HUMANOCENTRISMO

Ricardo Jorge Mendes Rosa

RicardoRosa_5Autoajuda. Perdoa-te a ti mesmo. Ama-te. Todas estas são expressões muito em voga na atualidade. Nunca tanto como hoje, nem na era do Renascimento, se viu um culto à própria pessoa ou ao Humanismo. O Homem decidiu ser o centro de si mesmo. E tudo o mais que exista, serve para orbitar em torno dele, como um acessório. Esta é uma resposta natural (embora desequilibrada) aos excessos vividos em pleno Séc. XX e às atrocidades dos conflitos armados, problemas económicos e crises humanitárias que o assolaram. Após épocas marcantes como o advento do laicismo ou o majestoso desenvolvimento da produção industrial em massa, o Homem virou-se para si mesmo. Afinal, porque não o faria? Livrara-se do peso da tradicionalidade religiosa e desenvolvera métodos que o faziam produzir ainda mais e melhor. Os acontecimentos que vieram marcar a humanidade, nas décadas seguintes, como a Grande Depressão, as duas Grandes Guerras ou a proliferação de doenças como o cancro e a SIDA, levaram o ser humano a querer auto-valorizar-se e proteger-se.

O problema com este tipo de pensamento, não se fica apenas pelo excesso de vaidade da auto-valorização. Quando o ser humano se promove como o seu próprio deus, fecha-se hermeticamente num vácuo de auto-adoração. O seu foco coloca-se demasiado em si mesmo e fica cego com tamanho brilho. Aí, não existe proteção sadia que lhe valha. Porque todo o ser humano é falível, estamos perante um perpetuar de falibilidade incessante e um desgaste rápido do Homem. E isso leva a excessos de vida como o consumo de drogas, de álcool, de pornografia e violência… Daí resultam também problemas como a anorexia (tão indiretamente promovida pelas indústrias do cinema e da moda), a glutonaria, o isolamento e por consequência a ascensão das depressões e dos suicídios. Na ânsia de se querer amar a si mesmo, o Homem tornou-se o seu próprio inimigo. E porquê?

Porque não consegue satisfazer-se plenamente. Porque a sua satisfação é efémera, já que é alimentada por coisas efémeras. O ser humano decidiu esquecer Deus, esperando por outro lado, conseguir fazer-se semelhante a Ele. Esta foi a causa do problema de Babel (Génesis 11:1-6), o querer substituir Deus e ser autossuficiente. Foi também parte do problema de Job (Job 6:1-4), no que tocou à autojustificação (Job era realmente um servo fiel e reto, mas só perto do fim do livro é que percebe que quem justifica e valida a nossa vida é Deus). Tudo porque Deus não criou o Homem para ser autossuficiente e independente mas sim para ser relacional e dependente (Génesis 1:27,28a; 1ª João 1:3b). Para se relacionar em primeiro lugar com Deus e em segundo lugar com o seu próximo (Lucas 10:27). Para ser dependente, não de vícios ou de maus hábitos, mas sim de um amor inexplicável e intenso (Tiago 1:2-4).

Enquanto não percebermos que não temos capacidade de nos perdoarmos a nós próprios, e que isso é apenas uma miragem e deturpação do verdadeiro perdão de que precisamos… vamos continuar com o mesmo caminho amargo. Tudo isto porque como Paulo escreveu, todos pecámos e estamos afastados da presença gloriosa de Deus (Romanos 3:23). Mas é por causa do Seu amor, do sacrifício de Jesus Cristo na cruz e da restauração de laços entre Deus e Homem, que hoje podemos viver livres e sem domínio do mal na nossa vida (Romanos 3:24-26, 2ª Coríntios 5:21, Hebreus 9:15).

Precisamos de ir além da cultura da auto-ajuda. Precisamos de admitir que queremos ajuda e que o nosso Ajudador é Cristo. O amor que temos por nós próprios deve derivar não do que temos ou fazemos, mas daquilo que somos quando nos submetemos a Deus (Efésios 2:8-10). A receita para o nosso valor não se encontra no que os outros digam, mas naquilo que temos a certeza que Cristo nos traz.

Porque o Reino que Cristo instaura no nosso meio, não é um reino com fronteiras, bélico ou economicista. Mas é um reino de justiça, paz e alegria no Espírito Santo (Romanos 14:15b).

Só assim poderemos viver verdadeiramente reconciliados connosco próprios, porque fomos restaurados para viver novamente à imagem e semelhança de Deus. Em caridade e comunhão com Ele e com os outros.

A atualidade ao serviço de Cristo

 

Ricardo Jorge Mendes Rosa

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Ao rever as notícias nos media tenho sido confrontado com temas, que de modo mais ou menos incessante, atraem o meu pensamento momentaneamente, até que ele se eclipsa.

Desde greves de estivadores até manifestações a favor de instituições de ensino privado, passando por várias polémicas sobre bancos, offshores, entretenimento ou dramas; todo o conteúdo com que os media nos bombardeiam, pode encher o nosso pensamento.

O que me levou a refletir neste momento, é algo simples. Qual o estado da Igreja em Portugal, em relação a estes assuntos e o que estamos a fazer para levar o Evangelho a quem necessita?

Além da ação social, algo que é necessário e que deve fazer parte do ADN das igrejas locais, a ação espiritual (ou seja, o anunciar do Evangelho) é vital para que levemos Cristo a ser conhecido pela nossa nação. Poderemos argumentar que falar de estivadores e colégios, a partir de um púlpito e numa celebração de igreja, é fazer política e está errado. Mas não nos podemos esquecer, que falar de algo nem sempre é subscrevê-lo ou promovê-lo. Temas como a justiça, a pobreza, o auxílio ao próximo ou a corrupção, tão combatidos no Antigo e no Novo Testamento, são ainda atuais. Podemos e devemos usar o que ouvimos hoje, como ponte para o anúncio do Evangelho. Podemos e devemos construir vias de comunicação com quem ainda não caminha com Deus, não através da terminologia teológica ou eclesiástica, mas da comum linguagem e problemas diários.

Muitas vezes, permitimos que todo o nosso evangelismo seja carregado de expressões eclesiásticas, que pouco ou nada dizem a não cristãos. Precisamos de reverter essa situação, usando a cultura e os focos comuns do dia-a-dia, a favor da pregação da mensagem de Jesus: existe vida além desta vida e temos que tomar uma decisão hoje!

Esta contextualização é necessária, não só para que sejamos ouvidos, mas para que sejamos (sobretudo) compreendidos. Ao pensarmos nos exemplos de Jesus (com as parábolas) ou de Paulo (com recurso a poetas e filósofos clássicos), percebemos que a ação criativa de Deus não se esgotou na Criação. Ainda hoje devemos buscar direção do Espírito Santo, para que possamos perceber como comunicar com as novas gerações. Não só porque os meios se desenvolveram, mas também porque estas mesmas gerações mudaram e com elas mudam os interesses, os níveis de literacia e alfabetização, a qualidade de vida, etc.

Precisamos, não de permitir que a cultura domine o Evangelho, mas que o Evangelho se sirva livremente da cultura e da atualidade como veículos e pontos comuns com a sociedade.

O INEGÁVEL DIREITO À VIDA

Ricardo Mendes Rosa

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O inegável direito à vida

O debate em torno do aborto é um tema actual e contínuo. Em Portugal, a lei da Interrupção Voluntária da Gravidez continua a ser terreno de batalha entre conservadores e liberais. Mas o que podemos nós, cristãos portugueses, fazer no que toca a este assunto? Além de nos manifestarmos em boletins de referendos, existe todo um trabalho de prevenção, aconselhamento e apoio a ser feito.

Se civilmente o problema começa no reconhecimento ou não do feto como uma pessoa com direitos, moralmente podemos dizer que o problema coloca-se a partir da fecundação. E porquê? Porque é na fecundação que se inicia um processo inegável e sem retrocesso. O desenvolvimento do ser humano! E este processo é sem retrocesso, dado que os casos de aborto espontâneo ou provocado não são uma reversão no processo desse desenvolvimento, mas sim uma finalização abrupta do mesmo. Se médicos e cientistas discutem as razões científicas, nós (os não clínicos) devemos discutir as razões morais e filosóficas da prevalência do direito à vida.

 

NEGAÇÃO ELEMENTAR

Em primeiro lugar, negar o direito à vida a quem quer que seja, torna-se um acto de objeção. Não de consciência, nem de liberdade, mas de existência. O mesmo tipo de objeção à existência usada pelo nazismo na Europa, ou pelo comunismo em países do Leste, Ásia e América do Sul. Posicionar-mo-nos a favor da morte de um ser sem que coloque em risco integral a vida de outro, é tomar parte na atribuição de uma pena de morte, sem crime à vista. Nega-se o direito a viver, despreza-se o decreto divino da proteção da vida. E não se resolve qualquer problema, excepto em casos de risco de vida, com uma atitude amputativa.

Recordemos que, o mandamento do decálogo “não matarás”, refere-se concretamente a não retirar uma vida inocente. Dificilmente encontraremos exemplo mais simples. Como cristãos, aceitar o aborto per se é aceitar que uma pessoa possa determinar a morte de outra. A sacralidade da vida humana deve ser protegida. Caso contrário, abrir-se-á sempre um precedente básico para a desconsideração do seu valor. Algo que Escrituras, Espírito e Tradição nos mostram ser incompatível com Deus. A existência de um ser humano não pode, nem deve, ser limitada por outro ser humano que não o queira. Permitir isso, é permitir a mesma lógica base por detrás dos campos de concentração e dos pogroms. E mesmo como não cristãos, aceitar que uma vida em desenvolvimento seja terminada, é aceitar um princípio derrotista à nascença. O de que é mais fácil terminar, do que investir no crescimento. Mesmo no humanismo secular, a vida deve ser preservada. Não desprezada.

 

VIVER É MAIS DO QUE SENTIR

Em segundo lugar, devemos aceitar que viver é mais do que sentir. Isto é, é vai além de ter a capacidade física e os consequentes meios (órgãos e tecidos) inicial ou totalmente desenvolvidos. Dizer que um feto pode ser destruído, porque não pensa ou ainda não tem capacidade de sentir, é o mesmo que desconsiderar o direito à vida de pessoas com deficiências profundas a nível mental ou físico. O facto de as faculdades físicas ainda não estarem plenamente desenvolvidas, não legitima o aborto. Tal como a ausência ou parco desenvolvimento dessas faculdades, não são (nem devem ser) motivos para justificar ou apelar ao infanticídio. Caso o fossem, então bebés que nasçam cegos, surdos ou com qualquer outra deficiência, deveriam ser etiquetados como dispensáveis. Esse tipo de ideia é espelhado na eugenia de Francis Galton, aproveitada mais tarde pelos movimentos racistas norte-americanos ou pela ideia ao arianismo nazi.

Este tipo de justificação, o da falta de capacidade para, é usado por Peter Singer para justificar o infanticídio, algo que certamente criará repulsa em nós. A lógica usada deve ser a mesma. Um ser em desenvolvimento é um ser em desenvolvimento. Mas não é um ser subdesenvolvido ou sem possibilidade de se desenvolver. Com ou sem ajudas de terceiros. A Medicina recorre a transplantes e próteses para viabilizar vidas. Porque não viabilizar também a existência de um ser humano, cujas possibilidades de crescer e ser feliz devem ser potenciadas desde a fecundação, sobretudo porque não é classificado como uma doença?

 

PROTEÇÃO DIVINA

Como cristãos, precisamos reforçar no nosso meio que Deus é quem dá e retira a vida. E mesmo os não cristãos, aceitaram que a partir da altura em que nos julguemos “deuses” uns dos outros, que presenteiam ou retiram o dom da vida a terceiros, estaremos a entrar num estado caótico social. Aliás, essa é a grande alavanca na luta contra os crimes de honra. Nada dá o direito a alguém de assassinar um seu semelhante. A sociedade tornar-se-á um campo de batalha, não um local de crescimento. E estaremos a caminho da primordialidade evolucionista da espécie humana, mas num estado agravado. Deixamos de matar para comer, para matar por opção. Desceremos um degrau abaixo da irracionalidade, num ponto onde nem a tese de Michel Henry (exposta n’A Barbárie) poderá ser suportada.

Não nos compete tentar substituir Deus nessa (ou em qualquer outra) tarefa que sejam da Sua esfera. A lei mosaica proíbe a morte de um ser inocente, ao mesmo tempo que defende o direito à vida do ser humano. O aspecto moral da mesma servia para ensinar a Israel como viver e encontra-se propagado ao longo de todo o Antigo Testamento. E o Cristianismo, por consequência lógica, deve respeitar esses ensinamentos, porque o próprio Cristo nasceu para dar vida e relembrar que continua a ser tarefa do Homem, crescer, amadurecer e multiplicar-se. Esse mesmo Cristianismo que influenciou a sociedade ocidental, dando-lhe as raízes judaico-cristãs sobre as quais está erigida, deve continuar hoje a lutar pela perseverança do direito a viver. O direito à vida é outorgado apenas por Deus, ainda que na concepção de uma criança, homem e mulher sejam “ferramentas” no processo. Existe uma total inimputabilidade de culpa no que toca ao bebé que se encontra em gestação no útero, no que diz respeito à sua origem. No entanto, existe também uma total proteção divina desse direito a ser, a viver.

O útero feminino é o local de acomodação do bebé, está preparado para isso, recicla-se regularmente para tal. Não é um local que é tomado de assalto por uma espécie estranha. Para que possa ser habitado, são necessárias condições específicas, as quais são criadas através do acto sexual. Assumir que o útero da mulher pertence única e exclusivamente à mulher, podendo esta descartar um feto em desenvolvimento, é um erro. Não porque o útero não pertença à mulher, mas porque de facto, a mulher não tem propriedade sobre o feto que lá se encontre. Por outras palavras, o feto não é um órgão da mulher, é um ser em pleno desenvolvimento, totipotente e acomodado do local devido. Salvo raras excepções, não foi introduzido contra vontade, não é causa de uma doença, nem tão pouco é causado por problemas de hereditariedade. Crentes e não crentes devem defender uma posição de salvaguarda do lado mais indefeso. E nesta situação, é e (raras vezes) deixará de ser o bebé.

A DÚVIDA DE GODOT

godot_peqHá quase três décadas, no final do ano de 1988, a revista Newsweek fazia a recensão crítica da peça À Espera de Godot, levada à cena na Broadway, na cidade de Nova Iorque.  Não sendo a Newsweek uma revista literário-filosófica, não foi porém surpresa ler que o texto de Samuel Beckett era a mais famosa peça do século.

Talvez tenha sido surpreendente, sim, ler os questionamentos que o articulista e crítico teatral colocava sobre o significado da personagem, uma espécie de deus ex-machina que nunca aparece em cena, Godot. Perante a espera do misterioso Godot, perguntava-se se seria Deus? A Morte? Ou até, a o simples problema social da espera de um emprego?

Tendo chocado audiências no início da década de 50, inquiria-se se não seria outro o significado, se Godot não era um conceito, uma «espécie de Ocidente», que perante as ruinas da 2ª Guerra Mundial e dos escombros éticos e morais que o nazismo deixara, não seria um retrato moral da humanidade em crise e, aparentemente, sem respostas? Supostamente, a peça apresentava ao mundo ocidental, que este estava estruturado no desconcerto de uma máxima beckettiana: «Não há nada no mundo mais cómico do que a infelicidade».

De tudo o que se pode tirar dessa peça teatral, que se desenrola numa incerteza e em futilidades para passar o tempo das suas duas personagens principais e, por isso mesmo, passível de não ser apropriada pela nossa ética protestante e evangélica, fundamentalmente temos a dúvida de uma procura, que está disfarçada de «espera».

A conhecida repulsa da doutrina protestante pelas artes visuais e pelas artes da representação teatral , no decorrer do século XX, oriunda do protestantismo ascético que na Europa desde o século XVI era puritano, nunca ajudou a que se analisasse essa obra do dramaturgo, romancista e poeta irlandês. Nesta considerada a mais significativa peça do absurdo, de Samuel Beckett, não se espera, como tudo leva a crer, mas, sim, procura-se. Neste aspecto pode ser vista como para-religiosa.

As personagens procuram conhecer quem é ou o que é esse Godot, o qual esperam, numa repetição dos dias, inúteis e sem sentido ou sem esperança como no trabalho de Sísifo. Uma tarefa que a literatura dita ateísta não descarta e assume como unhope, palavra significativamente utilizada pelo poeta Thomas Hardy, que escreveu um poema (In Tenebris ) sobre a desesperança:
negra é a noite de enfrentar;
mas a morte não vai desconcertar
aquele que, sem a menor dúvida,
espera na desesperança
Esperar sem esperança é, na sua essencialidade, esses dois dias consecutivos nos quais um par de homens patéticos afirma pelas palavras e pela mímica esperar um ausente, que se chama Godot.
A ausência de Godot, bem como numerosos outros aspectos da peça, deram origem a várias interpretações desde o dia da estreia teatral, ocorrida em Paris, em 1953. «Não posso explicar as minhas obras. Cada um deve averiguar por si próprio o que entende nelas»- afirmou Beckett.

Os insucessos da expectativa são os ingredientes, a intriga da peça. Ambos os principais personagens esperam expectantemente e sem sucesso por alguém. Enquanto isso ocorre, isto é, nada ocorre, procuram e discutem, procuram não a substância e o fundo de quem ou do que esperam, mas os significados colaterais. Curiosamente, até discutem o «arrependimento», a partir dos Evangelhos. Ler e utilizar o conteúdo salvífico de um episódio dos Evangelhos em uma peça deste tipo, é ter diante dos olhos um argumento que se revela contrário ao ateísmo, ou no mínimo ao agnosticismo aqui representado na espera de deus ex-machina ou de um deus-absconditus.

Não temos forçosamente que ler Godot como sendo Deus, mas que esta peça não é ateísta, não é. Até porque um dia Beckett, entrevistado, disse, cito de cor: “Se quisesse falar de Deus na peça, ter-lhe-ia chamado “Waiting for God”, ou “En attendant  God”.

© João Tomaz Parreira

O CALVINISMO DE ALBERT CAMUS

JTP12O CALVINISMO DE ALBERT CAMUS

© Ensaio de João Tomaz Parreira

É a Graça de Deus uma esquina onde nos encontramos, numa surpresa, com Ele? Quer dizer, a Salvação surpreende-nos?
Sim, mas não deveria, porque Cristo morreu perante os olhares do mundo, no monte do Gólgota, pelos homens. “Quando for levantado da terra, atrairei todos a mim mesmo ” (Jo. 12,32) – repetiria Jesus aqui a imagem universal do modo como haveria de morrer.
Todavia, o que a História da Igreja a partir da Reforma nos concede pode ter uma surpresa numa formulação teológica inusitada. Esta pode mesmo surpreender-nos por ter vindo de um autor como Albert Camus.
Não é estranho para ninguém que conheça a obra desse escritor, que o mesmo se tenha preocupado com a religião e, designadamente, com o cristianismo.  O cristianismo nunca foi uma palavra morta nem excedentária ou meramente tolerada na prosa de romance ou pensamento filosófico do autor de “O Estrangeiro” ou dessa outra obra-prima da literatura europeia do século XX, “A Peste”.
Camus não se confina ao plano histórico, material, da vinda de Cristo para iniciar a Era Cristã, ultrapassa-o para o plano doutrinal e espiritual. Escreveu que “ o Cristo veio resolver dois problemas principais, o mal e a morte, que são precisamente os problemas dos revoltados”.
Obviamente que encaminha o Cristo como uma solução para uma das partes principais da sua filosofia ao escrever o livro “O Homem Revoltado”. Este é, para o escritor, “o homem que diz não”, exactamente ao Mal e à Morte, e ao silêncio do mundo perante ambos. Contudo, ninguém se pode livrar do poder nem de um nem da outra sem Cristo, afirma a doutrina cristã.
No que concerne ao Cristianismo, Albert Camus jamais lhe fechou as portas. Embora na sua estruturação do mesmo, o escritor tenha usado os materiais mais da história que da teologia.
As próprias janelas que abriu, dirigem-se sobretudo para o sacrifício expiatório e cruento de Jesus Cristo. Acerca do Salvador considera o «grande gesto heróico do seu sacrifício» que veio tomar a seu cargo o mal e a morte. E nesta afirmação mais do domínio da opinião (doxa), que do conhecimento (epistéme), Camus é reductor.
Jesus Cristo resolveu, de facto, os problemas da morte e do mal, vencendo ambos na Cruz, mas sobretudo veio resolver a relação da criatura humana com o Pai Celestial. Veio para tornar os crentes filhos de Deus. Veio para manifestar a Graça Deus – como Paulo diria, por epístola, a Tito-, veio como a humanização da Graça divina, se assim nos podemos exprimir, não como um ornamento dogmático para a Teologia, mas como Salvação para todos os homens.
Camus teve sempre, nos seus romances, um diferendo aberto com o mal na perspectiva de questionar se este era necessário à criação divina – se era assim, escreveu ele, «então a criação é inaceitável.»
Todavia, o que a Bíblia Sagrada e a teologia Cristã nos mostram é que Deus não criou o mal, obviamente.
Visto de outro ângulo, Camus vê o sacrifício de Jesus pela humanidade baseado num princípio de injustiça.  «O cristianismo na sua essência e sua paradoxal grandeza é uma doutrina da injustiça, está fundado sobre o sacrifício do inocente e a aceitação desse sacrifício.»- escreve nos seus Cadernos.
Porém, o sacrifício do Filho de Deus, como o próprio Deus, não podem ser submetidos ao julgamento moral do homem. A injustiça residia no homem, “não há um justo nem um sequer”, era necessária a justiça divina. Foi a injustiça que fez com que Deus manifestasse a sua justiça em Cristo, pela Graça.
No romance “A Peste”, de 1942, em que se discutem problemas sociais, morais e religiosos, e a inevitabilidade do surgimento de uma epidemia mortífera, na boa tradição do romance francês do século XIX, o autor traz aos leitores a tarefa da Graça na homília do padre Paneloux perante um templo cheio de homens e mulheres com medo da peste, que visitavam Deus apenas ao domingo.
“Se hoje a peste vos olha, é porque chegou o momento de reflectir. Os justos não podem receá-la(…). Na imensa granja do universo, o flagelo implacável baterá o trigo humano até que a palha se separe do grão. Haverá mais palha que grão, mais chamados que eleitos, e esta desgraça não foi desejada por Deus” (pág.110) (o sublinhado é nosso)
Com efeito, no decorrer da homília, chocamos com um muro intransponível, para um cristão, o cansaço de Deus de distribuir a sua Graça, cansado de esperar o arrependimento, desviou o seu olhar.
É, de facto, um “calvinismo” no conceito de Camus, o olhar benévolo de Deus sobre uns e o afastamento do Seu olhar de outros. Embora eu ache que Deus não usa a eleição por estar bem com os eleitos e irremediavelmente mal com os não-eleitos.  ©

RELIGIÃO – LIBERDADE E VIOLÊNCIA

SamuelPinheiro 4_peqRELIGIÃO – LIBERDADE E VIOLÊNCIA

Julgo que não será errado dizer que todas as religiões em algum momento consideraram que o poder político era um aliado para impor as suas crenças, a sua moral e a sua ética através da violência, da perseguição, da intimidação, do medo, da pobreza e da miséria. Ninguém pode atirar a primeira pedra porque todos têm os seus telhados de vidro. Mas existem algumas diferenças de fundo como é o caso de facilmente podermos constatar que alguém pode matar invocando o nome de Jesus Cristo, mas não pode matar por ordem de Jesus Cristo. Ele nunca lançou mão da violência, embora não exista qualquer base para a conceção de um Cristo frouxo, inseguro, politicamente correto. Jesus foi frontal e honesto com os poderosos da religião, com os hipócritas, com o povo, com o sistema. O mesmo não se pode dizer de alguns líderes religiosos que lançaram mão das armas para expandir as suas ideias. Jesus nunca o fez nem nunca o promoveu, nem deu orientações para que assim fosse feito. Antes bem pelo contrário, sempre o condenou. O projeto de Jesus Cristo não é político nem pode ser politizado ou partidarizado. Trata-se de um plano espiritual que tem repercussões em tudo o que diz respeito à vida de cada um que o aceita e com o qual se compromete.
Pessoalmente continuo a perfilhar a ideia de que sendo a religião o esforço do homem para tentar alcançar Deus, Jesus não veio para implantar ou dar origem a nenhuma religião. A religião é o esforço do homem. Jesus Cristo é o próprio Deus vindo ao encontro dos homens, fazendo o que eles nunca poderiam fazer. O homem não consegue alcançar Deus. Pode tatear respondendo ao apelo que o próprio Deus incutiu dentro da Sua obra-prima. Admito que outros possam ter outra perspetiva e defendam outra argumentação. Esta serve de forma razoável e julgo que de modo muito contundente a essência singular do evangelho.
O evangelho é totalmente avesso à estratégia da força para impor as suas convicções porque no evangelho não é pelas regras, pela ética ou pela moral, pela liturgia ou pelos serviços religiosos que alcançamos a Deus, como também não o alcançamos pelas nossas boas obras, pela nossa eventual virtude. Não é por sermos “bons” que logramos a nossa salvação. Por isso a fé que nos vem pela palavra de Cristo e da qual Ele é o autor e consumador não pode ser legislada. É pela graça, pelo favor de Deus que somos reconciliados com Ele. O evangelho aponta-nos a cruz de Jesus Cristo como o único meio pelo qual podemos ser salvos. Nunca como hoje, no ambiente que estamos a viver em termos do terrorismo, isso se torna mais urgente e mais premente. Não podemos obrigar os outros a viver como nós consideramos que devemos viver. Não podemos obrigar os outros a aceitar o que para nós é certo ou errado de acordo com a revelação divina. Deus deu-nos orientações muito específicas de acordo com as quais devemos viver, quando em liberdade e por nossa escolha decidimos seguir a Jesus. Mas o que para nós é certo, não pode ser imposto a quem não quer viver dessa forma. O próprio Deus procede dessa maneira. Com isto não estou a querer dizer que a sociedade não beneficie como um todo quando os valores e princípios cristãos são absorvidos. Mas não confundamos a cultura influenciada pela fé cristã, com a vida cristã decorrente de uma experiência pessoal com Jesus Cristo, com o novo nascimento, com a conversão, com o arrependimento, com a mudança espiritual provocada pelo Espírito Santo. Por outro lado também não é menos verdade que quando nos parece que a sociedade perfilha uma cultura dita cristã, o que de hipocrisia sobeja é muito mais do que imaginamos. O mesmo acontece em todos os grupos, sejam religiosos ou político-partidários quando defendem uma determinada legislação e afinal de contas a vida privada dos proponentes e defensores está nas suas antípodas.
A sociedade não pode viver sem algumas definições muito claras e objetivas do que se deve ou não deve fazer, sobre o que é correto e o que não é. A justiça é essencial à vida em sociedade. Tem de existir um padrão pelo qual uma sociedade se deve reger. O relativismo e o pluralismo mais cedo ou mais tarde redundarão em desastre quando levados ao extremo. Já hoje somos confrontados na escola e na sociedade em geral com crianças, adolescentes e jovens que não têm qualquer noção de respeito, de reconhecimento dos princípios da vida em sociedade, de aceitação das normas dentro de uma sala de aula, da valorização do conhecimento e do trabalho. Mente-se, engana-se, rouba-se, ameaça-se, agride-se, provoca-se, etc. com uma consciência cauterizada, um sangue frio que causa uma profunda apreensão em relação ao presente e ao futuro próximo.
A função de sal e de luz da igreja e dos seguidores de Jesus na sociedade não é o de impor a sua moral, mas a de viver essa mesma moral no relacionamento pessoal com cada um dos vizinhos, na consciência das nossas fraquezas, debilidades, erros e falhas; sem qualquer sobranceria ou sentido de superioridade. Com amor e aceitação, não subscrevendo o que está mal, mas não recusando a pessoa porque todos nós sofremos do mesmo problema, e todos carecemos da mesma graça divina, do mesmo perdão e transformação.
A teocracia não é o projeto cristão para as sociedades em que vivemos. A parte da Bíblia que nos narra a história do povo de Israel dá-nos a conhecer um regime em que os princípios dados por Deus deveriam ser observados por todo o povo embora eventualmente apenas durante o período do êxodo com Moisés, de Josué e durante o período do profeta Samuel a liderança espiritual abarcava a totalidade da vida da nação. Durante o período dos juízes e da monarquia embora tenhamos situações distintas de rei para rei, e fosse expetável que este estabelecesse a lei dada por Deus, existia uma separação de funções. Com a vinda de Jesus Cristo o Seu projeto é a da edificação da Igreja da qual fazem parte todos os que têm uma experiência pessoal com Ele.
No terrorismo do islamismo radical temos uma hostilidade em relação à cultura ocidental que é mais pós-cristã do que cristã, defende-se um conjunto de posturas principalmente em relação às mulheres que colidem com a permissividade do ocidente. Embora na Bíblia nós encontremos valores que se opõem à mesma cultura, o facto é que eles não nos foram dados para serem impostos pela via da lei. Ao longo da história e nos dias de hoje podemos encontrar certos grupos em que o fanatismo grassa e em que o exagero nos usos e costumes é alarmante. Mas o facto de existir essa clivagem, ela nunca por nunca ser poderia ser assumida pela violência no contexto do evangelho. Como cristãos sofremos essa perseguição e corremos o risco de sermos atingidos por ela.
Mas existe uma outra perseguição que não pode ser ignorada nem silenciada por grupos extremistas e outros que nem serão assim tão extremistas, contra todos os que confessam a Jesus Cristo como o único Senhor, como Salvador, como o seu Deus. Mas disto Jesus Cristo nos avisou de forma clara e solene. A Igreja surgiu e desenvolveu-se num ambiente hostil, de perseguição feroz, tanto movida pela religião como pelo poder político. Não esperemos que hoje aconteça de forma diferente. Não foi por causa disso que os seguidores de Jesus deixaram de viver em função dos valores do amor aos próprios inimigos, retribuindo o bem ao mal que lhes era infligido. O sangue dos mártires potenciou o crescimento qualitativo e quantitativo da Igreja. Fomentar uma guerra religiosa não está dentro dos parâmetros da fé que provém de Jesus Cristo, nem sequer nos deixar enganar ou iludir com ela. Compete-nos esclarecer, explicar de modo inteligente, sábio, amistoso mais do que atacar quem não crê em Quem nós cremos. Embora devemos cultivar uma postura esclarecida e rigorosa sobre as várias correntes religiosas não devemos generalizar e colocar tudo no mesmo saco, porque nem todos os que professam uma determinada religião são terroristas ou intolerantes.
Julgo que em relação ao poder político seja ele central ou local não podemos embarcar na lógica de que se não nos dão a nós também não devem dar a outros, mas no mínimo que nos concedam o que disponibilizam a outros, tendo em consideração que a nossa profunda fragmentação é um obstáculo muito sério à equidade neste como noutros domínios. Uma linguagem desbragada não condiz com o espírito e a letra do evangelho de Jesus Cristo e muito menos a defesa da restrição ou anulação da liberdade religiosa em relação a determinados grupos religiosos ou a perseguição por motivos religiosos sem confundir esta postura com a legítima ação do Estado de oposição, contenção e repressão pelas vias legais de todos os incentivos à violência e ao terrorismo.
Mantenhamos sempre no nosso coração as palavras de Jesus: “Bem-aventurados os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus. Bem-aventurados os perseguidos por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus. Bem-aventurados sois quando, por minha causa, vos injuriarem e vos perseguirem e, mentindo, disserem todo o mal contra vós. Regozijai-vos e exultai, porque é grande o vosso galardão nos céus; pois assim perseguiram aos profetas que viveram antes de vós.” (Mateus 5:12)

Samuel R. Pinheiro

A RELIGIÃO CRISTÃ ENTRE OS ATEÍSMOS DE “O ESTRANGEIRO”

JTP11A RELIGIÃO CRISTÃ ENTRE OS ATEÍSMOS DE “O ESTRANGEIRO”

© Ensaio de João Tomaz Parreira

«O Estrangeiro », de Albert Camus, romance publicado em plena II Guerra Mundial ( Julho de 1942), é um livro sobre a condição humana, do ponto de vista individual.
O manuscrito do romance pretendia aparecer com um subtítulo: «O Estrangeiro, ou Um Homem Feliz ». A justiça, a indiferença, cada homem ser uma ilha na sociedade, as circunstâncias que fazem as tragédias, a desgraça do drama humano, a alegação de que a vida não vale a pena, a rejeição da transcendência, o assumir que Deus está ausente, seria contudo a sua trama. Há mesmo uma narração na primeira pessoa, lá para o final do livro, que  impressiona «Eu estava agora completamente encostado à parede »- diz o protagonista.
O escritor Camus, resumira em 1955 o seu romance L,Étranger sob  a constatação da angústia da personagem, que está perdida perante a vida, os concidadãos que não entende, o querer ser marginal a todos os rígidos sistemas, usando uma metáfora :  «Na nossa sociedade, todo o homem que não chorar no enterro da mãe corre o risco de ser condenado à morte.»
Deste ponto de vista, é um livro que abre linhas de análise sobre a hipocrisia vigente desde sempre na sociedade humana. Das máscaras que um tem que usar para ser aceite na sociedade, contrariamente à singeleza da Verdade e das relações que Cristo ensinou baseadas no Sim,sim! Não, não!
É um livro que inquieta.  Sobretudo porque somos levados a pensar nas formas que pode assumir a inumanidade do homem.
Ora, do ponto de vista cristão, designadamente do cristão evangélico, quanto mais livre o homem que ser de Deus menos humano é. Observando a  inumanidade no homem, veremos que tem causas que residem no ateísmo, na rejeição de Deus e do domínio do Pecado. E incoerência das incoerências, considerar que existe o Pecado (a existência do mal, o sofrimento das crianças, etc.), sem a existência de Deus, é sem dúvida o absurdo.
É um livro, finalmente, que propõe a sólida realidade da indiferença diante do próprio destino humano, mesmo que se apresente O Estrangeiro como o romance que mostra a imagem da revolta individual de um homem.
MEURSAULT O INDIFERENTE
Uma indiferença perante a existência, a dos outros e a própria : « Hoje a mãe morreu.Ou talvez ontem, não sei bem »;  «Disse que sim, mas que no fundo me era indiferente », uma vida que reage apenas ao momento hedónico, um vazio na alma, são, entre outras características, o que faz a personagem principal, Meursault, do romance camusiano. Neste a religião é tratada do mesmo modo, indiferentemente, tomando a justiça dos homens o seu lugar. Existem, no entanto, alguns referentes da religião entre o universo de O Estrangeiro no qual não há lugar para Deus, na armação psicológica do protagonista. Mesmo na narrativa minimalista com que o autor estruturou toda a narrativa, isso se percebe. De facto se Meursault fosse religioso, invocasse a existência de Deus, estivesse submetido ao Seu veredicto e disposto a aceitar Sua misericórdia, o livro não seria honesto, embora o romance seja também sobre a alma da personagem. Essa alma sobre a qual nos debruçamos e nada encontramos – como perorava no tribunal o procurador, dirigindo-se aos jurados, acerca do acusado Meursault, que «por causa do sol » tinha assassinado um árabe na praia.
«Dizia que, em boa verdade, eu não tinha alma e que nada de humano, nem um único dos princípios morais que existem no coração dos homens, me era acessível.»
Compreende-se assim que, durante todo o elemento tempo do romance, depois da prisão e de esperar pela execução da pena de morte que lhe foi aplicada, pelo tribunal de Argel, a personagem rejeite várias vezes a presença do capelão. «Não tenho nada a dizer-lhe ».
A negação de um confronto com o religioso, com a consciência de não ter a necessidade de  respostas, mas a marcar a precisão de ficar em silêncio, de não ter palavras perante aquilo em que não acredita.
Antes do crime e prisão, os dias de Meursault corriam ao acaso e sob o sol até à ligação da noite, em que as luzes não deixavam de prolongar o «sabor» do verão, do sal e do vidro luminoso do céu sobre o mar. O hedonismo da personagem é em tudo isso mais do que evidente. Diante de tal, Deus é rejeitado porquanto protagonista e autor o querem ausente. O pensamento profundo de Camus e « a sua incurável dilaceração(de alma) », embora reconheça a ideia de Deus respeitável, afirma, noutro lugar: «Ele sente que Deus é necessário e que é preciso que exista. Mas ele sabe que Deus não existe nem pode existir.»
Para o protagonista do romance, a existência do divino era-lhe indiferente, para o romancista argelino, de expressão francesa, a existência ou não de Deus não era indiferente, fazia parte dos absurdos do mundo.
MEURSAULT PERANTE A RELIGIÃO
No próprio início de todo esse processo judicial até à invisível mas implícita guilhotina, a religião é invocada à personagem do romance, mas como derradeiro recurso ou confronto peranteum culpado. As formas da religião, com que Meursault é confrontado pelo juiz de instrução, exibem um juiz e umapunição, mais do que um Salvador.
«Bruscamente levantou-se, dirigiu-se com grandes passadas para a extremidade da secretária e abriu uma gaveta. Tirou um crucifixo de prata e, agitando-o no ar, (…) com uma voz completamente diferente, quase trémula, gritou: «Conhece-O, conhece-O?. Respondi: «Sim, é claro que o conheço.» »
Em todo o caso, estava aberto o caminho para se poder falar de Deus e da capacidade divina de perdoar e de Jesus Cristo.
Esse método de «evangelizar» pertencia, contudo, à ordem das coisas, dentro do universo do juízo criminal e do presídio. Apresentava os julgadores como pessoas ética e moralmente capazes de exercer o papel divino na administração da justiça terrena.
«Disse-me então muito depressa e de um modo apaixonado que acreditava em Deus, que nenhum homem era suficientemente culpado para que Deus não lhe perdoasse, mas que para isso, era necessário que o homem, pelo seu arrependimento, se transformasse como que numa criança.»
Mas enquanto o juiz brandia o crucifixo diante dos olhos de Meursault, este ia  dizer-lhe, se tivesse podido, «que não valia a pena obstinar-se ». Foi, porém, interrompido com a pergunta « se acreditava em Deus ». Respondeu que não.
Aqui desmorona-se a ponte que ligaria a referência sobre a necessidade de Deus à vida do homem, e deste homem na condição especial de criminoso, de pecador.
Embora o argumentário narrativo a partir deste ponto vá no sentido da rejeição do ateísmo. O juiz asseverou-lhe que «era impossível, que todos os homens acreditavam em Deus, mesmo os que não o queriam ver. A convicção dele era essa e, se um dia duvidasse, a vida deixaria de ter sentido.»  O sentido da vida acaba por estar explícito na confissão do Cristianismo. É o instrutor do processo que o garante, ao voltar a exibir «a imagem de Cristo », no crucifixo, exclamando:
«Eu, sou cristão. Peço perdão pelos meus pecados a Este. Como podes não acreditar que Ele sofreu por ti? »
A atitude vital de Camus, as nuances entre o incrédulo e os cristãos que temperam as sombras do seu ateísmo começam neste ponto do seu romance. O que de resto não é novo, nem por acaso no autor. É célebre a Conferência do escritor no Convento dos Dominicanos, em 1948, com o revelador título O Não-Crente e os Cristãos .
No plano de quem não partilha das convicções dos cristãos, mas destes espera algo, é a tónica inicial dessa Exposição de Camus aos frades Dominicanos. Para o autor de O Estrangeiro,o Cristianismo não era «coisa fácil». Afirmou, entre outras
posições de honestidade, que «o cristão tem muitas obrigações, mas que não cabe precisamente a quem as enjeita lembrar a existência delas a quem já as reconheceu. Se alguém pode exigir alguma coisa do cristão é o próprio cristão.»
Contudo, o seu pensamento acerca dos cristãos e dos seus deveres é universalista.
«Não poderão deixar de se tratar de deveres que é necessário exigir de todos os homens hoje, sejam cristãos ou não sejam.»  Não tendo podido, como disse nessa conferência, aceder à verdade cristã, não pode honestamente afirmar que a mesma é ilusória.
Por isso em O Estrangeiro sente-se a compreensão dos valores cristãos e simpatia para com os dogmas. O Sagrado na sua obra não admite sincretismos, mesmo para um autor-filósofo como Camus, o secularismo não o afasta do Eterno. Disse-o, de uma forma não romanesca, mas ensaística no seu O Mito de Sísifo : «Eu sei que uma pessoa pode viver neste século e crêr no eterno.»
Passados mais de sessenta anos da publicação de O Estrangeiro e dos restantes trabalhos literário-filosóficos, ainda hoje se promovem colóquios sobre o Sagrado na sua obra. Como exemplo, em 2007, no 7º Colóquio Internacional  sobre o escritor, realizado em Poitiers, o tema geral foi  Camus et le Sacré (Camus e o Sagrado).
De facto, na obra de Camus há uma base inteiramente racional e materialista, que no fundo aporta a esta assertiva: «Eu creio que dois e dois são quatro(…), e que quatro e quatro são oito.»
Todavia existe o outro lado. Existe indubitavelmente um ponto em que Camus concordou, exprimindo-o em O Homem Revoltado de um modo claro: «Ninguém pode desencorajar o apetite da divindade no coração do homem.»
Deus é necessário e faz falta que exista, é sem dúvida a síntese do «ateísmo» contraditório de Albert Camus. Mas o escritor afirma «saber» que Deus não existe nem pode existir, sendo esta a síntese do seu pessimismo racionalista, face ao absurdo do mundo.
Contudo, os aspectos fora da norma da religião, continuam a existir diante da personagem de O Estrangeiro. Quando este -o Meursault- parece dar sinais de ter baixado a sua guarda de ateu ou agnóstico, perante o juíz («Vês, vês! Não é verdade que crês e que te vais confiar a Ele? »), é claro que, uma vez mais, disse que não. As tentativas de uma conversão mais exterior que na alma,  pela persuasão prosélita, para que o peso da justiça humana tenha razão, não faz parte da teologia da Salvação. «C’est fini pour aujourd’hui, monsieur l’Antéchrist.»- acaba por concluir, cordial mas desanimado, o instructor do processo ( «Por hoje acabou, sr. Anti-Cristo »).
A personagem de Camus, em O Estrangeiro, é o anti-cristo, numa recorrência que faz jus às preferências do escritor pelo filósofo  Nietzsche e às suas reflexões sobre este. Ainda assim não procurou ser o mentor ou o porta-voz de uma geração que vivia já no vazio deixado pela alegada « morte de Deus ». No que concerne ao Cristianismo, Albert Camus jamais lhe fechou as portas. Embora na sua estruturação do mesmo, o escritor tenha usado os materiais mais da história que da teologia. As próprias janelas que abriu, dirigem-se sobretudo para o sacrifício expiatório e cruento de Jesus Cristo.
Acerca do Salvador considera o «grande gesto heróico do seu sacrifício», e escreve em O Homem Revoltado que «Cristo veio resolver dois problemas principais, o mal e a morte, os quais são precisamente os problemas dos revoltados. A solução consistiu em os tomar a seu cargo.»  E nesta afirmação mais do domínio da opinião (doxa), que do conhecimento (epistéme), Camus é reductor. Jesus Cristo resolveu, de facto, os problemas da morte e do mal, vencendo ambos na Cruz, mas sobretudo veio resolver a relação da criatura humana com o Pai Celestial. Veio para tornar os crentes filhos de Deus.
Camus teve sempre, na sua obra lírica ou raciocinante, um diferendo aberto com o mal na perspectiva de questionar se este era necessário à criação divina – se era assim, escreveu ele, «então a criação é inaceitável.» O que a Bíblia Sagrada e a teologia Cristã nos mostram é que Deus não criou o mal, obviamente.
Visto de outro ângulo, Camus vê o sacrifício de Jesus pela humanidade baseado num princípio de injustiça.  «O cristianismo na sua essência e sua paradoxal grandeza é uma doutrina da injustiça, está fundado sobre o sacrifício do inocente e a aceitação desse sacrifício.»- escreve nos seus Cadernos. O sacrifício do Filho de Deus, como o próprio Deus, não podem ser submetidos ao julgamento moral do homem.
Ao contrário da sua personagem principal ( Meursault, no romance O Estrangeiro) Camus questiona Deus, coloca-O em julgamento, mas igualmente como ela  escolhe viver sem a ajuda sobrenatural de Deus. Por isso,  foi um escritor malogrado, sem futuro. Morreu aos 47 anos e a sua obra substituiu-o.
MEURSAULT E O ELEMENTO MATRIARCAL
Por fim, se a segunda parte do romance é a história de um processo em que tudo parecia ser verdade, do lado da acusação, e nada era verdade quanto ao retrato que se fazia da personagem acusada ( Voilà l’image de ce proces. Tout est vrai et rien n’est vrai. – exclamou o advogado de defesa: «Eis aqui a imagem deste processo. Tudo é verdade e nada é verdade.»), já a primeira parte sendo o desenrolar do quotidiano de um indiferente, é também o retrato de um homem no qual o elemento matriarcal acaba por se revelar do inconsciente religioso. Designadamente no que concerne ao respeito carinhoso pela sua progenitora.
Em outro romance, O Primeiro Homem, já publicado postumamente, o escritor traz ao nosso convívio cultural um aspecto tradicional das regiões do Norte de África, a tradição de que era intolerável um insulto à mãe.«O insulto à mãe e aos mortos constituíra desde sempre o mais grave nas costas do Mediterrâneo.»
Com efeito, eis um pormenor que pode parecer irrelevante, no início de O Estrangeiro,  mas que confere ao leitor indícios de que, apesar de tudo, vai estar diante de alguma afectividade e alguma piedade demonstrativas de humanidade. Camus sublinha a sensibilidade filial, ao escolher cuidadosamente as expressões do seu protagonista, que se refere à sua mãe comomaman : «Aujourd’hui, maman est morte ». É assim que começa o romance, originalmente.  Meursault não é de todo a personagem fria e neutral, nem uma pedra nem um poço de insensibilidade. E só a centelha do divino que existe na criatura humana pode operar este milagre de perfuração da mais densa e poderosa pedra, de clarear a mais profunda e espessa sombra, mesmo que não se deseja ouvir falar de Deus, como era o seu caso, para poder ficar «tranquilo».
O elemento matriarcal, é sabido que em todas as sociedades é um referente religioso. Apesar de todas as aparências e críticas sociais, Meursault é o homem do Séc.XX, e sobretudo dos nossos dias neste novo século, o homem que ama a mãe, o pai, os progenitores, mas que afirma não ter tempo nem meios sociais no reduto do lar, leia-se família, para sustentar esse amor. Daí os lares para a terceira-idade, não poucas vezes meros depósitos como aquele em Marengo, onde estava a mãe de Meursault.  ©

O SER HUMANO NÃO EXISTE SEM COMUNICAR

RicardoRosaO ser humano não existe sem comunicar. Não consegue subsistir sem comunidade. Simplesmente, uma das características dele tem a ver com interação. O Homem não é uma ilha isolada em si mesmo, para parafrasear John Donne. Família, emprego, vizinhança, tudo isto são exemplos simples da necessidade primária (que se encontra praticamente ao nível da necessidade de higiene e de alimentação, por exemplo) do Homem viver em comunidade com o seu semelhante. Cada vez que existe um corte nessa ligação, existe um deteriorar do interior de cada pessoa. Não fomos feitos para ser focos isolados, mas para vivermos como brasas numa fogueira.

Toda a experiência de vida no séc. XXI e na sociedade pós-ano 2000 tende a apontar para algo: isolamento. Somos alimentados com produtos que regulam, fecundam e vitaminam o nosso ego. A auto-satisfação ou a auto-justificação passaram a ser processos regulares no nosso dia a dia. A tecnologia veio tornar mais palpável o imaginário, ampliando os mecanismos do egocentrismo e da solidão, dando-lhes um conforto e espaço próprio. Nós, os que vivemos numa sociedade que já se pode apelidar de híper-pós-moderna, somos engolidos diariamente por uma onda de dependência tecnológica. Uma dependência já alvo de tratamento em hospitais, que acaba por sufocar quem cede a ela. Torna o ser humano alvo de uma nova forma de eremitismo: o ciber-social.

Se antes um eremita se centrava na meditação e no seu relacionamento pessoal com Deus, o eremita do séc. XXI centra-se no isolamento físico e emocional, mas não na ausência de interação com o outro. Escolhe afastar-se, porque “aquilo que os olhos não vêm, o coração não sente”.  Este fenómeno gerou por outro lado, aquilo a que podemos chamar de slacktivism ou activismo de sofá. A luta contra as desigualdades e injustiças deixou de se fazer nas ruas. Comícios e manifestações foram trocados por raids em murais ou partilhas online. E no entanto, com o aumento da exposição, que semiólogo e autor Umberto Eco tão bem critica (a par de Andrew Keen, autor e empreendedor britânico), perdeu-se a coragem e o conteúdo demonstrado por Martin Luther King ou Joan Baez.

Com efeito, por ignorância ou por vontade própria, assumimos uma atitude ao estilo de Caim. Deus pergunta-nos pelo amor ao próximo, aponta-nos para o Bom Samaritano e nós, cultura auto-suficiente, respondemos que não somos guardas dos nossos irmãos. E sentimos ciúme e inveja, não do que eles oferecem a Deus, mas do pouco que possam ter e nós não tenhamos. Deixamos que o nosso afecto pelo nossos semelhante seja toldado pelo egoísmo com que defendemos ideologias, posses, estilos de vida. Vivemos vidas plenas de obsessão em adquirir, parecer, estar e experimentar tudo o que seja a última moda. Mas a par de tudo isso, continua aquilo que é a nova moda, o isolamento. Não para reflexão, nem para desintoxicação, mas como modo de vida. Este auto-consumo tornou o super-homem de Nietzsche num ser fraco e amoral. Condiciona o ser humano a uma vida de pressão, de decadência da condição humana e de maior perversidade.

Nem mesmo o filósofo alemão desejava um tamanho isolamento para o Homem. Com tudo isto, a imagem e semelhança de Deus são corrompidas e invertidas. O Homem cria deuses à sua imagem, tornando-se em ídolos que não falam, não ouvem, não agem, mas que o controlam e geram nele dependência. E toda uma nova casta se levantam, ao estilo dos baalins do Carmelo. Mutilam os seus corpos em prol de maiores ganhos juntos desse deus. Rejubilam e em êxtase entregam o seu louvor à fortuna da mitologia grega.

O Homem corrompe-se e deixa-se corromper. Deixa de sentir e de fazer sentir. Deixa de chorar os mortos e as dores do próximo, porque deixa de sentir e abraçar o próximo. Esquece o amor e a reverência, o cuidado com órfãos, viúvas, estrangeiros e doentes. Só valida esse cuidado se o promover socialmente, mas sempre sem as cadeias da interação pessoal.

É deste tipo de perigo que Cristo nos veio libertar. Da miséria da auto-suficiência e da auto-justificação. Da tentativa falhada de o Homem se equivaler a Deus. E da sua consequente necessidade de ser restaurado ao estado primordial. O Éden é o local do nascimento, do firmar de uma união entre Criador e criatura. E na Cruz, Jesus instaura uma espécie de novo Éden até à Sua vinda. Criador e criatura são novamente unidos num pacto na noite anterior, simbolizado com pão e vinho, oficializado com o derramar de sangue inocente. Este meio Éden, um jardim intermediário, onde já se goza parte do Reino mas ainda não é totalmente visível ou experimentável. Uma espécie de Jerusalém em reconstrução pela mão de Neemias. Um local onde somos chamados a trabalhar, uma seara a ser ceifada, mas que também deve ser cuidada e nutrida.

Em Jesus, o ser humano é levado à presença pessoal de um Deus que chora, que ri, que sofre, que se alegra. Um Deus de amor, justiça, graça e verdade. Um Deus comunitário, que alcança uma pessoa, uma família, uma tribo, uma nação, o mundo.

Em Cristo, não existe isolamento mas comunhão. Não existem corações frios e mortos, mas vivos e apaixonados. As mãos e os braços estão abertos, não existe outra dependência que não d’Ele. Tudo é virado do avesso, como numa aversão à crise de identidade do Homem. Passamos a ser chamados Filhos do Rei e não Escravos do Império, como tão bem sublinhou o teólogo britânico John Stott.

Em Emanuel, Deus no nosso meio, não vivemos mais sós, mas sabemos que ainda que os mais próximos nos desamparem, temos a Sua segurança, presença e amor.
Ricardo Jorge Mendes Rosa

“… os que destroem a terra”

SamuelPinheiro 3“Chegou o momento de destruíres aqueles que destroem a Terra!” (Bíblia Para Todos)
“E tu destruirás todos aqueles que têm causado devastação na Terra.” (O Livro)
“… e destruir os destruidores da terra.” (A Mensagem)

Este é um aviso solene no último livro da Bíblia no livro do Apocalipse (11:18). A ganância dos homens e a sua rebeldia estão a ameaçar não apenas a sobrevivência da humanidade, mas do planeta terra. A terra geme por causa do pecado e aguarda com expetativa a revelação dos filhos de Deus (Romanos 8:18-25) que terá lugar quando Jesus retornar em glória – esta é a nossa bendita esperança e expetativa, que não nos faz cruzar os braços, mas agir respeitando o Criador e a Sua criação. Pode parecer que a nossa atuação distinta se perde no meio dos atentados gigantescos contra a criação, mas muitas pequenas ações fazem uma grande diferença!
A Bíblia tem um sério aviso em relação aos que fazem mal à terra – criação de Deus. Certamente que o texto não se limita apenas à questão ecológica, mas tem um sentido mais amplo em relação a toda a maldade, imoralidade, violência, guerra, opressão, exploração, etc. Mas não podemos nem devemos fugir às responsabilidades que nos são requeridas de cuidar dos recursos que Deus colocou ao nosso cuidado e gestão. Não somos donos de nada. Apenas somos depositários, mordomos, gestores dos bens que Deus criou para nosso satisfação e prazer. Não de um grupo reduzido, de uma elite, de uma minoria. As provisões de Deus são para todos sem diferença de raça, de capacidade ou competência. Exige-se trabalho e esforço, mas não existe base na diferença de competências para empurrar a esmagadora maioria para uma situação de pobreza ou miséria.
A rebeldia do homem em relação ao seu Criador, a sua desobediência, o seu descaso em relação não apenas à existência, mas à natureza e essência do ser divino, provocaram um desastre transversal que atinge também a natureza.
Existe uma radical diferença entre cuidar da terra por razões de mero egoísmo relacionadas à nossa subsistência, por razões de ordem religiosa que adora a mãe natureza e as forças cósmicas em que deus é tudo e tudo é deus, e o cuidado e preservação dos recursos naturais e da criação porque ela é obra do Deus pessoal trino (Pai, Filho e Espírito Santo), que nos criou com a incumbência de sermos seus cuidadores. Não cultuamos a terra mas o Senhor da terra. Não servimos a terra mas o Senhor da terra. E até quando somos incentivados a servirmo-nos uns aos outros, é como serviço a Deus. Ele é Aquele que coloca o foco em tudo o que fazemos, e quando de certo até realizamos com perda de valor, porque deslocámos a centralidade de Deus para nós mesmos, para os outros, para a criação e para os bens materiais. Deus é o Senhor de tudo, nada sai fora da sua jurisdição.
Durante muito tempo alguns textos bíblicos escatológicos, respeitante ao fim do atual sistema e era, não faziam muito sentido e até podiam ser tidos como exagerados. Para que seria necessária uma purificação da terra utilizando termos fortes e radicais como os do fogo (2 Pedro 3:10-13). Hoje que temos conhecimento de uma parcela muito pequena da contaminação que o homem tem provocado nos mares, nos ares e na terra, as toneladas de lixo que são lançadas para o espaço, que são armazenadas nos mares e enterradas no solo ou colocadas a céu aberto, é suficiente para confirmarmos a razão da Bíblia e é mais uma razão, entre muitas outras, para acreditarmos que ela é a Palavra de Deus.
O fato de fazer parte das nossas convicções a certeza de que Deus fará novos céus e nova terra e limpará e recriará (não apenas um mero processo de reciclagem em que porventura se recupera o que continua contaminado), não é premissa para darmos largas ao nosso descaso e contribuirmos para a degradação do meio ambiente. Cuidemos da criação em nome do Criador!

Samuel R. Pinheiro

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O SENTIMENTO DA PÁTRIA NOS CÂNTICOS

JTP10O SENTIMENTO DA PÁTRIA NOS CÂNTICOS
A pátria é sempre o lugar aonde se deseja regressar. Ortega y Gasset definia a propósito de Portugal que dois sentimentos se contrapunham: “a descoberta” como ansia de partir e a “saudade” como desejo de voltar. (1)
Mesmo que esteja a perder ou tenha já perdido a glória. Lágrimas sobre a pátria não são apenas dos homens, Jesus Cristo chorou sobre a sua pátria e a sua cidade terrenas. E as seis linhas expressivas da sua lamentação sobre Jerusalém não transportam em si nenhum moralismo legalista, pelo contrário, são um ressonante Cântico breve, do Amor decepcionado, entristecido e sublime (Mt 23,37)
Qualquer hino encomiástico sobre a pátria, para além do lirismo ou misticismo que contenha, assuma a forma de um gazel comum na escrita persa antes de Cristo ou o epopeico dos nossos Lusíadas, é sempre fundado sobre a experiência.
Pode ser a experiência da perda, ou a das vitórias, porque o Cântico não pode perder a perspectiva da diegese da História.

O Cântico de Moisés
Êxodo, 15
Segundo a Bíblia hebraica, o Velho Testamento, o Cântico de Moisés quando o povo irrompeu do Mar Vermelho, é o mais antigo cântico sobre o sentir a Pátria como dádiva de Deus, a Canaã do leite e do mel. É uma narrativa de vitória e das obras maravilhosas de Deus – escreveu no século XIX Mackintosh.
No campo da literatura universal está referenciado como o poema mais velho do mundo. Talvez porque a poesia das grandes literaturas desse período (1500 a.C), como a Suméria, tenha desaparecido, e o Cântico de Moisés, preservado na Bíblia Sagrada,  se conserve como possuindo uma sublimidade e formosura de linguagem que não tem rival.
Diante deste hino, vemos que muito antes da pátria física, um locus definitivo,  já havia um sentimento nacional de gratidão que deveria ser expresso em cântico. E este contém história e teologia, na vertente profética no que concerne ao que Deus prometeu ao seu Israel e o que deste requer.
“ Espanto e pavor cairá sobre eles (os príncipes de Edon); pela grandeza do teu braço emudecerão como pedra; (…) até que passe este povo que adquiriste” (verso 16)
É o cântico nacional, onde o ego nacionalista não existe, antes torna notória em Israel “a grande mão que o Senhor mostrou aos egípcios”. (14, 31)
A poética está, obviamente, em presença na metáfora que aponta o desmoronamento e o silêncio das hostes inimigas diante da força do braço divino :  “emudecerão como pedra”.
Com efeito, os meios estilísticos usados na diegese pelo autor do Êxodo, reforçam com a poética e a metáfora, a historicidade do acontecimento. “Cantarei ao Senhor – começa assim o Cântico- porque sumamente se exaltou”. Exaltou na História de Israel, abrindo caminho à alegria de ter uma Pátria na Palestina (verso 14). Mas a glória da pátria, era a Glória de Deus.

Canti (Cantos), de Giocomo Leopardi
A obra mais importante da poesia oitocentista italiana, reflecte tristeza, desânimo e dor. Desenvolve uma história social e política sem paz e canta uma “nação” vencida, sem glória.  O anti-lirismo da visão do poeta é manifesto, desde o início:

“O pátria mia, vedo le mura e gli archi / e le colonne  e  i simulacri e l’erme /
torri degli avi nostri, / ma la gloria non vedo”  ( «Eu vejo as paredes e os arcos / e as colunas e as estátuas e as solitárias / torres dos  nossos avós / mas a glória não a vejo»)

Esta invocação inicial traduz a nostalgia e a dor incurável pela perda da grandeza da pátria, que, segundo o poeta, “foi Senhora e agora é uma pobre escrava.” ( “che fosti donna, or sei povera ancella”)
Muitos séculos atrás, também Israel estava a perder a sua glória e de Senhora na Palestina passaria a escrava na Assíria e Babilónia.
Cântico da Vinha, de Isaías
Antes de serem os lábios de um profeta, que teria de confrontar a casa de Israel  proferindo a profecia da desintegração nacional por causa da iniquidade, os lábios de Isaías foram lábios de poeta.
«Cantarei ao meu amado, o cântico do meu amado a respeito da sua vinha»(Isaías 5)
Desde logo, o inevitável instrumento aplicado do paralelismo da poesia hebraica, de um modo tautológico, repetição na qual se invoca liricamente um cântico que corresponde ao sentimento de posse de algo amável. Uma vinha.
.«O meu amado teve uma vinha num outeiro fertilíssimo. / Sachou-a, limpou-a das pedras e a plantou de vides escolhidas; edificou no meio dela uma torre, e também abriu um lagar. Ele esperava que desse uvas boas, mas deu uvas bravas. (…) // Que mais se podia fazer à minha vinha, que eu lhe não tenha feito?»
Há no cântico do profeta uma técnica facilmente verificável de parábola. Literariamente, a técnica da figura, da tipologia, diria mesmo de semiótica divina por causa dos sinais (símbolos) com que identifica o fracasso espiritual da nação de Israel.
A invocação do poeta, dizendo-nos qual o teor do seu canto, qual o objecto comunicável do mesmo, conduz-nos a sensibilidade para o desfecho trágico.  Não há acção, mas existe lirismo, sem rima, nem métrica, mas com paralelismos. Há desenlace, elemento integrante da epopeia.  Harmonia e ritmo. Podemos perceber uma proposta do narrador poético acerca dos cuidados que o dono da vinha teve, as metáforas “uvas boas”, “uvas bravas”.
Pode não parecer pelo desenlace final, mas é um cântico do amor decepcionado de Jeová pela sua Vinha-Israel. De certo modo, só iria ter um paralelo com a lamentação de Jesus Cristo sobre a cidade de Jerusalém.

(1) “Saudade”, José Ortega y Gasset, Sete Caminhos, 2005

© João Tomaz Parreira