa concentricidade não seja rigorosamente igual em todos nós, mas que ela se manifesta na existência de cada um, disso não haja dúvidas.

E à semelhança do templo, em que mesmo o círculo mais distante do centro, ou seja, o átrio dos gentios em relação ao Lugar Santíssimo, continuava a ser terreno sagrado e casa do Senhor Deus, assim também no nosso templo que somos nós, o círculo mais afastado do nosso centro e que muitas vezes se confunde (ou confundimos) com o profano, continua a ser terreno sagrado, casa de Deus, templo do Senhor.

Ou seja, não há sector não há área, não há círculo de interesse em que nos movimentemos que esteja longe ou separado da influência da presença de quem habita no nosso Lugar Santíssimo, desde que nos consideremos e sejamos templo do Senhor.

Se somos templo do Senhor, a Sua presença não pode estar arredada de nenhuma área de actividade em que estivermos envolvidos.

Quando porventura conspurcamos ou temos por independente alguma área do nosso templo, não nos espantemos se a seu tempo o nosso rei intervier, derribando as mesas que deixámos que cambistas estranhos ao templo as erigissem e se apossassem de um átrio que de direito pertence ao Senhor.

A Deus toda a glória.

SAC, 28.Setembro.2021

O Pedido de Tiago e João

O Pedido de Tiago e João

Mateus 20:17-28

Jorge PinheiroDr. Jorge Pinheiro
Para lá de Mateus, este episódio encontra-se também em Marcos 10:32-45 e Lucas 18:31-34. Em conjunto, apresentam aspectos e pormenores diferentes entre si e, por isso, são relatos que exigem uma harmonização. Como base, utilizaremos o registo de Mateus.

v. 17: E subindo Jesus a Jerusalém.

Jesus encontrava-se na Pereia (Mateus 19:12) e dirigia-se para Jerusalém via Jericó.

Se quisermos ver algum simbolismo neste trajecto, podemos dizer que Jesus seguia da cidade da guerra (Jericó) para a cidade da paz (Jerusalém). Basta recordar que Jericó está ligado a um episódio de guerra, conquista e destruição e que o termo Jerusalém pode ser traduzido como “cidade da paz”. Esse é o caminho que Ele nos convida a trilhar. A cidade da guerra foi conquistada pela força das armas mas a cidade da paz foi conquistada pelo sofrimento e pela entrega. Não há paz se não estivermos dispostos a experimentar o sofrimento e uma entrega pessoal.
v. 17: chamou de parte os discípulos e no caminho disse:

Jesus não se limitou a enviar os discípulos sozinhos: “Ele chamou-os a si.”
Jesus não guardou para si as suas intenções: “Disse.”
Jesus não ficou na retaguarda, resguardado “no caminho”. Ele não só acompanhou os discípulos, estando no meio deles, como toda a Sua acção não foi passiva mas activa. “No caminho” – ele caminhou.

E que lhes disse Ele?

v. 18: Eis que vamos para Jerusalém.

Note-se o para. Não iam a mas para. Não iam de passagem mas para ficar. Iam com um propósito. A nossa caminhada rumo à paz tem de ter um propósito e o propósito de lá ficar, dispostos a tudo de ordem pessoal para que a paz permaneça. Se queremos ser soldados, temos de ser soldados da paz, um pouco à semelhança dos actuais bombeiros que a si próprios se designam por “soldados da paz” e que apagam fogos, resgatam vidas, carregam os velhos, protegem os desprotegidos, recuperam bens perdidos, evitam ou minoram catástrofes, seguindo o seu lema “Vida por Vida”. Da minha parte, homenagem e louvor aos bombeiros.

E que iam fazer a Jerusalém?
vv. 18-19: O Filho do homem será entregue aos príncipes dos sacerdotes e aos escribas e condená-lo-ão à morte e o entregarão aos gentios para que dele escarneçam, o açoitem e crucifiquem e ao terceiro dia ressuscitará.

Jesus revela aos discípulos o que se vai passar. Torna-os participantes ou pelo menos conhecedores das Suas intenções. O clímax, o ponto máximo da vida de Jesus aproxima-se e Ele quer que os Seus não fiquem na ignorância.

Que exemplo para os líderes actuais. Quantos deles não agem em segredo, não envolvendo os liderados numa tarefa que se pretende comum e escondem a totalidade ou parte dos planos de acção? E quantos não apelam ao sacrifício, ao esforço e à entrega dos seus liderados e se excluem de toda essa entrega que se pretende e tem de ser comum?

Esta é a terceira vez em Mateus que Jesus revela que irá passar por aquilo que é conhecido como a Sua Paixão – a Sua condenação, morte e ressurreição:

• Mateus 16:21 – no seguimento da confissão de Pedro, reconhecendo a messianidade de Jesus;
• Mateus 17:22-23 – após a cura do epiléptico;
• Mateus 20:18-19 – antecedendo o pedido de Tiago e João.

Há uma quarta ocasião, em Marcos 9:31, que antecede a discussão de quem seria o maior no reino de Deus.

No versículo 18, vemos que Jesus declara sem rodeios que, uma vez entregue aos responsáveis religiosos, será por estes condenado à morte. Quando a religiosidade se sobrepõe à espiritualidade, a verdade torna-se incómoda e o caminho a seguir é eliminá-la sem hesitações. Este é um processo que se repete vez após vez em todos os quadrantes da vida em sociedade e que tragicamente não está ausente em muitas hostes ditas cristãs. Que o Senhor nos guarde e nos ajude para que a nossa teologia pessoal ou grupal não se sobreponha à limpidez cristalina da revelação do Evangelho.

É que, cuidando estarmos a ser guardiões da verdade, podemos acabar por ser um tropeço para todos os que, com um coração quebrantado e arrependido, conforme exige a Escritura, querem apresentar-se doentes como estão Àquele que os pode curar e restaurar. Em vez de os deixarmos entrar para serem tratados e curados, exigimos a apresentação de uma credencial assinada por uma qualquer entidade, por norma abstracta, controladora do acesso ao Evangelho.

O versículo 19 menciona os gentios. Aqui, referem-se à autoridade romana. Ao tempo, qualquer condenação à morte tinha de ser ratificada pelas instâncias judiciais romanas. Ao longo da História, este é um debate que continua em aberto: quem matou Cristo? Judeus ou Romanos? Há quem queira encontrar um terceiro executor: Deus. E enchem páginas de teologia, demonstrando que foi Deus quem matou Jesus, abandonando-O à Sua sorte porque, encarnando o pecado, Jesus levou Deus a não ter outro remédio senão afastar d’Ele a Sua presença. Que evangelho macabro, sinistro e malvado esse.

Se dizemos que Jesus morreu por nós, então só nos resta concluir que foi o nosso pecado que O matou. E se foi o nosso pecado que O matou, não podemos deixar de O amar e de nos esforçar, até mais não podermos, por não pecar, procurando a cada momento identificar a nossa vida com o modelo de ser humano perfeito que Ele preparou para nós.

O anúncio de Jesus está sem dúvida carregado de drama, de tragédia, de tristeza, de desespero e de impotência. Se isso vai acontecer, nada há que possamos fazer para o impedir e a única saída viável e natural parece ser o desespero.

Mas – e a grande notícia e consolo que o Cristianismo oferece – o processo não acaba ali – Ele ressuscitará. E se é verdade que, conforme predisse, foi entregue aos religiosos, foi condenado por estes à morte e foi escarnecido, açoitado e crucificado pelos gentios e morreu segundo as leis da Natureza, se tudo isso, repitamo-lo, é verdade porque aconteceu, também não é menos verdadeira a Sua ressurreição. Jesus ressurgiu, está vivo, intercede por nós e voltará segunda vez, não como um D. Sebastião mítico, mas como Rei dos reis e Senhor dos senhores.

Após esta declaração, Lucas (Lucas 18:34) afirma que os discípulos não captaram o seu significado e alcance. Realmente, é estranho porque, conforme já vimos, esta não era a primeira vez que Jesus anunciava os Seus sofrimentos. Talvez porque essa afirmação contradissesse a ideia que eles tinham da majestade do Messias. Ou talvez porque lhes parecesse impossível ou improvável que a rejeição de Jesus por parte do sistema chegasse a esse ponto, apesar de serem testemunhas de que a mensagem de Jesus incomodava muita gente e ia ao arrepio do que os outros mestres ensinavam e praticavam.

Desconhecemos a razão dessa incompreensão dos discípulos. Mas ela acaba por nos ser familiar e contemporânea. Quantos de nós, embalados por uma interpretação tradicional das Escrituras, tornada quase um dogma, temos dificuldade em conciliar determinadas passagens da Revelação com aquilo que tomamos como adquirido, com aquilo que consideramos a única interpretação possível?

O versículo 20 introduz uma divergência com o relato de Marcos (Marcos 10:35). Mateus diz que o pedido é feito pela mãe de Tiago e João, enquanto Marcos afirma que o pedido foi feito pelos dois irmãos.

São possíveis duas respostas:

• A mãe dos irmãos encontrava-se no grupo (versão de Mateus).
• Os dois irmãos verbalizaram um pedido ou desejo expresso da mãe (versão de Marcos).

No entanto, apesar desta discrepância, ambos os relatos são concordes quanto ao conteúdo e matéria do pedido. E o pedido consiste em que Jesus concedesse aos dois a possibilidade de um se sentar à direita e o outro à esquerda de Jesus quando este ocupasse o trono do Seu reino (v. 21).

Muito provavelmente, ainda lhes ecoava a garantia dada por Jesus de que os discípulos se assentariam sobre doze tronos para julgarem as doze tribos de Israel (Mateus 19:28).

Pelo pedido, e ainda mais pela resposta de Jesus, não é descabido concluir que os discípulos, ou pelo menos estes dois, ainda não tinham percebido as características especiais do Reino de Cristo, que não se regia segundo as normas de um qualquer reino humano.

Esta conclusão detecta-se no início da resposta de Jesus: Não sabeis o que pedis (v. 22). No resto da resposta, Jesus sonda os pensamentos dos dois irmãos, forçando-os a declarar em que moldes viam o Reino de Cristo, uma vez que Jesus prossegue: Podeis beber o cálice que eu hei-de beber e ser baptizados com o baptismo com que sou baptizado?

Na aparência, a resposta dos dois leva a supor que eles teriam entendido a essência do Reino. Quanto a mim a resposta não é mais do que um adiamento, de um compasso de espera.

O cálice aponta para o que nos pode acontecer nesta vida, no nosso encontro com as circunstâncias. Pode representar tanto o que de bom nos acontece (Salmo 16:5 – O Senhor é a porção da minha herança e do meu cálice; Salmo 23:5 – …unges a minha cabeça com óleo, o meu cálice transborda; Salmo 116:13 – Tomarei o cálice da salvação; Jeremias 16:7 – …nem lhes darão a beber do copo de consolação) como o que de mau nos atinge (Salmo 75:8 – Na mão do Senhor há um cálice, cujo vinho ferve, cheio de mistura e dá a beber dele; Apocalipse 14:10 – Também o tal beberá do vinho da ira de Deus que se deitou, não misturado, no cálice da Sua ira.)

Como Cristãos, quando se fala em cálice, recordamos de imediato a oração no Getsémani: Passe de mim este cálice. (Mateus 26:39), em que o cálice está associado ao sofrimento experimentado por Cristo.

Na segunda metade da resposta, Jesus refere o baptismo: Podeis ser baptizados com o baptismo com que sou baptizado? O baptismo aponta para uma dissolução pessoal e voluntária num meio que nos é hostil e até fatal. Etimologicamente, significa “mergulhar” e mergulhar bem fundo. Nesta resposta de dupla interrogação, estão implícitos o sofrimento (o cálice) e a morte (o baptismo).

A resposta dos dois não se fez esperar: Disseran-Lhe eles: Podemos. (v. 22). A história futura confirma que, conscientes ou não das implicações da resposta, estavam a ser sinceros. Tiago foi o primeiro apóstolo a conhecer o martírio – foi morto à espada por Herodes Agripa (Actos 12:1), enquanto João viveu o exílio na inóspita ilha de Patmos, onde teve a visão do Apocalipse.

Podemos dizer, como Robert Little, que “Tiago morreu como mártir e que João viveu como um mártir”. Recordemos que mártir significa testemunha.

Relembremos que Tiago e João pertenciam a um grupo mais estrito dos Doze em que se incluía Pedro, testemunha do momento alto da vida de Jesus – a Sua transfiguração; recordemos também que no jardim do Getsémani Jesus os tomou à parte, tendo eles testemunhado a tristeza e a angústia do Mestre e que João era chamado “O discípulo amado”, muito próximo de Jesus, em cujo peito se reclinava.

Talvez por todos estes episódios os dois irmãos se julgassem credores ou merecedores de uma benesse especial de Cristo e, por isso, se tenham atrevido a formular tal pedido.

Sentar-se à direita e à esquerda da majestade implica o reconhecimento de segunda autoridade do reino. O que os dois irmãos estavam a pedir era nem mais nem menos que uma posição de autoridade sobre todos os outros agentes de autoridade, apenas inferior à autoridade suprema. Recorde-se que Jesus está sentado à mão direita do poder de Deus (Lucas 22:69).

Jesus confirma (v. 23) que os dois beberiam o cálice e seriam baptizados com o Seu mesmo baptismo (Marcos 10:39). Isso de facto cumpriu-se como já vimos. No entanto, sentar-se à direita e à esquerda, isso estava fora de questão (Mateus 20:23). É assim que este texto deve ser entendido e não como se a Jesus faltasse o poder para o conceder. Foi como se Jesus dissesse: “Essa atribuição não depende dos vossos esforços nem é uma recompensa pela vossa dedicação.”

De facto, no reino de Deus há dois agentes intervenientes: Deus e o Homem. É o que vemos em João 3:16 que também nos diz que o que Deus tinha a fazer já fez (os verbos de que Deus é sujeito estão todos no passado) e que naquilo que é da competência de Deus o Homem não pode intervir. Em sequência, o Homem tem o seu papel a desempenhar no avanço do Reino, que é a sua entrega e dedicação. A atribuição do galardão é da competência exclusiva de Deus.

E esta resposta de Jesus fala à nossa condição e deixa pistas preciosas. Por O seguirmos voluntária e comprometidamente aceitamos ter de passar pela dor, pelo sofrimento, pela angústia, se essa for a porção que Ele nos tem destinada, sabendo que Deus, como justo juiz, nos dará o galardão que nos tem reservado. Caso contrário, se tivermos olhos para o galardão que nós próprios nos atribuímos, estaremos a agir como mercenários, cujo interesse é egoísta e não a busca da maior glória de Deus, conforme Jesus já ensinou: Buscai primeiro o reino de Deus e a sua justiça e todas estas coisas vos serão acrescentadas. (Mateus 6:33).

A reacção dos outros discípulos (v. 24) não podia ser senão de indignação. De indignação não porque considerassem errada a motivação dos dois irmãos mas porque eles se lhes anteciparam no pedido que eles próprios não recusariam solicitar.

Como é tão contemporânea essa atitude. A tentação e a atracção pelo poder são um mal a que poucos conseguem resistir. A História está cheia de exemplos de homens que transformaram a acção do Reino de Deus num mero jogo de interesses, em que o oportunismo campeia e em que a subjugação do outro, recorrendo ao medo e às maldições, é moeda corrente que ganha mais validade com a pompa de títulos e a elocução de pretensas profecias justificativas.

Nos versículos 25-28, Jesus deixa bem clara a natureza do Reino de Deus na sua relação com o poder.

Entre os reinos deste mundo, a ambição maior é o exercício do poder baseado na subjugação dos súbditos. Todos os meios e armas são lícitos para se alcançar essa subjugação que é a deterioração de uma submissão genuína e voluntária. Duas dessas armas são o medo e o servilismo. Em conjunto, transformam os súbditos numa massa alienada, acrítica e supersticiosa.

No Reino de Deus, as coisas não funcionam assim. Tal o líder, assim os liderados. O nosso Rei assumiu a nossa natureza, identificou-se com as nossas fraquezas, sentiu as nossas insuficiências, experimentou as nossas angústias. Riu-se connosco. Chorou connosco. Despiu-se de qualquer título, não impôs a Sua realeza, mas caminhou pelas mesmas pedras que os nossos pés calcorrearam.

Quem entre vós quiser fazer-se grande seja vosso serviçal. (v. 26)

Só pode ser grande aquele que não dispensa quem está no mais fundo do vale mais escuro e o traz para a luz, mostrando-lhe que há um que vê em cada um o potencial para que a glória de Deus encha a terra como as águas cobrem o mar.

A Deus toda a glória.

O Mancebo Rico

O Mancebo Rico
Mateus 19:16-30

Jorge Pinheiro 7Dr. Jorge Pinheiro

Este texto, cujas passagens paralelas se encontram em Marcos 10:17-31 e Lucas 18:18-30, narra o encontro entre Jesus e um mancebo rico que pretende saber o que fazer para, segundo as suas palavras em Mateus, “conseguir a vida eterna” ou “herdar a vida eterna”, conforme as descrições de Marcos (10:17) e Lucas (18:18). Na Sua resposta, Jesus indica-lhe que deve guardar os mandamentos, recomenda-lhe que se desfaça dos seus bens em favor dos necessitados e ordena-lhe que O siga (vv. 17,21). Esta resposta que não agrada ao mancebo e em especial o comentário de Jesus que aponta a incompatibilidade do amor ao dinheiro e a entrada no gozo da vida eterna deixam os discípulos de Jesus perplexos ante as exigências que o Mestre coloca.

Na realidade, neste texto podemos detectar duas secções: uma, a indagação do mancebo e outra, a perplexidade dos discípulos.

E a pergunta que se impõe, como de resto sempre se impõe quando lemos um texto da Escritura é: que lições podemos extrair destes incidentes que tenham relevância para a nossa vida diária e existencial? Essa, de resto, deve ser uma pergunta constantemente presente sempre que lemos um texto da Escritura. Só assim ela se torna viva e actuante.

Da leitura dos três relatos, podemos concluir que se tratava de um mancebo. É verdade que Marcos o retrata como um homem e Lucas como príncipe, enquanto Mateus especifica que se tratava de um mancebo. Por estas qualificações, não erramos se afirmarmos que era jovem e muito provavelmente com algum poder na sociedade. Também dele sabemos que era rico (Mateus 19:22) ou muito rico (Lucas 18:23) e piedoso (Mateus 19:20).

Na Sua resposta, “Guarda os mandamentos” (v. 18), Jesus refere, por esta ordem, os seguintes mandamentos do Decálogo (vv. 18-19):

 não matarás – 6º mandamento;
 não cometerás adultério – 7º mandamento;
 não furtarás – 8º mandamento;
 não dirás falso testemunho – 9º mandamento;
 honra teu pai e tua mãe – 5º mandamento.

Todos estes mandamentos eram do conhecimento de todo o judeu, principalmente dos mais piedosos e poder ser encontrados em Êxodo 20:1-17 e Deuteronómio 5:6-21, sendo alguns repetidos em Levítico 19:3-16.

A par destes, Jesus acrescenta um outro que é muito do conhecimento e do agrado dos Cristãos: “Amarás o próximo como a ti mesmo”. Curiosamente, este mandamento é repetido por Jesus em Mateus 22:39 quando interrogado acerca do grande mandamento. Esta máxima é também referida por Paulo em Romanos 13:9 e Gálatas 5:14 e por Tiago (2:8).

Talvez por esta insistência do Novo Testamento, muitos terão pensado que Jesus seria o autor desta frase, condensando e resumindo nela todo o carácter e intenção da Lei, tornando-a um mandamento para os Seus seguidores. Mas verdade é que Jesus não é o autor desta máxima ou mandamento. Na realidade, Jesus limita-se a citar o que já fora declarado na Lei – Levítico 19:18. No máximo, d’Ele se poderia dizer que Jesus alça esta declaração à categoria de mandamento. Mas nem isso podemos afirmar porque este texto acompanha toda uma série de outros mandamentos. Basta ler o contexto para se perceber que era nessa categoria que os Judeus conhecedores o aceitavam.

Concluímos, então, que, na sua resposta ao mancebo, Jesus não ”inventa”, não apresenta nenhuma nova doutrina, não revela uma novidade até então desconhecida. Esse mandamento – porque era de facto um mandamento – encontrava-se na Lei e tinha a mesma força, poder e autoridade que qualquer outro dos mandamentos. Infringi-lo seria incorrer nas punições previstas na Lei.

Jesus alinha então este mandamento com todos os outros que anteriormente cita (vv. 18-19). E a verdade é que o mancebo confessa ou reconhece que se trata de um mandamento, uma vez que responde: “Tudo isso tenho guardado desde a minha mocidade” (v. 20).

Todos sabemos que os mandamentos dados por Deus a Moisés no monte Sinai e inscritos em duas tábuas de pedras são em número de dez. Por isso se chamam Decálogo – dez mandamentos. Por norma, os estudiosos costumam dividir esses 10 mandamentos em duas secções:

- do 1º ao 4º mandamento referentes à posição do crente face a Deus;
- do 5º ao 10º mandamento referentes ao relacionamento do crente para com o seu semelhante.

De facto, nos quatro primeiros tudo gira em torno da divindade – Deus é único, não aceita a idolatria ou Sua representação, exige respeito pela Sua natureza, estabelece um tempo obrigatório de adoração. Quanto aos restantes, verificamos que o seu incumprimento ofende directamente a pessoa humana tanto no que ela é, no que tem, nos seus compromissos assumidos e na sua integridade.

Na resposta de Jesus, salta à vista que Ele não refere nenhum dos 4 primeiros mandamentos. Todos os que menciona referem-se não à relação vertical com Deus mas à relação horizontal com o nosso semelhante.

Será que os quatro primeiros são menos importantes ou que era nessa qualidade que Jesus os considerava? Naturalmente que não, porque a adoração e o respeito pela divindade eram as marcas distintivas de toda a mentalidade e vivência judaicas e estavam no centro de toda a mensagem e ministério de Jesus. Acresce que o simples nome de Israel lembrava constantemente ao Judeu que pertencia a um povo que levava em si a marca de Deus, o seu Elohim.

Qual a razão de Jesus ter mencionado apenas mandamentos relacionados com o próximo? Diversas serão as razões, mas podemos apontar duas:

Em primeiro lugar, todo o sistema religioso e principalmente o judaico e, por extensão, o cristão gira em torno desses dois eixos atrás referidos:
- o vertical – relação com a divindade;
- o horizontal – relação com a humanidade.

É fácil a relação vertical porque apenas Deus e o sujeito, ou seja, o crente, estão envolvidos, o que faz com que seja fácil mostrar junto dos semelhantes que a nossa relação com Deus é sem mácula. Basta encher a boca com o nome de Deus, basta decorar alguns mandamentos (não todos, porque isso dá muito trabalho) para que os outros vejam que reconhecemos a Escritura como base de fé, basta estar presente no dia da celebração e oferecer sacrifícios, se tal for ou não necessário (e quando não é necessário, oferece-se porque reforça o carácter de piedade), basta mostrar que se contribui para a obra de Deus, de preferência de um modo patente ou inferido para que os outros saibam que se contribui. Ou seja, basta apresentar de si próprio uma imagem de religioso piedoso, cumpridor dos preceitos estabelecidos.

Já a relação horizontal é mais complicada e exige mais de nós. Alguns, para a cumprir, vêem o próximo em si mesmos e, em consequência, aplicam a si mesmos o que deve ser aplicado ao outro e assim pensam estarem a cumprir essa relação. Para esses, tudo gira em torno de si próprios, das suas necessidades e anseios, porque eles são o próximo de si mesmos. Um pouco em jeito dos monarcas absolutos para quem l’État c’est moi, o Estado sou eu, frase atribuída ao Rei-Sol de França, Luís XIV, epítome do rei absoluto, e que ainda hoje tem muitos imitadores nos mais diversos campos, o religioso inclusive.

O problema com os que assim procedem é que tratam Deus como um palhaço e o seu semelhante como uma alimária. A religião dos tais é de pura hipocrisia, totalmente falha de uma gota sequer de espiritualidade.

Que Deus nos guarde e nos ajude a vigiar para que a nossa atitude perante Ele seja de coração aberto, no reconhecimento da nossa incapacidade e necessidade, para que os nossos olhos e ouvidos sejam lestos a colocar o nosso semelhante em primeiro lugar.

Perante este quadro, é fácil então negligenciarmos o próximo e centrarmo-nos apenas no nosso umbigo porque só temos olhos para a nossa necessidade pessoal e, esquecidos de que estamos neste mundo para sermos testemunhas vivas do amor de Deus, vivemos como exilados da pátria celeste, não vendo a hora de lá chegar. E vivemos por antecipação com uma vida cinzenta, aparentemente feliz mas na realidade destroçados pelas amarguras desta existência, porque “o mundo está no maligno.”

A segunda razão da resposta de Jesus prende-se com a religiosidade e respectiva prática do mancebo. Tudo indica que transformara toda a sua religiosidade numa prática formal dos preceitos da Lei. Em última análise, podemos concluir sem receio de errar que a sua religiosidade era mais moral que espiritual. Ou seja, respeitava os mores, os costumes que a Lei estabelecia. É verdade que uma espiritualidade verdadeira e pura gera sempre uma moral respeitada que se identifica com uma ética profunda, mas o inverso não é necessariamente verdade. Ou seja, dito de uma forma mais simples, a pessoa, o crente, pode ser religiosa e não ser espiritual, enquanto o crente espiritual manifesta a sua religiosidade sincera e consistente. De igual modo, o crente espiritual manifesta sempre uma ética irrepreensível, enquanto o moralista não é necessariamente um crente espiritual. O que significa que o crente deve caracterizar-se por ser primeiro espiritual. Sendo-o, torna-se obrigatória e consequentemente um praticante ético.

O que é ser um crente espiritual? De entre as muitas abordagens e definições, para facilitar a compreensão, podemos dizer, repetindo Jesus, que espiritual é o crente que ama a Deus acima de todas as coisas e o próximo como a si mesmo, numa atitude de auto-renúncia em que coloca o outro (Deus e o próximo) em primeiro,

Desta verdade faz eco São Paulo quando estabelece um confronto a carne e o espírito e designa por carnais os que não são espirituais.

Ora, quando um crente substitui a espiritualidade pela moralidade está longe de cumprir a Lei de Deus e não pode assim ser reconhecido como espiritual.

E foi isso que Jesus disse ao mancebo. E foi essa falha que detectou no mancebo. O mancebo era uma pessoa de elevada craveira moral mas de baixa estatura espiritual. Por isso, Jesus disse-lhe que lhe faltava uma coisa (Marcos 10:21). E que coisa era essa que lhe faltava? Faltava-lhe a renúncia, ou melhor, a auto-renúncia.

É o que vemos em Mateus 19:21: Se quiseres ser perfeito, vai, vende tudo… e segue-me. O mancebo, enquanto judeu, era filho de Abraão e esta resposta de Jesus era-lhe familiar porque lhe recordaria sem dúvida a ordem de Deus a Abraão: Anda na minha presença e sê perfeito. (Génesis 17:1). Deus não precisa de muitas palavras para dizer tudo quanto nos é necessário. Quanta teologia encontramos nessa simples e curta frase! Duas coisas Deus nos exige: andar na Sua presença e ser perfeito, sendo que “ser perfeito” é o resultado de “andar na Sua presença.” E como é grande a tentação de invertermos essa ordem. Só seremos perfeitos se andarmos na Sua presença. Se não andarmos na Sua presença, nunca seremos perfeitos. E andaremos na Sua presença se O amarmos acima de todas as coisas e o próximo como a nós mesmos.

Mais uma vez, Jesus não inventa nada e limita-se a trazer à lembrança a necessidade de operacionalizarmos o que já foi dito e revelado.

Abraão recebeu essa ordem depois de deixar tudo para trás. Em Ur, era rico, era abastado, era príncipe e, como tal, era poderoso. O mancebo preenchia todas essas qualidades abraâmicas mas faltava-lhe una coisa: abandonar Ur. E a sua Ur eram as suas riquezas, era aquilo que lhe dava auto-sustento, era aquilo que lhe garantia estatuto. Como é difícil ao moralista abandonar a sua Ur!

O versículo 22 revela isso sem qualquer margem para dúvidas: Retirou-se triste, porque possuía muitas propriedades. Ou seja, apesar de toda a sua religiosidade e de toda a sua moralidade, faltava-lhe a capacidade de auto-renúncia, de estar com o coração aberto à necessidade do outro, disposto a suprir-lhas com tudo quanto era seu.

Ante a reacção do mancebo, Jesus extrai a conclusão lógica que deixa os discípulos mergulhados na estupefacção: É difícil um rico entrar no Reino dos Céus. (v. 23).

Como curiosidade, note-se que no original grego o versículo 23 refere “o reino dos céus” (), enquanto no versículo 24, que repete a ideia anterior mas com outro fraseado, o termo usado é “reino de Deus” (). Isto indica-nos que em Mateus as duas expressões são sinónimas e referem-se à mesma realidade, ao contrário do que alguns comentadores pretendem, estabelecendo uma diferença entre ambas as designações. Elas referem-se ao mesmo conceito.

Se no versículo 23 a ideia que fica é da dificuldade, já no 24, é de impossibilidade. De facto, é impossível um camelo passar pelo fundo de uma agulha, a menos que o camelo fosse quase microscópico ou a agulha fosse a de um gigante de uma altura quilométrica.

Sendo as suas afirmações equivalentes, podemos afirmar que a dificuldade de um rico entrar no reino dos céus não é diferente da sua impossibilidade.

Alguns, achando exagerada a afirmação do versículo 24, pretendem suavizá-la, afirmando que “camelo” se refere não a um animal mas a uma linha grossa, uma vez que, no Grego, a diferença entre “camelo” e “linha grossa” ou “cabo” é de uma simples letra.

Outros, aceitando que “camelo” se refere a um animal, centram a atenção na “agulha” e pretendem que esta se refere a uma porta muito estreita supostamente existente nas muralhas da cidade e conhecida por agulha.

Ora, a primeira posição é contrariada pela linguística e a segunda pela história. Só nos resta aceitar que Jesus disse exactamente o que o versículo declara, tanto mais que há um provérbio semelhante no Talmude, em que “camelo” é substituído por “elefante.”

Mas então, dirão, estamos na presença de um exagero. Sim, de facto é uma linguagem de exagero ou, em termos técnicos, diríamos que esta é uma figura de estilo chamada hipérbole, em que se faz uma afirmação exagerada.

E quem não usa hipérboles no seu discurso, quantas vezes no seu dia a dia? Que o digam os amorosos, os pescadores e os que estão envolvidos numa qualquer campanha eleitoral.

De resto, vamos encontrar uma outra hipérbole no discurso de Jesus. Basta irmos a Mateus 18:24 e 28. Traduzindo esses valores, temos que:

Dez mil talentos correspondem a 60 milhões de dracmas (6 seguido de sete zeros) ou 216 toneladas de prata, uma vez que 1 talento equivale a 6000 dracmas e uma dracma a 3,6 gramas de prata. Sendo uma dracma equivalente a um dinheiro (ou denário) e um dinheiro a um dia de trabalho, temos que 10000 talentos correspondem a 60 milhões de dias de trabalho (ou cerca de 166 mil anos). Esta era a dívida do servo ao rei. Em contrapartida, o servo era credor de 100 dinheiros ou 100 dias de trabalho. O que significa que o que ele devia ao seu rei era 600 mil vezes mais do que aquilo que o seu conservo lhe devia.

Sendo honestos, fácil é reconhecer que nesta parábola Jesus usa uma hipérbole. E que hipérbole!

Fica então esta verdade: o amor ao dinheiro impede a nossa entrada no reino dos céus. E por que razão nos impede?

1º – torna-se um ídolo, relegando assim Deus para um plano inferior;
2º – leva-nos, à semelhança do mancebo rico, a considerar que a riqueza nos dá primazia e direito de aquisição dos bens espirituais: “Que bem farei para herdar a vida eterna?” (v. 16). Em todo o bem que o rico possa fazer, o seu dinheiro está presente, transformando esse acto em transacção comercial;
3º – em última instância, as riquezas tornam-se o nosso Deus porque passamos a depender delas e não d’Aquele que é dono de todo o ouro e de toda a prata;
4º – por via desta troca de prioridades, esquecemo-nos da nossa insuficiência e contingência e tornamo-nos paradoxalmente escravos do nosso dinheiro, com a ilusão de que somos nós quem está no controlo;
5º aceitamos um prato de lentilhas, trocando o que somos pelo que temos, esquecendo que trocamos o permanente pelo passageiro. E ecoam-nos as palavras de Jesus: “Não ajunteis tesouros na terra, onde a traça e a ferrugem tudo consomem” (Mateus 6 :19-20).

E é em sequência que devemos entender a afirmação de Jesus no versículo 29:

“Todo o que tiver deixado
casas
ou irmãos ou irmãs
ou pai ou mãe
ou mulher
ou filhos
ou terras
por amor do meu nome, receberá cem vezes tanto e herdará a vida eterna.”

“Que farei para herdar a vida eterna?” (Marcos 10:17; Lucas 18:18) era a pergunta do mancebo. A resposta de Jesus não podia ser mais clara: para herdar a vida é necessária, é indispensável, é obrigatória a auto-renúncia. E auto-renúncia que pode implicar ou envolver o que nos é mais caro:

- a nossa família – que nos liga à nossa origem, simbolizada pelos pais; que nos liga à nossa identidade e ao nosso presente, simbolizados pelos irmãos; que nos liga ao nosso futuro, simbolizado pelos filhos; que nos liga à nossa intimidade, simbolizada pela esposa;
- mas também a nossa casa e as nossas terras que nos apontam o nosso espaço, o nosso refúgio, o nosso sossego e as nossas realizações pessoais.

Este é o preço que nos é exigido para herdarmos a vida eterna e que se obtém da nossa parte por um acto voluntário de auto-renúncia.

Ora, esta auto-renúncia não se obtém nem está dependente do nosso dinheiro, que está dependente e ligado ao ter, ao transitório, mas está relacionada com a vontade, com a essência daquilo que mais profundamente nos caracteriza – a nossa aceitação de amar Deus acima de todas as coisas e o próximo como a nós mesmos.

Por essa razão, a bênção suprema que é a posse da vida eterna e as bênçãos maiores ou menores que experimentamos nesta caminhada de amarmos Deus e o próximo não estão dependentes do muito ou pouco que possamos ter em dinheiro ou em bens materiais.

A posse de riquezas é sempre contingente e não se traduz necessariamente em sinal de bênção divina. É verdade que na Sua soberania, Deus pode abençoar-nos com bens materiais e quando isso acontece devemos estar-Lhe gratos, sabendo que com muito ou com pouco, Deus estará sempre connosco a guiar-nos no nosso percurso e nas nossas escolhas.

Pela reacção dos discípulos, verificamos que eles ficaram aturdidos com a elevada fasquia que Jesus estabeleceu.

Muito provavelmente, à semelhança de muitos Cristãos dos nossos dias levados ao engano pelas sereias e arautos de um evangelho materialista, mercantilista e plutocrata, ou seja, em que o dinheiro é rei e mola real do evangelho e prova da bênção de Deus, os discípulos também pensariam que um rico piedoso, cumpridor dos preceitos da Lei é prova das bênçãos de Deus, tanto mais que não faltavam textos que prometiam ser-se colocado por cabeça e não por cauda (Deuteronómio 28:13).

Por isso, exclamam com um nó na garganta (v. 27): “Eis que deixámos tudo e te seguimos. Que receberemos?”

Eles tinham andado com Jesus, tinham recebido os Seus ensinamentos, tinham testemunhado os Seus milagres e mesmo assim foi necessário que Jesus lhes recordasse duas verdades fundamentais:

1. A nossa relação com Deus não é de natureza comercial; e
2. O amor ao dinheiro é a subordinação do Deus criador aos interesses mesquinhos do que é passageiro.

Quantas vezes o Cristão cede à tentação de esquecer a verdade pura e cristalina do evangelho, substituindo a sua mensagem pelos devaneios e fantasias da nossa imaginação!

Que nós, os que nos confessamos seguidores de Cristo, tenhamos presente os Seus ensinamentos e a Sua promessa de que aquilo que nos espera nesta vida e na vindoura ultrapassa em muito tudo quanto possamos imaginar ou desejar ou que o dinheiro nos possa dar.
A Deus toda a glória!