“FILHINHOS, GUARDAI-VOS DOS ÍDOLOS.”

SamuelPinheiroA idolatria é uma ofensa ao Deus verdadeiro que se deu a conhecer pessoalmente e em carne e osso na pessoa de Jesus Cristo. E é um atentado contra nós mesmos, porque agride a imagem e semelhança na qual fomos criados e que o pecado corrompeu.
Quando o homem nega Deus e O rejeita, procura para si substitutos e o próprio homem é um dos substitutos prediletos que começou com a rebelião de Lucifer contra Deus (Isaías 14:12-14), se propagou a todos os demónios que o seguiram e se infiltrou no género humano na queda de Adão e Eva. Ser igual a Deus, ser deus de Deus (como se isso fosse possível e não uma imbecilidade), ser deus de si mesmo e deus dos outros.
O apóstolo Paulo quando escreve a sua carta aos romanos, logo no primeiro capítulo apresenta uma descrição muito clara e objetiva do processo em que o homem se envolveu com a desobediência e todas as consequências espirituais e morais que daí decorrem. Ainda hoje estas palavras provocam comichão nos ouvidos de quem as ouve, mas elas são o diagnóstico que o próprio Deus faz da situação humana e do seu processo histórico: “A ira santa de Deus desencadeia-se dos céus contra a impiedade e contra a malícia daqueles que por meio dessas ações perversas tornam a verdade ineficaz. Não quer dizer que desconheçam a verdade acerca de Deus pois é Ele que lha tornou bem evidente aos seus olhos. Pois é certo que desde o princípio do mundo os atributos invisíveis de Deus, como a divindade e a omnipotência, não têm sido de difícil compreensão através daquilo que criou, e que com tanta frequência vemos e admiramos, a ponto de não poderem ser desculpados. Sempre se admitiu a existência dum Deus, embora se recusassem a reconhecê-Lo como tal, ou dar-Lhe graças pelas maravilhas que operou. Não admira que se tornassem insensatos nas suas argumentações, mergulhando suas mentes ridículas nas trevas cada vez mais. Por detrás duma fachada de ‘sabedoria’ não passam de autênticos loucos, ao pretenderem transformar a glória do Deus eterno numa imagem, imitação de homem mortal, ou mesmo de quadrúpedes, de aves ou de répteis. Abandonaram a Deus; não admira que Deus os abandonasse a eles, permitindo que sejam ludíbrio das suas más ações, a desonrarem os seus próprios corpos.” (Romanos 1:18-24 – paráfrase de J. B. Phillips)
Em toda a Bíblia encontramos denúncias muito vincadas contra toda a sorte de idolatria, como é o caso deste texto: “Prata e ouro são os ídolos deles, obra das mãos dos homens. Têm boca, e não falam; têm olhos, e não vêem; têm ouvidos, e não ouvem; têm nariz, e não cheiram. Suas mãos não apalpam; seus pés não andam; som nenhum lhes sai da garganta. Tornem-se semelhantes a eles os que os fazem, e quantos neles confiam.” (Salmo 115:4-8)
Desgraçadamente a nossa nação vive num atoleiro e prisão espiritual pela idolatria que grassa pela mão de responsáveis que se chamam de cristãos e introduziram todo um vasto panteão de imagens perante as quais as pessoas se dobram, a quem rezam, que transportam em ombros nas procissões cuja referência mais emblemática é Fátima, mas que tem muitos outros centros. Tudo isso é uma afronta à revelação de Deus na Bíblia que claramente condena semelhantes práticas. Não se trata de ofender quem quer que seja mas de sermos claros e denunciarmos toda a prática idólatra, que o texto bíblico repudia.
Um ídolo não é apenas uma imagem de pau, de pedra ou de metal perante a qual alguém se ajoelha e cultua (ou venera eufemisticamente). Ídolos são também o dinheiro, os bens materiais, atores e atrizes, jogadores e até nós mesmos. Tudo o que colocamos no lugar de Deus, e tem uma ascendência na nossa vida e comportamento que só a Ele pertence, é um ídolo. Todos os ídolos são uma prisão espiritual, emocional e mental.
É muito sugestiva a forma como as várias traduções e paráfrases nos apresentam o texto que nos serve de título: “Filhos queridos, cuidado com as imitações.” (1 João 5:21 – A Mensagem, Eugene H. Peterson). “Meus queridos filhos, guardem-se de qualquer coisa que possa tomar o lugar de Deus nos vossos corações.” (1 João 5:21 – O Livro). “Mas acautelai-vos, meus filhinhos, de todos os deuses falsos!” (1 João 5:21 – J. B. Phillips). O melhor que temos a fazer é precisamente isso. Só o verdadeiro nos realiza.

Samuel R. Pinheiro

UMA VISÃO POÉTICA DO PENTECOSTES CRISTÃO EM T.S.ELIOT

JTP9Passadas quatro décadas da primeira leitura do longo poema “Quatro Quartetos”(1), cujo início das considerações poéticas sobre o tempo está aqui

“O tempo presente e o tempo passado / Estão ambos presentes no tempo futuro”,  do poeta anglo-americano T.S.Eliot (1888-1965), tive necessidade de o reler. Logo um conjunto de versos sobre os quais passei em 1974, eclodiu em revelação estética sobre uma maneira de ver e de relacionar, literariamente, a beleza do Fogo do Pentecostes.

Na estrofe primeira da parte 4 do poema, que começa com a invocação da primavera a nascer no meio ainda do inverno, isto é, do degelo, quando os dias são brilhantes pela luz do sol a reflectir no gelo ainda, o Poeta escreve nos  versos 9º e 10º:

 

 “ E um clarão mais intenso que a chama do ramo ou do braseiro

Agita o mudo espírito: não vento, mas fogo de Pentecostes”

 

Nestes dois versos, que podem parecer estranhos, exemplifica-se o esplendor do sol a aparentar ouro e fogo no brilho sobre os ramos dos arbustos, através da neve ainda prevalecente.

Numa crítica e análise literária académica, alguém escreveu em 1997, que  “o gelo e a neve brilham com a luz no início da tarde. A possibilidade é de o “fogo pentecostal” ser aqui uma renovação que não está aliada às coisas temporais.”

Numa outra leitura, podemos ler no “mudo espírito” o ambiente silencioso do Cenáculo, os apóstolos e discípulos mudos sob a pressão exterior das circunstâncias, mas, também, sob o silêncio da espera da Promessa, que agita o lugar e os homens, sem vento, senão o “vento impetuoso” transportador das línguas de fogo.

 

Na literatura judaica e cristã (grega), sendo certo que “Pentekoste” significa estritamente “o quinquagésimo dia”, semanticamente estende-se, no plano histórico-teológico, a uma festa e ao que ela representava então, cinquenta dias depois da Páscoa, igualmente a celebração das colheitas como algo novo, as primícias, que Deus dava ao Seu povo e, sobremaneira, uma renovação das bênçãos divinas.

Depois, com o Cristianismo e a Igreja desenvolveu-se uma significação final. Com efeito, a Narrativa do Pentecoste passou a ser teológica. “O Pentecoste significa, primeiramente, o derramamento do Espírito que Deus prometeu para os tempos do fim” ( 2 ),  como descrito no profeta Joel, no Velho Testamento, de um modo escatológico. 

Mas para entendermos o alcance do poema objecto deste artigo, temos de recorrer a alguns elementos do mesmo, desde logo o título que corresponde à 4ª e última parte acima referida.    

 

 

“Little Ridding”

O poeta americano Thomas Stearns Eliot, converteu-se ao anglicanismo quando se “expatriou” na Inglaterra, em 1927, e muitos dos seus poemas utilizam uma linguagem cristã valorizada por uma dicção poética distante dos “regionalismos”, um discurso poético que foi considerado “cosmopolita” pelos críticos do modernismo das primeira e segunda décadas do século XX.

 

T.S.Eliot inspirou-se no legado histórico e religioso da pequena aldeia inglesa Little Gidding, incorporando elementos e símbolos da mesma e da sua comunidade religiosa do século XVII  no seu longo poema.

Um elemento para a percepção do texto poético, está aqui. É talvez desde o século XVII que se realiza uma peregrinação de cinco quilómetros até ao centro da aldeia Little Gidding, no verão,  durante a qual se vai meditando e fazendo orações até atingir o túmulo de Nicholas Ferrar.

A verdade é que Ferrar fundou aí, sobretudo, uma comunidade religiosa de oração, em 1626, sob a palavra divina do apóstolo Paulo aos Tessalonicenses: “ Orai sem cessar” (I, 5,17).

 

Este clérigo anglicano é assim central na metáfora do fogo do Pentecostes, do renovar das disposições para a vida no espírito, o ouro antigo que o fogo transforma em novidade,  que o poeta anglo-americano usa no poema.

Durante a sua vida, depois de ter sido ordenado diácono anglicano, ele e sua família e alguns amigos aposentados radicaram-se em Little Gidding, Huntingdonshire, Inglaterra, a fim de se dedicarem a uma vida de oração, jejum e esmola, baseando-se nas palavras de Jesus descritas em Mateus 6: 2,5,16. 

A comunidade restaurou o imóvel da igreja abandonada. Passou a ensinar, não só dominicalmente,  as crianças da vizinhança, cuidava da saúde e bem-estar do povo do distrito. Levou os camponeses à leitura diária do Livro de Oração Comum (The Book of Common Prayer), leitura que incluía o Saltério completo.

Sabe-se, por registos históricos da época, que havia dia e noite, pelo menos um membro da comunidade ajoelhado em oração diante do altar, para que pudessem manter aquele imperativo epistolográfico para a Igreja em Tessalónica.

 

Finalmente, à medida que foi desenvolvendo o poema, Eliot foi sempre manifestando a metáfora do fogo e das línguas do mesmo, fosse com que sentido fosse. Resta-nos a beleza final desses três versos com que termina o livro, até porque se lê e interpreta hoje no “nó de fogo” uma referência simbólica à Santíssima Trindade num Único Deus:

 

“Quando as línguas de fogo estiverem abraçadas

No coroado nó de fogo

E o fogo e a rosa forem um só”

 

 

  1. “Quatro Quartetos”, Edições Ática, 1970; “Poesia de T.S.Eliot”, Editora Nova Fronteira, Rio, 1981. 
  2. “Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento” , Vol. III, Edições Vida Nova, São Paulo, 1985.

     

                                                                                

    © João Tomaz Parreira

SEM DERRAMAMENTO DE SANGUE

SamuelPinheiro 2Uma declaração crua e dura de Deus através da Sua Palavra e que é muito difícil para o nosso orgulho e para a banalidade com que lidamos e tratamos com o nosso próprio pecado, se é que pura e simplesmente o negamos. Aceitar o pecado, falar em pecado, enunciar pecados é careta, absurdo, patético, idiota. As personagens dos filmes, das telenovelas ou dos programas de entretenimento que fazem referências ao pecado são apresentadas de forma bizarra, anedótica, ridícula. Quem fala em pecado é visto de soslaio e porventura necessitado de tratamento psiquiátrico. Em boa verdade a religião e os beatos têm dado do pecado uma perspetiva pouco consistente. Pecado é muito mais do que os pecados, mas a condição humana do homem separado de Deus e que decidiu viver a partir da ciência do bem e do mal, em vez de viver na intimidade com Deus, no Seu amor e santidade. O homem não foi criado para viver a partir e em função de regras. Leis acabam por surgir da parte de Deus para orientar o homem na vontade de Deus e se desviar do erro, da mentira e do pecado. Mas a lei e o seu cumprimento não resolvem a situação humana, sendo que todos os homens sem exceção são pecadores e pecam.
Só que o Deus da Bíblia, que não é um deus fabricado pela imaginação e engenho do homem, que não é fruto de um determinado contexto cultural e religioso, mas o Deus único e verdadeiro, criador dos céus e da terra, e que se deu a conhecer pessoalmente vindo ao nosso encontro na pessoa de Jesus Cristo. Jesus Cristo é Deus entre nós. E Ele veio precisamente para dar cumprimento a essa determinação da própria essência e natureza de Deus. Não se trata de uma extravagância ou um rigor exagerado. Essa exigência não podia ser cumprida por qualquer criatura. Deus não o requereu de nenhum ser criado, de nenhum querubim, arcanjo ou anjo, de nenhum homem. Só o próprio Deus podia satisfazer essa exigência de Si mesmo. Aí se encontra concentrada toda a graça divina. Deus requer o que só Ele pode satisfazer, e Deus cumpre na plenitude essa exigência na cruz de Jesus Cristo.
Na nossa naturalidade, pela nossa própria cabeça, nos nossos conceitos e não cabe a exigência de Deus do derramamento de sangue para que o pecado seja removido. Aqui reside todo o escândalo e loucura do evangelho: “sem derramamento de sangue não há remissão.” (Hebreus 9:22). O pecado gera a morte que a morte substitutiva de Jesus e a Sua ressurreição venceram definitivamente para todos os que n’Ele creem.
Jesus não morre na cruz por causa da hipocrisia religiosa, da cobardia política dos romanos, da maldade da turba manipulada e porventura dececionada com um líder que não satisfaz os seus desejos de pão e de milagres, sem beliscar a sua maneira de ser e de estar. Jesus morre de livre e espontânea vontade, sujeitando-se à vontade do pai, que é a vontade da trindade divina desde antes da fundação do mundo e da criação do próprio homem, na omnisciência de Deus que cria o homem sabendo qual será a sua rebeldia futura.
Deus não trata o nosso pecado de forma frívola ou superficial. Não se trata de colocar um remendo na nossa natureza, de dar uma cobertura de verniz na nossa autoestima, de esconder as nossas mazelas e corrupção com alguns embutidos de boas obras. Deus não quer ser um polícia cósmico que exige a nossa obediência, o Legislador que determina o modo como devemos agir e determina as consequências das nossas asneiras, da maldade e da barbárie humana. Sabemos muito pouco do pecado que grassa no mundo. Morreríamos de repulsa perante as barbaridades que são cometidas contra bebés, crianças, mulheres e idosos. O sofrimento que atravessa toda a história é inenarrável. Ele está diante dos nossos olhos na medida suficiente para que tenhamos consciência da sua gravidade e do que significa o decreto divino consumado na cruz. Mas o problema do pecado não é o problema dos outros é o nosso próprio problema. Eu tenho de lidar com o meu próprio pecado e só em Jesus posso ser reconciliado com Deus e recuperar a minha identidade arruinada.
A Páscoa é precisamente a realização divina dessa decisão. Na cruz Jesus resolveu a questão do pecado, mostrou toda a malignidade que ele representa e triunfou sobre ele ressuscitando dos mortos. Só quando captamos esta dimensão da Páscoa é que estamos aptos para celebrar a vida que a ressurreição significa. Vida eterna, vida com abundância é o que temos em JESUS! Celebremos a vida eterna ainda do lado de cá da eternidade!

Samuel R. Pinheiro
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CRISTO E O SEU CRISTIANISMO NO SERMÃO DO MONTE

JTP8Encontramos nos Evangelhos Cristo nas ruas como O encontramos no seu Sermão da Montanha.
“No princípio era o Verbo” – escreve João no prólogo do seu Evangelho-  e isso nos ajuda a entender que Jesus Cristo como o Lógos é a totalidade divina encarnada: Palavra e Vida, Pensamento e Acção.
Em Cristo, o Nous( razão, inteligência, espirito) não era alheio ao Seu corpo, porque “o Verbo se fez carne e habitou entre nós”.
O que o Filho do Homem vivia não era diverso do que pensava e de como agia na Sua divina perfeição a favor do Homem.
E isso também sublima a dimensão do Ser Humano, como criação divina.
É que se a Matéria (seguindo o mecanicismo de Spencer) fosse o mais importante na composição do Homem, como um produto mecânico, em detrimento do Espírito e da Consciência, tanto fazia um homem ou um gorila terem assinado a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Ou, muito antes, Jesus Cristo ter pronunciado o Sermão da Montanha.

O Sermão da Montanha
Antes de conter dogmas para a convivência ética dos homens uns com os outros, Jesus Cristo eternizou nesse Sermão no alto da Montanha a Moral dinâmica, que conduz a uma experiência mística, de relação quotidiana do homem com Deus.
Um filósofo europeu francês do Século XX, Henri Bergson, entendeu perfeitamente isso e fez um inestimável favor ao Cristianismo condenando o materialismo e o mecanicismo da vida, porque o ser humano não é um produto mecânico da matéria.
Jesus Cristo desceu das altitudes do seu pensamento como Deus para junto dos homens com o Sermão do Monte, que é uma Carta de Princípios. Não um conjunto de dogmas/preceitos estáticos; Bergson referia que o carácter do genuíno Cristianismo era dinâmico. A perfeição evangélica está, segundo o filósofo que foi considerado místico, no “sermão sobre a montanha, com suas normas aparentemente desconcertantes que devem tornar-se realidade crescente na conduta prática do cristão”.
O início do sermão da montanha, que terá logo nesse dia e ao longo dos séculos desconcertado muita gente, “Bem-aventurados os pobres de espírito” (5,3) termina com o apelo à perfeição: “Sede vós pois perfeitos, como é perfeito o vosso Pai que está nos céus.” (5,48)
O começo e o final, ou melhor, os começos e os finais do Sermão descrito nos Evangelhos de Mateus e de Lucas, reflectem as finalidades últimas e universais do discurso no monte.
A primeira dessas finalidades é que não se tratava de um sermão para a Igreja (Cristã, obviamente) porque a mesma não havia sido revelada ou fundada ainda.
A segunda, de acordo com os melhores exegetas, consistia “num esboço de princípios” para o reino messiânico, como esse reino foi rejeitado, então aplica-se todo o conteúdo ético e moral do discurso basicamente à religião Cristã, ao Cristianismo com Cristo.
Se assim não fosse, ambos os evangelistas escritores não o teriam relatado para a eternidade, teria apenas ficado na oralidade contextualizada da Judeia contemporânea de Jesus Cristo.
Perante o Sermão da Montanha seria legítimo esperar do Verbo excelentes Escritos, quando lemos nos Evangelhos “a oração sacerdotal”, “Não se turbe o vosso coração”,  “Eu sou a videira verdadeira” ou “Tenho vos dito estas coisas para que não vos escandalizeis”. Ou as célebres três parábolas no Evangelho de Lucas.
A verdade é que Jesus Cristo não escreveu nada, e se eu gostasse de lugares-comuns diria que no entanto inspirou toda a Bíblia, o que se sabe da sua escrita está somente no mistério das palavras que redigiu no chão perante a mulher adúltera e seus acusadores.
O Sermão da montanha, chamado assim tardiamente por um comentário de Santo Agostinho, pronunciado perto de Cafarnaum na Galileia, deve ser tomado em pé de igualdade com a lei mosaica do Monte de Sinai, no que concerne à ética, à moral, e aos relacionamentos dos homens entre si e com Deus.

A Ética do Sermão
O Sermão do Monte teve sempre uma ética social em risco, pela condição humana e porque os homens o quiseram sempre anular ab ovo, manifestando-se tragicamente esse desejo desde o princípio do século XX.
Não há tensões entre o Evangelho que preconiza e a Ética social que estabelece. Espiritualidade e militância não se anulam.  A aplicação prática do Sermão na vivência do cristão desmente desde a sua publicação nos Evangelhos, no século I, o que Nietzsche viria a afirmar séculos depois, que “no fundo só existiu um cristão, e ele morreu na cruz.” ( in Anticristo)
O teólogo e mártir do nazismo, Dietrich Bonhoeffer considerava o Sermão da Montanha no plano da Ética como um “evento da reconciliação do mundo com Deus através de Jesus Cristo” para os chamados agirem dentro da história com responsabilidade cristã. E por isso também o considerava no plano do Discipulado. Bonhoeffer escreveu num dos seus mais famosos livros “Discipulado” que “a resposta do discípulo não é uma confissão oral da fé em Jesus, mas sim um acto de obediência”.
Os pobres de espírito aceitam a perda de todas as coisas, especialmente a perda de si, de forma que eles podem seguir o Cristo
O Sermão requer antes dos joelhos no chão, o levantar da inércia da religião e seguir incondicionalmente, sem títulos nem prebendas,  Quem chamou: Jesus Cristo, para agir na História.
Este caminho não é para entusiastas da religião cristã- como diria o autor de “Resistência e Submissão” -, mas para aqueles que sabem que o amor / ódio do mundo os fará padecer.

© João Tomaz Parreira

A SEMIÓTICA ANTECIPADA PELO APÓSTOLO PAULO

JTP7“Há sem dúvida, muitos tipos de vozes no mundo, nenhum deles, contudo, sem sentido.” (Paulo aos Coríntios)

Filósofos da linguagem tiveram razão ao determinar nos inícios do século passado, que seria inconcebível a vida social sem a existência de signos de comunicação. O entendimento humano não se faz sem esses sinais da linguagem, compreensivelmente simples, as palavras.
Por uma razão cultural aplicada à espiritualidade manifestada nos dons espirituais na Igreja, Paulo antecipou-se a tais estudos e escreveu aos Coríntios (14,10) uma frase cheia de sabedoria e da futura ciência linguística: “ Há sem dúvida, muitos tipos de vozes no mundo, nenhum deles, contudo, sem sentido.”
A tradução de O Livro (a Bíblia para Hoje) entreabre a contextualização da época em que pouco se saberia sobre as línguas e os povos: “Suponho que haverá centenas de línguas diferentes neste mundo”.  Hoje, sabe-se muito das escritas ideográficas e silábicas da Mesopotâmia, signos-palavras, escrita original e obscura, dos milénios antes de Cristo, no entanto de invenção tardia. “Uma vez que a escrita não satisfaz uma necessidade elementar da vida do homem” ( “A Escrita”, Marcel Cohen), as mensagens começaram por ser, obvia e comprovadamente, verbais.
A versão da “God News Bible”, das Sociedades Bíblicas britânica e americana, de 1976, apresenta um esclarecedor termo para ajudar a entender a metáfora “vozes”: “There are many diferente languages in the world” e nenhuma linguagem está desprovida de significado.
Curiosa versão é, de igual modo, a tradução em português moderno do “Novo Testamento”, da nossa Sociedade Bíblica”, 1978: “ Existem não sei quantas línguas no mundo e todas têm o seu significado.”
Assim confirmamos que o autor da Carta aos Coríntios tinha a certeza de que era preciso saber o sentido daquilo que se dizia, isto é, era inconcebível e infrutífero não perceber a linguagem do falante interlocutor.
E estava lançada a ideia da futura semiologia. Cada vez que há comunicação, pronuncia-se uma mensagem, na ciência da linguística cabe à semiologia descrever um a um cada aspecto estrutural e funcional da mesma.
A semiologia ou semiótica é, de um modo geral, o estudo dos signos da linguagem; o próprio grego do Novo Testamento regista este vocábulo, “semêion”, signo, sinal, com os quais há comunicação. Se os não entendermos, não compreenderemos a mensagem. Exemplo comummente conhecido? O sinal de trânsito ou signo universal “Stop”, que tem uma significação precisa: a obrigação de Parar.

Tantos géneros de vozes

[14,10] TOSAUTA EI TUKHOI GENÊ PHÔNÔN EISIN EN KOSMÔ KAI OUDEN APHÔNON [14,11] EAN OUN MÊ EIDÔ TÊN DUNAMIN TÊS PHÔNÊS ESOMAI TÔ LALOUNTI BARBAROS KAI O LALÔN EN EMOI BARBAROS. (a transliteração dos versículos da língua grega do NT)

Todo o capítulo 14, de que esta porção bíblica faz parte, é um texto epistolar teológico porque desvenda revelações de Deus para a Sua Igreja, doutrinário porque ensina a Ordem mesmo no exercício dos dons espirituais, estabelece regras para uma verdadeira comunidade pentecostal, e não deixa de aflorar, de um modo simples, a ciência da linguagem, que ainda não se chamava linguística. Só na segunda década do século XX, em Praga, se começou a fazer reflexões sobre a linguagem.
Porém o apóstolo já distinguia que os fonemas eram sinais linguísticos que estavam para lá da acústica dos sons, tinham que ter um sentido para que houvesse verdadeira comunicação e, assim, mensagem. Sempre sem perder a visão de que o aspecto pragmático da actividade linguística é a conversação.
Paulo é peremptório e claro quanto à compreensão das línguas por um “indouto”, como lhe chamava no sentido de estrangeiro que não entenderia uma língua “local”.
Com efeito, Paulo escreve aos crentes de Corinto um princípio básico da semiótica: “ Se eu pois ignorar a significação da voz, serei estrangeiro para aquele que fala; e, ele, estrangeiro para mim.” (Iª. 14,11).
Não deixa de ser interessante o vocábulo grego utilizado: “dunamin”, que conhecemos espiritualmente na linguagem bíblica como “poder”, mas que quer dizer também “significação”, “sentido expressivo”, a capacidade de comunicar.
Paulo entendia e ensinava que as línguas estranhas (a glossolalia) não interagiam socialmente , na comunidade eclesial,  se não houvesse quem interpretasse.  Com base nestes versículos da Carta aos Coríntios, o ensino hoje sobre esta matéria deve ser o mesmo do Apóstolo há vinte séculos atrás.

© João Tomaz Parreira

SER É AMAR

RicardoRosa_2“Ser é amar”. Esta é uma das frases que sintetizam o pensamento de Emmanuel Mounier, filósofo cristão no séc. XX. E em conjunto com esta ideia, Mounier aponta ainda mais algumas máximas que vieram formular o Personalismo.

Em conjunto com a prática do amor, Mounier defende que é quando o Homem se descentraliza de si mesmo, que então ama verdadeiramente o próximo e se abre às necessidades do próximo. A par deste amor e interesse, surge também a comunicação com o próximo. Uma atitude que leva a que o Homem não viva num isolamento egoísta, nem numa auto-diluição.

No entanto, aquilo que Mounier formula como pensamento, é-nos apresentado pelas Escrituras, nomeadamente no livro de Actos dos Apóstolos. Após o discurso pentecostal de Pedro, podemos ler em Actos 2:42-47 a forma primordial filosófica do Personalismo.

O v.42 menciona a participação colectiva dos crentes de Jerusalém no ensino apostólico, na união fraterna, no partir do pão e nas orações. Não só aquela comunidade procurava viver do modo comprometido o ensino que Jesus delegara aos apóstolos, como também se esforçava para viver de modo a transmitir Cristo no seu viver: uma união que ia desde a intimidade da oração e da participação na celebração conjunta ao amor simples. Aplicando a citação de Mounier ao conteúdo relatado por Lucas, a igreja de Jerusalém era uma comunidade em Cristo porque amava.

Era uma comunidade exemplar (com todos os seus defeitos e virtudes), que se abria à necessidade do próximo (v.44), que amava verdadeiramente e com amor cativante (v.47b) e que se descentralizava de si mesma (v.45). Tudo isto decorre não por mérito do ser humano em si, nem por qualquer formulação filosófica fantástica, mas pelo poder de Cristo, manifesto na acção do Espírito Santo, que é pregado e anunciado através do Evangelho.

Mounier não procurava descartar o indivíduo da sua responsabilidade de amar e de ser responsabilizado (ao contrário de Sartre que afirmava que ”o Inferno são os outros”). Ele releva a pessoa, tal como Cristo o faz ao valorizar o valor da vida humana (João 5:1-18), trazendo à Filosofia do séc. XX a raiz cristã do ágape. Mas tudo isto só foi possível a Mounier por que conheceu Cristo e é na Palavra Incarnada que ele bebe a sua estruturação do pensamento.

De facto, Jesus, não tendo qualquer pretensão em ser filósofo criou um cisma no pensamento judaico da época (sem nunca deixar de valorizar as Escrituras e a Lei). É Ele quem resgata da malha ritualista intrincada o valor do amor divino, é Ele quem recupera o verdadeiro sentido de sacrifício com a Cruz do Calvário. É em Cristo que encontramos a valorização máxima da pessoa! Aquele que é uma Pessoa da Trindade, valoriza a criatura enquanto pessoa mais do que enquanto indivíduo . Cristo personaliza o Homem através do Seu sacrifício e comunica com ele com base no Seu Evangelho. Jesus é Deus Feito Homem e vem suprir a necessidade humana de restauração (João 3:16, Romanos 3:23,24), vem valorizar aquilo que o pecado outrora desvirtuara: um relacionamento com o Pai e a importância da vida de cada um de nós.

É Ele que nos resgata da dependência do materialismo e nos faz viver na dependência do que não vemos mas confiamos (Hebreus 11:1), que nos afasta do egoísmo pessoal e nos ajunta em comunidade viva e santa (como a de Actos 2:42-47).

A sociedade idealizada por Mounier é a vivência correcta do Reino. Um local de paz, justiça e alegria no Espírito Santo (Romanos 14:174), habitado por quem vive à imagem e semelhança de Deus (Colossenses 2:6, 1ª João 2:6).

É na Pessoa Incarnada que Mounier bebe influência para personalizar o Homem. Não deixemos nós de beber d’Ele, fonte de água viva, de água viva e busquemos juntar a máxima do filósofo com o mandamento de Jesus: “Se tiverem amor uns aos outros, toda a gente reconhecerá que são meus discípulos” (João 13:35, BPT)

Ricardo Jorge Mendes Rosa

MOBY DICK – A SOBERANIA SOLITÁRIA DO MAL

JTP6“Chamem-me Ismael. (Call me Ishmael)” Assim começa o grande romance “Moby Dick” de Herman Melville (1819-1891), quase em estilo bíblico- vejam-se os inícios dos livros dos profetas e as epístolas, salvaguardadas as distâncias da semântica bíblica.
Um dos mais representativos  da literatura americana e que abriu caminho ao moderno romance naquele continente, “Moby Dick” é literatura imaginativa onde pontifica a soberania de uma alma solitária. Por isto, de modo nenhum foi legítimo a obra ter sido apresentada no nosso país na primeira metade do século passado como um livro para adolescentes, inserido na literatura infanto-juvenil.
Fica aquém da profundidade psicológica desta obra-prima, a sinopse simplista segundo a qual o longo romance é “a história da busca do capitão Ahab para se vingar da baleia que lhe arrancou uma perna”.
Herman Melville logrou conceber uma  personagem  que o primeiro epíteto que a crítica na época, em 1881, lhe conferiu,  foi “uma aberração” e “um louco”. Uma obsessão pelo mar e a caça de cetáceos são antiquíssimas, mesmo em Melville, que escreve no seu romance primeiro “Taipi”: “ Seis meses no mar! Sim, leitor, aqui onde estou, tenho seis meses sem ver terra; navegando atrás da baleia do espermacete sob o sol dilacerante do Trópico”.
As leituras, teológica e outras
No entanto, o capitão Ahab propõe leituras mais profundas, sob um prisma psicológico-filosófico, e sob a lente da teologia e do irrefragável problema do Mal,  se quisermos ir para lá do mundo da aventura,  tomando até a perspectiva bíblica do livro de Jonas. Estes exemplos podem multiplicar-se em outras metáforas, como a subliminar na narrativa do encontro no oceano com outro baleeiro, o “Rachel”. A circunstância de que neste barco há o chôro do capitão Gardimer pelo desaparecimento do filho, que pertencia à tripulação: “Afogou-se ontem à noite com os outros” – dizia o velho marinheiro.
Raquel chorando os filhos… Uma metaforização de uma circunstância bíblica no enredo do romance.
Todavia, uma das leituras é, do meu ponto de vista de um cristão evangélico dado à literatura universal,  a de um anti-herói que pretendeu destruir o Mal, usando-se dele para limpar os oceanos e trazer-lhes paz.
A animalização do Mal. E tal proposta pressupõe uma luta, uma atitude agonista/agónica, que tem a sua formação, se quisermos, no Sermão célebre do padre Mapple, proferido do seu púlpito real e simbólico ao mesmo tempo.
A metáfora tirada da estrutura física do púlpito é por demais importante para ficar em segundo plano no sermão sobre a tempestade no mar de Jonas, a ira divina, ou mesmo as brisas favoráveis para a caça à Moby Dick contra a bondade da  suposta “baleia” que engole Jonas.
O púlpito é, quer na perspectiva melvilleana ou de um templo cristão, católico ou protestante, o locus de onde se dirige a nave da congregação ( das almas), de onde se fere e consola, o lugar de onde se corta cerce as vagas que queiram abater-se sobre a comunidade, com a Palavra divina.
O púlpito era o “posto avançado” contra o Mal. “Desse posto se reconhece a aproximação da ira divina(…) Sim, o mundo é um navio efémero que não conclui a sua viagem; e o púlpito é a proa desse navio”.  As primeiras arremetidas contra o Mal partem desse púlpito, no longo sermão do padre Mapple.
O próprio púlpito, depois da Reforma, toma lugar nas alturas a que deve estar o proferir a Palavra Divina no culto. O púlpito na liturgia reformada, protestante, evangélica, não eleva o pregador mas o Verbo.
Um excerto inicial, da elevação querigmática da Palavra: “Bem-amados companheiros do mar, talinguem o último versículo do capítulo primeiro do Livro de Jonas: “E Deus preparara um grande peixe para engolir Jonas”. Companheiros, este livro que contém somente quatro capítulos, é um dos fios mais pequenos que se entrelaçam para tecer o poderoso cabo das Escrituras. Contudo, como são profundos os abismos da alma que Jonas sonda!”.
Talingar, amarra, cabo, abismos,  termos marítimos que traduzem o cenário onde Jonas se confronta com Deus e Ahab com o Mal. Outros termos abrem caminho a uma exegese religiosa, diria cristã, no que concerne ao pensamento multifacetado, senão intrincado de Melville.
Em todo o caso, para o meio do volumoso romance, o autor discorre sobre os vocábulos “branco”, “brancura”, no sentido racial, mas também no adjectivo da pureza, como contraponto do “mal” branco – a baleia Moby Dick. Neste ponto, batemos numa contradição que ao parecer embelezar o Mal, a alvura, a pureza incompatíveis com o Mal, descobre a insinceridade, a mentira, com que o Mal se apresenta com frequência.
A luta de Ahab  enviesada contra o Mal, a malignidade de Moby Dick – escreve Melville, “um cachalote de rara magnitude malignidade” – radicava no desejo mórbido de vingança. A loucura de Ahab resulta do corpo mutilado e da alma ferida, é como o retrata física e psicologicamente o escritor. É a luta homérica da Odisseia, isto é, uma viagem e uma batalha do homem contra os deuses que abundam, materializados num só, a Moby Dick, na alma de Ahab.
A ubiquidade do Mal. “Moby Dick é não só ubíqua como também imortal”. O romance prova a impossibilidade da luta contra o Mal de um modo desordenado e inconsequente, ao preço do próprio desamor pelo próximo, as lutas individuais contra o Mal são próprias dos Prometeus ou dos Quixotes, se cegas nas suas causas.  O combate contra o Mal tem de estar amparado no Poder da Palavra de Deus, porque é uma pugna religiosa, melhor, é uma luta metareligiosa. Sobretudo tendo em conta o texto bíblico e de linguagem poética de Isaías 45,7.
O capitão Ahab almejava ser um deus grego; um Prometeu que se vingaria destruindo o Mal, no entanto, era um homem apoiado numa perna de pau ou de marfim. É a figura do homem que é tragado pelo Mal que jura obstinadamente combater.
Há mais de quarenta anos li “O Problema do Mal”, de J.S.Whale, e hoje ser-me-á útil um trecho desse livrinho para corolário do problema que vem desde o princípio da Criação: “ A resposta do cristão ao problema do mal está contida, em última análise, na maneira como ele enfrenta o mal na vida, como consequência do que Cristo fez com o mal na Cruz”.

© João Tomaz Parreira

“O homem no cruzamento das tradições religiosas: convergência ou dispersão”

2014nov13_UAL_srp“O homem no cruzamento das tradições religiosas: convergência ou dispersão”

Co-participação na conferência realizada pela Universidade Autónoma de Lisboa – UAL, a 13 de novembro de 2014, integrada no Ciclo de Conferências às Quintas

 

No cruzamento das tradições religiosas emerge um Homem que é muito mais do que Homem, tendo-se apresentado a Si mesmo como divino, foi sendo reconhecido assim pelos Seus seguidores e ao longo da história tem despoletado as mais diferentes reações. Convergência na dispersão e dispersão na convergência.
Parto do princípio de que o homem é na sua essência religioso, ou seja, ele não se define e se compreende nos limites de si próprio ou dos outros enquanto humanidade. Ele se transcende no eco de uma origem e de um fim que estão muito para lá dele mesmo. Deus está presente no homem como apelo qualquer que seja a forma pela qual ele o defina ou compreenda, ou não o consiga efetivamente definir ou compreender. O homem pergunta-se sobre as suas origens, sobre a Causa que está por detrás da sua pessoa, pergunta-se, tem consciência de si e da sua existência, interroga-se sobre o seu desígnio e propósito, porque existo e porque estou aqui, onde estou e para onde eu vou. É como se o homem se tivesse afastado de casa e esteja à procura e a tentar descobrir o caminho de volta. Múltiplas são as respostas que têm surgido a este propósito e na diversidade que elas nos propõem existe um ponto comum, um ponto de convergência.

Neste emaranhado de perguntas e de respostas, de suspeitas e de propostas, existe não apenas o movimento do homem em relação a si mesmo e ao que o transcende e no qual ele encontrará a sua identidade e essência, mas também o mover de Deus em direção ao homem. Este mover pode ser percebido na própria caminhada humana, nas suas dúvidas e interrogações. O sábio do Antigo Testamento já descrevia esta ideia no livro do Eclesiastes nestes termos: “Tudo fez Deus formoso no seu devido tempo; também pôs a eternidade no coração do homem, sem que este possa descobrir as obras que Deus fez desde o princípio até ao fim.” (3:11). O apóstolo Paulo no areópago ateniense, perante estoicos e epicureus, instado a explicar a estranha doutrina que proclamava, pegou precisamente nesta linha de raciocínio, e servindo-se da multiplicidade de deuses que encontrou ao visitar a cidade, argumentou nestes termos: “Senhores atenienses! Em tudo vos vejo acentuadamente religiosos; porque passando e observando os objetos de vosso culto, encontrei também um altar no qual está inscrito: AO DEUS DESCONHECIDO. Pois esse que adorais sem conhecer, é precisamente aquele que eu vos anuncio. O Deus que fez o mundo e tudo o que nele existe, sendo ele Senhor do céu e da terra, não habita em santuários feitos por mãos humanas. Nem é servido por mãos humanas como se de alguma coisa precisasse; pois ele mesmo é quem a todos dá vida, respiração e tudo o mais; de um só fez toda raça humana para habitar sobre a terra, havendo fixado os tempos previamente estabelecidos e os limites da sua habitação; para buscarem a Deus se, porventura, tateando o possam achar, bem que não está longe de cada um de nós. Pois nele vivemos, e nos movemos, e existimos, como alguns dos vossos poetas têm dito: Porque dele também somos geração. Sendo, pois, geração de Deus, não devemos pensar que a divindade é semelhante ao ouro, à prata, ou à pedra, trabalhados pela arte e imaginação do homem. Ora, não levou Deus em conta os tempos da ignorância; agora, porém, notifica aos homens que todos em toda parte se arrependam; porquanto estabeleceu um dia em que há de julgar o mundo com justiça, por meio de um varão que destinou e acreditou diante de todos, ressuscitando-o dos mortos.” (Atos 17:22-31)

No cruzamento das tradições na Grécia de há dois mil anos, na dispersão visível da multiplicidade de deuses e de filosofias, o apóstolo Paulo encontrou um ponto de convergência – o Deus pessoal criador e sustentador, que se dá a conhecer através de um varão, na Sua morte e ressurreição e pelo qual haverá de julgar o mundo.

Passados que são dois mil anos as tradições religiosas continuam a sugerir um ponto convergente na sua dispersão, mas essa convergência não se confina a liturgias particulares, ou a valores e princípios éticos. Penso que é possível encontrar no cruzamento das várias tradições religiosas princípios que são essenciais à convivência e à sobrevivência do homem, num mundo global cada vez mais fragmentado, em que os conflitos mesclados por leituras e interpretações religiosas que inflamam ódios mesmo fratricidas, empurram a humanidade para a beira do abismo. Precisamos de valorizar a paz, o amor, a liberdade, os direitos do homem. Mas este objetivo tem que ser conseguido através do respeito das divergências e dispersões.

Se nas diversas tradições religiosas e em cada homem podemos vislumbrar todos esses impulsos para a transcendência, parece-nos também evidente que sem Deus o homem nunca O poderá encontrar. Afinal de contas penso que O procuramos apenas como resposta a sermos procurados. É Ele que nos procura, e só O encontramos porque Ele veio ao nosso encontro. É neste emaranhado de dispersões que emerge a figura de Jesus Cristo que se apresenta e é apresentado pelos Seus seguidores como Deus que vem ao nosso encontro e no qual nós podemos ver o rosto de Deus. Por exemplo o apóstolo João na introdução do evangelho que escreveu declara: “Ninguém jamais viu a Deus: o Deus unigénito, que está no seio do Pai, é quem o revelou.” (João 1:18), e num diálogo muito sugestivo com os discípulos e em resposta a um deles o próprio Cristo declara: “Felipe, há tanto tempo estou convosco, e não me tens conhecido? Quem me vê a mim, vê o Pai; como dizes tu: Mostra-nos o Pai?” (João 14:9)

Jesus é o ponto de convergência, o alfa e o ómega da linguagem da comunicação, do vocabulário e da revelação divina.

Permitam-me destacar alguns aspetos que considero hoje em dia, como o foram sempre através da história do homem, cruciais, sem escamotear a realidade de que ao longo dessa mesma história e em Seu nome foram perpetrados por muitos que se apresentaram como Seus seguidores as maiores barbaridades, embora Ele mesmo já antecipadamente tivesse avisado que tal viria a suceder.

Quando destaco Jesus Cristo isto não representa nenhuma supremacia de uma determinada tradição religiosa, a supremacia, singularidade e superioridade é d’Ele única e exclusivamente, e sendo d’Ele é feita em termos que hoje nos são imprescindíveis para lidarmos com o que nos quer destruir.

Jesus apresenta-se como mestre manso e humilde, dois atributos particularmente interessantes que agregou à natureza divina. “Vinde a mim todos os que estais cansados e sobrecarregados, e eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo, e aprendei de mim que sou manso e humilde de coração; e achareis descanso para as vossas almas. Porque o meu jugo é suave e o meu fardo é leve.” (Mateus 11:28-30)

Jesus recusa os modelos dos grandes e poderosos que tiram proveito dos menos favorecidos e que exercem um poder discricionário e discriminatório, aproveitando um momento em que dois dos seus discípulos se apresentam como candidatos aos lugares de destaque à sua direita e esquerda, perspetivando a soberania divina à semelhança do que conheciam da sua realidade cultural e possivelmente do império romano sob o qual se encontravam. Jesus não podia ter sido mais taxativo: “Sabeis que os governadores dos povos os dominam e que os maiorais exercem autoridade sobre eles. Não é assim entre vós; pelo contrário, quem quiser tornar-se grande entre vós, será esse que vos sirva; e quem quiser ser o primeiro entre vós, será vosso servo; tal como o Filho do homem, que não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos.” (Mateus 20:25-28)

Nesta mesma linha de conduta e de pensamento, em sintonia absoluta com a sua natureza e essência, na derradeira ceia antes da Sua morte, dispôs-se a um ato simbólico de profundas implicações culturais, relacionais e vivenciais, lavando os pés aos discípulos, tarefa que estava destinada aos escravos. Depois da estupefação e da reação de indisponibilidade de Pedro, ultrapassada pela argumentação do Mestre, Ele conclui neste termos: “Vós me chamais o Mestre e o Senhor, e dizeis bem; porque eu o sou. Ora se eu, sendo o Senhor e o Mestre, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns dos outros. Porque eu vos dei o exemplo, para que, como eu vos fiz, façais vós também. Em verdade, em verdade vos digo que o servo não é maior do que seu senhor, nem o enviado maior do que aquele que o enviou. Ora, se sabeis estas coisas, bem-aventurados sois se as praticardes.” (João 13:13-16)

O perdão é outra das ênfases que encontramos no ensino e na atitude de Jesus no momento mais crucial da sua existência terrena. Na oração conhecida por Pai nosso ensina a orar nestes termos: “(…) e perdoa-nos as nossas dívidas, assim como nós temos perdoado aos nossos devedores; (…)” (Mateus 6:12). Quando um dos discípulos procurou colocar um limite a esta atitude de perdão foi esta a resposta que recebeu: “Não te digo que até sete vezes, mas até setenta vezes sete.” (Mateus 18:22). Face à provocação insistente de um grupo de religiosos fanáticos e do modo de proceder em relação a uma mulher adúltera tendo em vista a lei de Moisés, lançou o seguinte desafio: “Aquele que dentre vós estiver sem pecado, seja o primeiro que lhe atire pedra.” E à mulher tolhida pela vergonha, pela culpa e pelo medo, depois de todos terem abandonado o lugar reconhecendo que não estavam em condições de executar a condenação, diz: “Nem eu tão pouco te condeno; vai, e não peques mais.” (João 8:7,11) Aquando do momento da sua própria crucificação exclama: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem.” (Lucas 23:34)

O amor como síntese de toda a lei e de todos os mandamentos é a questão levantada em relação a uma interrogação de um advogado da lei. “Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todas as tuas forças e de todo o teu entendimento; e amarás o teu próximo como a ti mesmo.” (Lucas 10:27) Em dificuldades para conseguir identificar quem seria o seu próximo, Jesus conta a célebre parábola do bom samaritano, mostrando que o próximo não é o que pertence à nossa confissão religiosa, à nossa casta, à nossa classe social, à nossa raça ou etnia, à nossa nação ou ao nosso clube privado, mas todos os de quem tomamos a iniciativa de nos aproximarmos. Usa para tal um samaritano que era o indivíduo menos considerado e mais discriminado e rejeitado, depois de referir um sacerdote e um levita que perante a vítima dos assaltantes, passam de largo. Provocador ou muito mais do que isso. Há dois mil anos. Com a mesma intensidade nos dias de hoje. Ao intérprete da lei ordena que faça como o samaritano pelo qual não deveria ter uma grande estima: “Vai, e procede tu de igual modo.” (Lucas 10:37)

Um amor que é entendido de modo prático fazendo aos outros do mesmo modo como queremos que nos façam, no sentido positivo e não negativo (Lucas 6:31), e que Jesus coloca de modo singelo em relação a Si o que fazemos com os menos favorecidos: “Porque tive fome e me destes de comer; tive sede e me destes de beber; era forasteiro e me hospedastes; estava nu e me vestistes; preso e fostes ver-me.” (Mateus 25:35,36). Alertou igualmente “Por que me chamais, Senhor, Senhor, e não fazeis o que vos mando?” (Lucas 6:46)

Todos estes valores são parte de uma convergência necessária na convivência humana e possivelmente sintetizada pelo homem no cruzamento das várias tradições religiosas. Mas o que a mensagem de Jesus, e a própria vida de Jesus concentra vai muito para além, e não há formulação do evangelho no meu entender que a possa escamotear, e se porventura tal acontecer, nega-se a essência do mesmo.

Num encontro pessoal com um mestre religioso que apresenta uma interessante síntese pessoal sobre a figura do nazareno, este de uma forma franca, direta e frontal, afirma-lhe perentoriamente: “Em verdade, em verdade te digo que se alguém não nascer de novo, não pode ver o reino de Deus.” (João 3:3). É aqui que reside no meu entender a novidade por excelência da pessoa e da mensagem de Cristo. Um nascimento da água e do Espírito, um novo começo, uma nova pessoa, um novo homem, uma nova condição, uma outra natureza, uma outra realidade vivida nas possibilidades divinas que vão além dos bisturis humanos e das regras que se possam formular. Mudados por dentro, para viver de forma diferente em todas as dimensões da vida humana.

A vida, morte, ressurreição e promessa de segunda vinda de Jesus, convergem para esta proposta. A Sua ressurreição histórica e literal, sem a qual a fé será vã, inútil no dizer do apóstolo Paulo (1º Coríntios 15:17) diz-nos que a morte não é o fim, que “os sofrimentos do tempo presente não são para compara com a glória porvir a ser revelada em nós” (Romanos 8:18), lançando uma nova luz sobre o nosso sofrimento a partir de um Deus que sabe o que é sofrer, num mistério que vai além do nosso entendimento. A Sua crucificação provando a morte com e pelo homem é a pedra de toque, é apresentada em todo o Novo Testamento como redentora, resgatadora, expiatória, justificadora e reconciliadora. Daí uma palavra singular no contexto do evangelho e que não posso deixar de aqui referir num tempo tão carenciado dela, e de um homem que dela precisa como de pão para a boca da mesma – GRAÇA! Receber de Deus não por mérito ou virtude, mas por favor que nunca seremos capazes de merecer, pagar, ou produzir por nós mesmos. No dizer do percursor João Baptista, no evangelho de João “Porque todos temos recebido da sua plenitude, e graça sobre graça. Porque a lei foi dada por intermédio de Moisés; a graça e a verdade vieram por meio de Jesus Cristo.” (João 1:17). A religião como comércio, como instrumento do medo e da culpa, da manipulação e da opressão, caem perante a graça divina – sem dinheiro e sem preço a realizar a profecia de Isaías entre 600 e 700 anos antes. Quando a GRAÇA é percebida, acolhida e experimentada não pode haver lugar à intolerância, à perseguição e à morte. A GRAÇA acolhe a todos mesmo que discordemos em quase tudo, no essencial ou no periférico. A GRAÇA não dissimula as convicções nem as dilui, não nega a VERDADE, mas articula-a com o AMOR.

É por isso que um dos títulos que mais me impressiona nas acusações que Lhe foram dirigidas há dois mil anos, é a de “(…) amigo de publicanos e pecadores (…)” (Mateus 11:19) E simultaneamente as suas invetivas para com os religiosos que presumiam representar o  Deus que era o Seu próprio Pai, de quem é o Filho unigénito e primogénito. De entre os vários epítetos cito esta referência: “Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! Porque sois semelhantes aos sepulcros caiados, que por fora se mostram belos, mas interiormente estão cheios de ossos de mortos, e de toda imundícia.” (Mateus 23:27)

Pode ser que não vejamos muito do que encontramos em Jesus Cristo nas grandes instituições que trazem um rótulo de cristão. Costumo dizer que se Jesus voltasse hoje à terra porventura não seria cristão, e mais ainda, seria recusado pelos que a si próprios se designam de cristãos. Mas existem muitas comunidades espalhadas pelo mundo inteiro que vivem tendo como foco estes princípios e Aquele que os torna possíveis. Esta é a convergência de vida de que precisamos. Jesus chama pessoas, indivíduos que por sua vez formam grupos, que influenciam mais ou menos sociedades, estados, nações, culturas e mentalidades. Por isso é possível ser um seguidor de Jesus sem ser “cristão”, e muitos cristãos estão longe se ser seguidores de Jesus.

A descrição que o Novo Testamento apresenta da Igreja dos primórdios mostra como isso foi concretizado e pode continuar a acontecer mesmo com outras formas diferentes de manifestação e expressão: “E perseveravam na doutrina dos apóstolos e na comunhão, no partir do pão e das orações. Em cada alma havia temor; e muitos prodígios e sinais eram feitos por intermédio dos apóstolos. Todos os que creram estavam juntos, e tinham tudo em comum. Vendiam as suas propriedades e bens, distribuindo o produto entre todos, à medida que alguém tinha necessidade. Diariamente perseveravam unânimes no templo, partiam pão de casa em casa, e tomavam as suas refeições com alegria e singeleza de coração, louvando a Deus, e contando com a simpatia de todo o povo. Enquanto isso, acrescentava-lhes o Senhor, dia a dia, os que iam sendo salvos.” (Atos 2:42-47)

A oração que mais me interpelou nos últimos dias lia no livro “O Chamado” de Os Guiness (pp. 113,114), de um judeu na Casa Branca, que foi presidente do banco central americano nos anos 70 e embaixador na Alemanha Ocidental. “Senhor, peço que leve os judeus a conhecer a Jesus Cristo. Oro para que os muçulmanos venham a conhecer Jesus Cristo. Finalmente, Senhor, peço que traga os cristãos para conhecer Jesus Cristo. Amém.” (Arthur F. Burns)

 

 

Samuel R. Pinheiro
13 de novembro 2014

 

O assunto do pluralismo religioso é bastante pertinente face à cultura vigente. Existe uma boa bibliografia em língua portuguesa que recomendamos como é o caso dos seguintes livros:
“Cristo Entre Outros Deuses”, Erwin E. Lutzer, CPAD.
“A Supremacia de Cristo em um Mundo Pós-Moderno”, John Piper & Justin Taylor, CPAD.
“A Supremacia de Cristo – conhecendo o único caminho”, Ajith Fernando, Shedd Publicações.
“Verdade Absoluta – libertando o cristianismo de seu cativeiro cultural”, Nancy Pearcey, CPAD.
“O Deus Amordaçado – o cristianismo confronta o pluralismo”, D. A. Carson, Shedd Publicações.
“Quem é Jesus? – contrapondo Sua verdade à falsa espiritualidade dos dias atuais”, Ravi Zacharias, CPAD.
“Pós-modernismo – um guia para entender a filosofia do nosso tempo”, Stanley J. Grenz, Edições Vida Nova.
Uma Ortodoxia Generosa”, Brian McLaren, Editora Palavra, Brasília, 2007.
“O Jesus Que Eu Nunca Conheci”, Philip Yancey, Editora Vida.

NA ALTURA EM QUE ACONTECERAM AS DISSENSÕES EM CORINTO

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“Eu sou de Paulo, e eu de Apolos, e eu de Cefas, e eu de Cristo” – I Co 1,12

 

João Tomaz Parreira 

Os cristãos de Corinto, os membros da “igreja de Deus que está em Corinto”,  eram mulheres e homens que viviam agora separados para um propósito especial. Eram santificados em Cristo, no meio de uma cidade promíscua e depravada, de tal modo que, entre os gregos, “coríntio” significava “libertino”. Não obstante, de todas as cidades gregas que tardaram a aceitar ou rejeitaram mesmo o Cristianismo – no século III havia ainda resistências -, a Corinto cosmopolita foi a primeira e exemplar a servir e proclamar Jesus Cristo.

 

A necessária separação iria despojar os cristãos de Corinto, da natureza humana? Não. Paulo diz-lhes que não lhes pode “falar como espirituais, mas como carnais, como a meninos em Cristo”. Mais do que nos adultos, as dissensões estão no terreno da infância. Paulo trata deste assunto com um “terno apelo” – escreve um comentarista da Carta aos Coríntios, não deixa que prolifere o “espírito de facciosidade”.

 

A palavra “dissensão” é benévola na nossa língua, quando se   traduz por uma  diversidade de opiniões; na língua grega usada no Novo Testamento, porém, o vocábulo é mais possante porque acentua uma acção: ”Schismata” (do substantivo “Schisma”), que significa, rasgão, separação, mais extensivamente, dividir em partes. Palavras que traduzem a ideia de fenda na unidade. O que, segundo a lamentação, por assim dizer em forma de pergunta exortatória paulina, parece ser o caso.  

 

O quadro a que podemos aplicar a palavra “dissensão” ou cisma, que encontramos na comunidade cristã de Corinto, na altura em que aconteceram tais dissensões, revelam factos históricos concernentes a homens que tiveram ligações estreitas com a comunidade, sobretudo, Paulo e Apolo, incluindo à distância o nome de Pedro, pela dificuldade de alguns cortarem definitivamente com o judaísmo.

 

No tecido intertextual das fontes históricas sobre a Igreja Cristã no século I e o próprio texto epistolar de Paulo, todos os nomes de quem os “grupos” se reividicavam, é fácil perceber que os do “partido” de Cristo presumiam  ser os melhores crentes. Os presumidamente mais “espirituais” do que os outros irmãos.

 

O que tornava a situação menos problemática, era o facto de não haver ( Paulo não as denuncia) diferenças doutrinárias entre os “partidos”, divergências de opinião sobre líderes,  o ensino de Paulo não diferia do de Apolo. Tratar-se-ia apenas de preferências pessoais.

A questão, porém, subsiste: quem era o pastor da igreja, qual o seu nome? O que pela não referência nos dá a ideia de que não haveria nenhum apoiante nem “partido” desse hipotético pastor?

Estranho é, portanto, que Paulo não pudesse ter transmitido algum grupo do “actual” pastor, porque nada lhe disseram sobre isso?  Isto é, estranha-se que não houvesse um partido do pastor em actividade naquela altura.

 

Dos nomes Crispo, Gaio, Estéfanas ou alguém da família de Cloé, não se pode destacar um como sendo presumível pastor da igreja de Corinto.  Todavia, a probabilidade mais correcta, reside em podermos pensar que naquela altura das dissensões, a comunidade era dirigida por um presbitério/episcopado do qual fariam parte todos eles. Ou Tito Justo ? (Act  18, 7)

No que concerne a uma comunidade ser dirigida / servida por presbíteros, não seria novo nem inusual,  conhecemos a de Éfeso (Actos, 20, 17 e 28)

 

O historiador do Cristianismo Latourette considera mesmo que, em relação à comunidade cristã de Corinto e à sua estrutura eclesiástica,  Paulo nomeou “os oficiais da igreja”. (“Historia del Cristianismo”, Tomo I). O mesmo autor sugere o que parece ser a muito custo refutável,  que “a igreja de Corinto tinha vários presbíteros”. Assim, escreve: “ a igreja de Corinto não teve a superintendência de um bispo só, como tiveram as demais igrejas”.

 

Outras fontes externas à epístola paulina, como a chamada “Carta de Clemente Romano aos Coríntios”, (se este Clemente for o referenciado em Filipenses 4,3, uma vez que Eusébio de Cesareia e Jerónimo o identificam como tal) dizem-nos que houve agitadores que se amotinaram contra os presbíteros.

No capítulo 1, 1, e 6, lê-se: “Talvez estejamos a ocupar-nos com atraso dos acontecimentos que se deram entre vós, caríssimos, e daquela sedição estranha a eleitos de Deus ”, “(…) Tudo realizáveis sem acepção de pessoas, e andáveis nos preceitos de Deus, sujeitando-vos aos vossos guias, e tributando aos vossos presbíteros o respeito que lhes é devido.”

Clemente Romano escreveu que “toda revolta e todo cisma causam horror”, embora se saiba que, infelizmente, durante os primeiros três séculos alguns  cristãos promovessem cismas em torno da doutrina cristológica e da Teologia.  Noutro ponto da sua carta, deixa o recado que “Cristo pertence aos humildes e não aos que se elevam acima da grei” (16,1)Em relação aos “desordeiros” de Corinto que quiseram expulsar os pastores legítimos.

 

Seja como for, se diante da História do Cristianismo e das igrejas neo-testamentárias, nos resta leitura e suposições, diante da força e perpetuidade das Cartas de Paulo aos Coríntios, eleva-se a gratidão a Deus por tão sublime pensamento, e um silêncio, mas silêncio ensurdecedor sobre o que ensaiamos neste artigo.                                                                                       

A verdade é que gostaria de ter tido uma visão mais ampla, mas ainda assim não subi à varanda dos diversos comentadores bíblicos sobre o assunto. Penso sempre que, no que concerne a “ensaiar” um texto evangélico devem ser  as Escrituras a explicar as Escrituras.

                                                                                       – © João Tomaz Parreira